Capítulo 1


Sérgio

– Meu filho, verificou se na mala tem tudo que você precisa? - perguntou minha mãe pela enésima vez.

– Verifiquei, mamãe. Não se preocupe. - disse enquanto segurava a mala e abria a porta da casinha simples onde vivera toda a minha vida.

– Desculpe se pareço preocupada, filho, mas é que você nunca foi pra fora daqui. Se você pudesse continuar seus estudos sem recorrer a isso...

– Não se culpe, mamãe. Sei que você e o papai fizeram tudo o que podiam por mim, às vezes as coisas é que são difíceis. Mas eu vou superar isso e ser alguém de que vocês possam ter orgulho, estejam certos. - olhei-a com certa consternação, vendo que, aos 38 anos, ela ainda conseguia ser uma mulher bonita, com seu cabelo louro, pele clara e olhos verdes, características que passou pra mim, embora o vestido velho que usava desbotasse um pouco essa beleza. Fiquei parado por alguns segundos para guardar essa imagem na memória e, engolindo o esforço para não chorar, dei-lhe um abraço e um beijo na testa, para depois ir à porteira do sítio, onde meu pai já me esperava na nossa caminhonete gasta.

– Tudo pronto, Sérgio? - perguntou naquele jeito simples e relativamente descansado dele. Ele tinha a mesma idade da minha mãe, embora as horas gastas no sol todos os dias plantando milho e feijão o fizessem parecer mais uns 10 anos mais velho. Ele tinha cabelo castanho, olhos igualmente verdes, pele bronzeada e 1,80 m de altura, que foi a característica mais marcante que me passou. Quando eu era menino, lembro-me dele me pôr nos ombros às vezes e caminhar comigo pelos campos, e do quanto eu me divertia ao ver o mundo do alto de suas costas largas. Ele trabalhava muito mas sempre esteve presente pra mim, e eu o estimava bastante por isso.

– Tudo pronto, papai. - coloquei a mala na parte de trás da caminhonete, entrei na cabine e seguimos viagem pra Curitiba em silêncio.

Enquanto passávamos pela estrada de barro e chegávamos ao asfalto, fiquei relembrando uma frase que lera na adolescência em "O ateneu", um dos romances da biblioteca da escola da vila: "Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta". Era assim que eu me sentia.

Tive uma infância normal, como a de muitas crianças da zona rural, estudando na escolinha, brincando com os amigos e, nas horas vagas, ajudando meu pai na lavoura. Contudo, meu divertimento preferido era percorrer a biblioteca pequena da escola em busca de histórias sobre lugares e pessoas que eu não conhecera, bem como escutar as aulas de História e Geografia de dona Raimunda sobre os outros estados do Brasil e os países lá de fora, ou aquelas que padre Ronaldo nos contava nos encontros com as turmas de catecismo, ministradas sempre nos fins de semana, quando ele vinha da paróquia para celebrar a missa nas capelas rurais. Num desses dias, ele nos contou a história de uma cidade chamada Lourdes, num país chamado França, onde Nossa Senhora apareceu para uma menina chamada Bernadette e ensinou-a a cavar um buraco de onde jorrou uma fonte milagrosa. Depois, ele mostrou uma grutinha pequena com imagens das duas, disse que um padre amigo dele a trouxera de lá e concluiu com uma proposta que agitou meu espírito:

– O primeiro que aprender de cor os dez mandamentos vai levar essa imagem pra casa.

Fiquei tão encantado com as imagens que respondi na mesma hora:

– Eu sei, padre.

– Sabe mesmo, Sérgio? Olha que mentir é feio – respondeu o velho sacerdote, que eu conhecia desde criança e sabia que apesar do jeito rígido, no fundo era uma pessoa bastante doce.

– Sei sim, a vovó me deu o livro de orações dela quando comecei as aulas de catecismo e eu o li todinho. Pode me perguntar.

– Ih, Sérgio, deixa de ser amostrado. Você não sabe é nada – falou Caio, um dos meus coleguinhas.

– Sei sim. Você é que não sabe de nada – disse e comecei a fazer cara feia pra ele.

– Nada disso, crianças. Já que o senhor Sérgio disse que sabe, vou fazer um exame em separado com todo mundo pra ver se alguém já sabe. Só que vai ter uma diferença: pra dar uma chance igual pra todo mundo, vocês vão entrar na minha sala, um a um, e responder lá. Ele, porém, vai falar por último e diante de todos. E mais: se alguém responder certo antes dele, vai levar a santinha – a sentença (que, devo admitir, era até justa) provocou risadinhas nos meus colegas, mas não titubeei. O padre iniciou a fila diante da sua sala, e embora eu estivesse com certo nervosismo de que alguém respondesse tudo antes de mim, foi com certo alívio que percebi que cada criança entrava lá com uma cara nervosa e saía de lá mais aborrecida ainda. Caio, então, olhou-me com uma cara bem ameaçadora. Quando todos já haviam passado, o padre saiu e disse que ninguém acertara e agora era a minha vez e, postando-me diante dele, respondi que os dez mandamentos da Igreja eram amar a Deus sobre todas as coisas, não tomar seu santo nome em vão, guardar domingos e festas, honrar pai e mãe, não matar, não pecar contra a castidade, não furtar, não levantar falso testemunho, não desejar a mulher do próximo e não cobiçar as coisas alheias. A verdade é que, para tristeza deles, minha avó não só me dera seu livro de orações como, desconfiada de que talvez as catequistas da capela não fossem boas o bastante, ensinou-me todas as orações principais e mais os dez mandamentos durante vários dias, antes que as aulas começassem. Ela me dizia que eu nunca abrisse mão de aprender nada, e agora eu via o quanto ela estava certa.

