Capítulo VI

Hector deu longos pernadas em direção a ala central, sua íris refletia um grande desanimo escondido por trás de sua cabeleira castanha avermelhada e suas disformes olheiras roxas. O primeiro-ministro era um homem elegante saturado por cansaço desmedido e acariciado por um fraco fulgor que se esforçava para se desprender das nuvens carregadas.

Logo ele chegara em seu destino. Hector bateu três vezes na porta do Conselho então a voz grave de uma senhora o mandou entrar.

A sala era até simples se levado em consideração o fato de estar dentro de um palácio. Havia uma nesga de estantes de livros puídos espalhadas pelo aposento e janelas quadradas sempre tampadas com cortinas tão grandes e sem graças quanto lonas. Não havia enfeites, ou quadros, nada que pudesse dar ao espaço um ar mais aconchegante. No fim, conforto era a última coisa que as quatro múmias a sua frente iriam almejar.

Os velhotes que eram aqueles conselheiros esticaram seus pescoços infinitamente longos e enrugados, e semicerraram seus olhos por detrás de seus óculos finos e metálicos.

- Ah! - exclamou o quarto conselheiro como se acabasse de despertar de sua morbidez. - É você, primeiro-ministro. Venha aqui, não fique na porta encarando, sente-se.

Hector fez o que foi pedido e sentou-se num sofá em frente a primeira conselheira e sua cara orgulhosa de ameixa seca.

- Algum progresso com o Imperador? - interrogou a mulher com sua voz gutural.

- Se eu tivesse feito, você acha que eu teria essa expressão terrível na cara, primeira conselheira Eleanor?

- Eu não saberia dizer, você tem uma certa tendência a ficar deprimido por qualquer coisa - replicou, fazendo risadinhas esganiçadas seguidas de tosses secas irromperem das gargantas do Conselho. - Deixe de bobeira e me conte o que aconteceu.

Hector bufou e começou a relatar seu ponto de vista da história: - como vocês já devem saber, nosso plano foi descoberto rapidamente por Sua Majestade. Esperávamos que pudéssemos esconder os fatos dele até o dia baile imperial, contudo o Imperador Vermelho, como sempre, superou nossas expectativas e descobriu nosso esquema antes do esperado, fazendo, não só com que nossa estratégia falhasse piamente, mas também com que ele ficasse extremamente alerta e mal-humorado da maneira mais demoníaca possível. Apesar disso, Sua Majestade não cancelou o baile e ainda por cima dançou com Sua Alteza Margaret, o que foi uma conquista e tanto levando as circunstâncias em consideração. Isso me fez chegar à conclusão de que o Imperador tem pensado no casamento mesmo que a contragosto. Isso é tudo que sei.

- Entendi, bom trabalho - murmurou a segunda conselheira, Jaora, batendo as unhas tingidas de vermelho na mesa de tempos em tempos. - Primeiro precisaremos descobrir o que está fazendo com que Sua Majestade não queira se casar, além disso precisaremos pôr o plano B em prática. Enquanto fazemos isso, Hector, você terá de continuar trabalhando com a ideia do matrimônio com o Imperador.

- E quando ela diz trabalhar, ela quer dizer insistir - explicou o quarto conselheiro, Rutzel.

O primeiro-ministro assentiu. - Mas do que esse plano B irá se tratar?

- Não queremos entrar em muitos detalhes ainda pois precisaremos que tanto o general quanto o Arquimago concordem com isso, e não será uma tarefa fácil levando em consideração seus ideais de 'não intromissão na vida do Imperador' - respondeu Eleanor buscando concordância nos olhos de seus colegas. - Preferimos manter as coisas sigilosas enquanto não soubermos se nossa estratégia dará frutos ou não.

- Ah, ah! E não se esqueça de observar o imperador de perto, fizemos o nosso movimento e agora é vez dele - avisou o terceiro conselheiro, Cairo, já meio dormindo.

Então o silêncio imperou no aposento. Aquele era o sinal de que a conversa havia chegado ao seu fim.

