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Um dos casos mais singulares da carreira do delegado Basílio de Almeida, chefe da divisão de homicídios do Departamento Estadual de Investigações Criminais de São Paulo, com toda certeza, foi o do homem que se entregava.
Tudo começou numa tarde nublada em que a equipe de Basílio investigava um crime ocorrido na manhã do dia anterior. Àquela época, ainda na ativa, fumante inveterado, debruçara-se sobre sua mesa, pensativo. Um crime praticamente solucionado, aquele do médico Ricardo Neves, que fora morto com um tiro pela própria esposa. Um crime passional. Ricardo Neves tinha uma amante e a mulher descobrira. Assim, ela atirara no marido e fugira, sendo seu paradeiro até então desconhecido. Contra ela, muitos indícios e, por ser uma questão de tempo encontrá-la, logo aquele caso estaria resolvido. O que o delegado não poderia imaginar seriam os fatos que ocorreriam a seguir. Seu assistente, o Madeira, um negro forte e alto, entrou na sala rapidamente, preocupado:
— Basílio, Basílio.
Basílio estava absorto, cofiando seu espesso bigode, como de costume, olhando fixamente para a mesa, onde reinava o caos.
— Basílio!
— Sim? Ah, Madeira. Fale!
— Algo muito estranho acaba de acontecer. Tem a ver com a morte do Ricardo Neves.
— Com a morte de Ricardo? Como assim? O caso está solucionado.
— Acabei de receber um telefonema da 35ª DP. Um homem se apresentou lá, dizendo que foi ele quem assassinou Ricardo Neves.
— O quê?
— Isso mesmo! Ele se entregou à polícia, dizendo que foi ele quem matou o médico.
Basílio deu uma gargalhada:
— Mas como, se foi a esposa? Você mesmo chefiou a equipe ontem, que investigou o caso a pedido da própria 35ª. Eu ainda não tive tempo de me inteirar de tudo, mas vocês me garantiram que foi a mulher dele. Então, não foi ela? O que há? Vocês comeram alguma bola? Será que tenho de acompanhar tudo de perto, não posso confiar nada a ninguém?
— Não, delegado, claro que não houve erro. A mulher matou o marido mesmo. Não há dúvidas disto. Há muitas provas e testemunhas contra ela. Tanto que, após o crime, ela desapareceu. Fugiu e ninguém sabe onde está.
— E quem é este meliante, então, que se diz o criminoso?
— Não sei. Mas com certeza é alguém que quer aparecer às custas da polícia.
— Bem, vá até a 35ª e tome o depoimento deste infeliz. No máximo, como você diz, é um idiota que não tem o que fazer e quer aparecer. Pendure uma melancia no pescoço dele, por minha conta.
Isto havia sido no final da tarde. Basílio só conseguiria voltar ao departamento na tarde seguinte, devido a uma indisposição estomacal que tivera de madrugada e que, com certeza, fora fruto das gordurosas coxinhas e de um oleoso pastel que comera no almoço do dia anterior. Madeira já o esperava:
— Olá, delegado. Está melhor?
— Meu amigo, pensei que fosse colocar as tripas para fora. Que coisa! Mas já estou melhor, sim. Apenas um pouco enjoado.
— Está com tempo para falarmos sobre aquele caso?
— Caso? Que caso?
— O do Ricardo Neves... O homem que se entregou ontem...
— Ah, claro, claro! E aí? Como se chama o delinquente?
— Renato Gonçalves.
— E o que ele alega?
— Alega que matou Ricardo Neves. Curiosamente, ele sabe de todos os detalhes do caso.
— Ora, ele e toda a torcida do Corinthians! Os jornais de ontem publicaram tudo sobre o crime. Não há quem não saiba. Ricardo Neves era um médico conhecido. Mas não vá me dizer que você acreditou nele?
Madeira dispunha de muita paciência para com a impaciência de seu chefe:
— Claro que não, doutor.
— E não me chame de doutor, cacete, que não sou doutor. Quantas vezes vou ter que dizer isso?
— Parece que as coxinhas lhe fizeram realmente mal. Seu humor está péssimo.
Basílio puxou os cabelos para trás com a mão esquerda:
— É, tem razão. Desculpe-me.
Sentou-se:
— Mas, me diga, estou percebendo que você se interessou mesmo pelo tal de Renato. Como ele é?
— É um sujeito magro, cabelo ralo. Um nariz grande, curvo para o lado, talvez por causa de uma fratura. Um queixo proeminente. Um sujeito muito esquisito. Mas é como o senhor disse, tudo o que ele falou certamente leu nos jornais. Ele não acrescentou nenhum detalhe novo, que pudesse corroborar sua história. Muito pelo contrário. Há várias lacunas em seu depoimento, que tudo indica não ter ele nada a ver com o crime mesmo. E nem poderia ter, pois não temos dúvidas, foi a esposa.
Basílio acendeu um cigarro:
— Bem, então é como pensamos, é somente um lunático que quer aparecer.
— E isto ele conseguiu. Nesta manhã, foi o rosto dele que esteve estampado em todos os jornais.
— É mesmo? Nem tive tempo de olhar os jornais hoje. Mas por que será que ele fez isto? Só para aparecer mesmo? Isto é obstrução à justiça. Podemos metê-lo em cana. Levantou a ficha dele?
— É aí que está, doutor... Quero dizer, Basílio. Aí está o meu interesse nele. Ele já fez isto, outras vezes. A bem da verdade, oito vezes. Esta foi a nona.
— Como assim, fez isto antes?
— Entregar-se por um crime que não cometeu.
— Então é um doido varrido mesmo!
— É o que parece. Já esteve até internado num manicômio. Levantei os antecedentes dele. Ele é paranaense. Mas ainda não tenho todos os detalhes.
Basílio interessou-se pelo caso. Por que alguém alimentaria um hábito tão esdrúxulo como aquele, entregar-se à polícia por crimes não cometidos? Haveria ali algo mais do que a simples ação de um maluco?
— Madeira, agora sou eu quem quer saber tudo a respeito deste doido. Não meça esforços. Ele não tem nada a ver com a morte de Ricardo Neves, isto é ponto pacífico. Por isto, continuem atrás da esposa. Porém, quero saber mais sobre este lunático. Algo me diz que existe alguma coisa por trás de tudo isto.
Um caso serial, sem dúvida, porém, não um caso serial comum, como de hábito, onde um indivíduo comete assassinatos em série, alinhavando suas vítimas, uma a uma, através de algum ritual, marca ou signo. Tratava-se de uma série de crimes, sim, porém sem ligação alguma um com o outro, a não ser o fato de que um sujeito chamado Renato Gonçalves entregava-se à polícia dizendo-se o culpado, constatando-se, em todas as vezes, que ele próprio nada tinha a ver com nenhum dos casos. Assim, constituía-se não em uma série de atos de um mesmo indivíduo contra diversas vítimas, mas sim contra si mesmo.
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