- Eu compreendo, se for só isso então irei me retirar. - Hector levantou-se de seu assento e andou até a porta, contudo antes de partir, ele vislumbrou novamente o Conselho e deu um aceno de cabeça para mostrar que lutaria pelo objetivo comum deles, que eles retribuíram com languidez e determinação.

***

Pois bem, era sábado. O último dia em que Isabella trabalharia na ala sul. Mas que lástima, a senhorita sequer teve a chance de ver o Imperador Vermelho aquela semana e sabe-se lá quando ela voltaria a trabalhar no espaço de Sua Majestade.

O céu estava meio amarelado, meio azulado, meio avermelhado, uma coisinha incompleta. Era o arrebol de um dia de primavera, sendo assim o vento estava mais frio do que nunca, fazendo os dedos de Isabella já rijos pelo trabalho quase que gangrenarem frígidos. As pétalas das árvores de flores vinham caindo um bocado ultimamente, então o gramado era uma tapeçaria concebida do mais exímio tecido.

Já não havia mais o que ser feito, a jovem de olhos azuis pegou suas armas de batalha, o pano, o espanador, o balde e a vassoura, e foi seguindo sua trilha em direção as acomodações. Isabella foi cuidadosa, prestando atenção em como carregava as coisas e na direção de seus pés para não tropeçar. Nesse instante, um cheiro pútrido e forte de sangue fresco lhe atingiu as narinas de supetão, seu instinto imediato foi querer tapar seus orifícios nasais, entretanto não o fez pois isso causaria a queda dos seus melhores amigos de limpeza. O odor era tão forte que parecia haver uma piscina de sangue sendo construída no jardim.

Durante alguns segundos a única coisa que a jovem conseguia prestar atenção era àquele miasma vermelho, mas ao passo que o ponteiro mais rápido do relógio girava, Isabella era capaz de ouvir alguns murmúrios. Alguns indiferentes, outros irritados e havia ainda os orgulhosos.

"Se tem sangue no meio, não é dá minha conta. Não vou me meter" foi o que a jovem ponderou naquele momento.

E embora Isabella não tivesse qualquer pretensão de realizar uma intromissão, parecia que ela não tinha muita escolha pois as vozes eram provenientes da direção para onde ela se dirigia.

O volume da babel foi aumentado ao ponto da garota poder detectar algumas palavras de tempos em tempos, 'irresponsável', 'general Goliak' e 'Conselho' eram as mais frequentes.

Quando Isabella ficou perto o suficiente para ver as figuras de quatro pessoas perto das acomodações de Sua Majestade, as vozes cessaram e quatro faces meio borradas viraram em sua direção, então o coração enferrujado da jovem deu um salto desacostumado e foi assim que ela soube que uma das quatro pessoas a sua frente era aquela que que Isabella havia ansiado por ver durante toda a semana.

A jovem curvou-se rapidamente e saudou as pessoas a sua frente um pouco desairosa devido as coisas que ela vinha carregando.

Além disso, a empregada não se demorou a descobrir de onde vinha o cheiro exacerbadamente forte de sangue, bastou-lhe erguer a cabeça e encarar Sua Majestade. Ele estava soberbo como sempre, principalmente os olhos encarnados, todavia existia algo a mais em sua aparência naquela ocasião, talvez fosse seu cabelo posto para a frente, talvez fosse suas roupas um bocado mais simples do que as que ele usara no baile, mas muito provavelmente era devido ao fato dele estar coberto de sangue dos pés à cabeça, embebido ao ponto daquele líquido carmim e fétido pingar no chão.

No meio daquele grupo não havia somente o Imperador, Hector também estava lá com seu corpo magro e sua expressão macilenta, marcando presença. As outras duas pessoas que abitavam o corredor eram gêmeos idênticos, usando roupas praticamente iguais e guarnecidos de diferentes armas - eram muito provavelmente os guardas de Sua Majestade.

- Ainda bem! Uma empregada! - disse o primeiro-ministro com um semblante de alívio. - Poderia preparar um banho para Sua Majestade, por favor.

Obviamente não era um pedido.

- A sua disposição - respondeu Isabella de imediato com um tímido sorriso.

Ela se dirigiu lentamente em direção aos quatro homens, então comtemplou Sua Majestade nos olhos ao interim que tentava ignorar o cheiro fétido e o guiou silenciosamente em direção as suas acomodações.

Se por um lado, Isabella aparentemente não se incomodava com todo aquele sangue; por outro lado, ela realmente não se incomodava. Claro, isso não necessariamente significava que a jovem possuía um sério problema psicológico. A verdade é que Isabella não se importou demais pois sabia que o sangue não era humano, não havia o mesmo cheiro de ferrugem, a espessura era distinta e o odor era terrível. Além do mais, ela já havia sido avisada de que o Imperador saia para matar monstros com certa frequência.

Isabella ousou olhar para trás por apenas alguns segundos, observou a expressão séria de Sua Majestade que a fez corar mesmo que coberto de um líquido vermelho e fedorento, então franziu o nariz com azedume ao reparar nas manchas que iam ficando para trás em um chão que ela e suas colegas acabaram de limpar. Atrás do Imperador Vermelho vinham os gêmeos como dois cães galgos, de pelagem negra e com olhos de jabuticaba.

No decurso do tempo, a garota de cabelos dourados deslizou pelos corredores até chegar à entrada do quarto de Sua Majestade, ela tentou conter sua excitação e curiosidade ao interim que abria as portas castanho-vinho e adentrava o aposento.

O quarto do imperador era realmente algo a se admirar, era tão grande quanto seu antigo apartamento, com paredes vermelho escuro, e um tapete de veludo que cobria todo o chão. A cama era enorme, devia caber no mínimo umas três pessoas grandes sem muito esforço. Havia uma lareira apagada em um canto do quarto e um bocado de estantes de livros em outro. Um sofá elegante e ao seu lado uma mesa redonda para duas pessoas, cortinas de seda preguiçosamente encostadas na parede e duas janelas que iam do chão até o teto e davam para uma varanda com uma vista fenomenal do jardim.

Um suspiro escapou dos lábios avermelhados de Isabella enquanto as portas se fechavam atrás do Imperador. A jovem olhou para trás e percebeu que os gêmeos não adentraram a alcova, eram apenas ela e Sua Majestade Alexandre.

"O que vim fazer aqui mesmo?" começou a meditar, olhando aquele homem tão lascivo. "Você veio preparar o banho, Isabella" respondeu a parte mais sensata de sua voz interior.

- Certo. O banho - murmurou baixo o suficiente para que apenas ela ouvisse.

Foi aí que a jovem encontrou um dilema, para qual porta eu devo ir? Se perguntava olhando para as duas portas em paralelo em cada parede do quarto.

- É a da esquerda - disse o Imperador fazendo o coração de Isabella ir a mil.

- Certo, Vossa Majestade.

A jovem foi em frente, encostou seus materiais de limpeza na parede e abriu as portas do banheiro.

Isabella agachou-se do lado da banheira, que mais parecia uma piscina pela grandeza e por ser desenhada no chão daquela forma, e assim começou abrir a torneira deixando a água morna cair como uma minúscula cachoeira.

Por mais estranho que a imagem possa parecer, o tão famigerado Imperador Vermelho ficou preguiçosamente de cócoras ao mesmo tempo que esperava a água ascender ao topo. Ele encostou a cabeça na parede então observou cada ação de Isabella com aquela selvageria intrínseca em seus olhos, fazendo com que os pelos da nunca da jovem se eriçassem e seus dedos ficassem rosas.

De repente, a jovem arregalou os olhos em um lapso de epifania meio divertido. Isabella encolheu-se, então começou a olhar de tempos em tempos para Sua Majestade com certa preocupação, tamborilando os dedos em suas coxas ou pressionando a ponto de seu nariz com o indicador.

- Se quer me dizer alguma coisa, diga logo. - As palavras saíram da boca do Imperador com musicalidade fleumática e com autoridade incontestável.

- Bem é que muito sangue, Vossa Majestade - começou a dizer apertando a barra do avental e desviando seus olhos envergonhados.

- De fato - replicou sem desviar os olhos.

- Você está bem? Não está machucado?

- Não se preocupe - foi balbuciando enquanto seus lábios esticavam-se em um sorriso como quem estava aproveitando uma piada -, o sangue não o meu, Isabella.

Aquilo foi um ataque fatal para a jovem de olhos azuis. O sorriso foi uma facada e chamar seu nome foi um tiro no peito.

- Vossa Majestade, você se lembrou do meu nome! - exclamou Isabella colocando juntando as duas mãos, esquecendo-se completamente de sua pergunta anterior e da sua posição como servente.

- A água - avisou o Imperador.

Então Isabella olhou para trás surpresa, percebendo que a banheira estava quase transbordando. Suas mãos moveram-se rapidamente em direção a torneira, fechando-a tão agilmente quanto pôde.

"Quase causei um desastre de novo" refletiu com seus botões.

Sua Majestade levantou-se e a jovem imitou-o, limpando a poeira imaginária de seu vestido e fitando-o com muita atenção.

Ele encarou-a também, embora a água da banheira já estivesse esfriando e o sangue em suas vestes estivesse praticamente seco. Isabella queria perguntar-lhe como ele acabara daquele jeito, mas não achou que seria uma questão pertinente.

- Diga-me, você pretende continuar aqui? - inquiriu Sua Majestade, desviando lentamente seu foco de visão. - Eu não me importo, mas...

A empregada corou, curvou-se dizendo algumas palavras embaralhadas, saiu do banheiro às pressas e encostou levemente a porta. Por alguns segundos, Isabella escorou-se na entrada do banheiro, rindo de constrangimento com as faces em puro rubor, e estando assim, pareceu se lembrar de algo e bateu levemente à porta.

- Gostaria que eu levasse as roupas para as lavadeiras? - questionou encostando as orelhas quentes na entrada do banheiro.

- Não. Eu irei queimá-las, o cheiro não vai sair de jeito nenhum.

- Entendido! Então eu limparei o chão e me retirarei, Vossa Majestade.

- Não será necessário também.

Isabella perguntou-se por que a limpeza não seria necessária contudo ela não era de questionar ordens. Foi só quando a jovem pegou seus objetos de batalha e saiu do quarto que reparou que não havia mais quaisquer sinais de sangue pelo piso.

- Bem, se é menos trabalho para mim então tanto faz - balbuciou para si mesma.

A garota de olhos azuis se dirigiu para a casa das serventes, obviamente, não sem antes dar o devido cumprimento aos gêmeos que guardavam as portas, afinal, se eles eram os guardas pessoais do Imperador, suas posições não eram diferentes das de um conde.

A jovem fungou ao passo que caminhava pela trilha, aquele cheiro não desaparecia de seu nariz. Aquilo, por algum motivo, fê-la cogitar a respeito do homem de olhos vermelhos.

O Imperador não se parecia de todo com um imperador, mas quando Isabella olhava-o, ela não conseguiaencontrar outra coisa que pudesse se encaixar melhor nele. A jovem já passara uma boa dose de tempo naquele castelo e já tinha visto sua quota de nobres. Todos eles eram semelhantes no sentido da elegância e no ar orgulhoso a sua volta, porém Sua Majestade, apesar de tão sofisticado quanto qualquer outro nobre, tinha um diferencial complexo e violento. Se Isabella pudesse descrevera diferença entre eles de alguma forma, a jovem diria que a realeza em sua maioria eram tigres nascidos e criados em cativeiros, tinham um grande potencial jogado no lixo e nunca mais poderiam recuperá-lo pois se saíssem de suas jaulas morreriam decerto, entretanto o Imperador Vermelho era um tigre fero colocado dentro de uma gaiola, ensandecido por uma fuga que jamais poderia realizar. Era aquilo que o tornava tão invulgar, a selvageria indócil presenteem cada fibra de seu corpo.

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