Impressionado, padre Ronaldo me deu um abraço e entregou-me a imagem, além de, com receio de que, por terem sido derrotados, meus colegas aprontassem alguma comigo ou com a santa, deixou-nos em casa pessoalmente. Quando papai foi recebê-lo, contou-lhe a história e lhe disse:

– Seu Armando, o Serginho não é um menino qualquer. Por favor, se um dia ele quiser voar, não o impeça.

Depois disso, sempre quando podia passava lá em casa com um ou outro livro novo e pedia para lê-los e comentá-los. Como o papai não podia gastar dinheiro com livros, eu achava isso ótimo, mas ele também fazia questão de dizer que conhecimento não era para ser arrogante, e sim para fazer algo de útil pro mundo. Por outro lado, embora achasse bom que eu gostasse de estudar, o papai também sempre fez questão de que eu continuasse a ajudá-lo na roça, pois dizia que era essencial que eu não me esquecesse de onde viera. O fato é que esses dois grandes homens, cada um ao seu modo, contribuíram para que eu fosse a pessoa que me tornei.

Quando cheguei à adolescência, duas coisas começaram a me preocupar: o fato de que as opções escolares pra mim já diminuíam (como a escolinha da vila só ia até o fundamental, comecei a estudar o ensino médio na escola de uma cidade próxima, onde tinha de ir e voltar de ônibus todas as tardes. Continuei a ajudar o papai na lavoura, e, para não comprometer a matéria, lia os livros didáticos no meu tempo livre e durante as viagens de ônibus) e que, como integrante do time de vôlei da turma, percebi que me sentia meio quente quando estava no meio de caras bem-apessoados, especialmente se eles fossem parrudos e mais velhos do que eu. Se eu quisesse viver uma vida além daquela realidade com que crescera, e principalmente, se eu não quisesse ter de me submeter à pressão de casar e ter filhos sem ter vocação para ser pai de família (o trabalho na roça e o vôlei me ajudaram a ficar alto e forte, e o fato de eu ser loiro e de olhos claros só reforçava o assédio que as meninas davam em cima de mim, mas fora uma ou outra que eu beijei para calar os comentários não conseguia me excitar com nenhuma) eu tinha de dar um jeito de sair dali e fazer faculdade. Mas como eu conseguiria me manter, sendo pobre e ainda por cima sem parentes em Curitiba?

Um dia, conversando com padre Ronaldo sobre essa inquietação, ele me sugeriu o seguinte:

– Sérgio, existe uma possibilidade, mas ela não é muito convencional. Você está pra fazer 18 anos, não está?

– Sim. O que isso tem a ver? - respondi sem entender nada.

– Você não estará na faixa etária do alistamento? Então porque não aproveita e ingressa no exército? Lá você teria casa, alimentação e subsídios para estudar. E tendo em vista o seu porte, acho que com certeza eles teriam interesse em você.

– Mas padre, pelo que eu sei é uma vida cheia de restrições e autoritarismo. Será que vale a pena me submeter a receber ordens de boçais só para seguir meus sonhos? - Admito que a imagem que tinha dos militares não era tão boa, especialmente por causa das histórias que eu lera sobre o golpe de 1964.

– Meu filho, as coisas mais importantes precisam de sacrifícios para serem obtidas. Sabe por que eu dei aquele conselho ao seu pai quando você era criança? Porque já naquela época eu percebi o quanto você se dedicava e se focava quando queria alguma coisa, e seria injusto uma capacidade dessas ser desperdiçada. Pessoas boas e ruins você encontrará em todos os lugares, de modo que se fixe nas pessoas boas e ignore as más. Não fique preso aos estereótipos, conheci militares de excelente caráter, e eles valorizam pessoas dedicadas. Se você quiser posso procurar informações sobre como você pode fazer e lhe repasso.

- O senhor está certo, padre, acho que vou seguir esse caminho – parecia ser loucura eu, sendo um gay virgem e no armário apenas por uma questão de comodidade pessoal, seguir uma carreira que desvalorizava gays, mas não seria o primeiro sapo que eu engoli na vida. Como padre Ronaldo disse, era uma porta que se abria, e se eu tivesse de fazer umas flexões, exercícios e aprender a atirar para poder cursar Direito, eu estava disposto. Nos meses seguintes, ele se informou com amigos sobre o que eu deveria fazer para ser admitido no exército, de maneira que, quando chegou a vez de me alistar, eu sabia todas as respostas certas e o próprio encarregado ficou admirado por ver um rapaz que, ao invés de se escusar do compromisso, desejava-o acima de qualquer coisa. Alguns dias depois, recebi uma carta dizendo que eu fora aprovado e deveria me apresentar em Curitiba, motivo pelo qual estávamos naquela viagem, com minha velha e querida Nossa Senhora de Lourdes muito segura na minha bagagem.

Antes de me deixar no quartel, meu pai me abraçou, momento em que o vi chorando pela primeira vez, e me disse:

– Meu filho, aconteça o que acontecer, nunca se esqueça de quem você é. Seja um homem bom e honesto, trate todos com respeito e gentileza e nunca gaste mais do que pode. Se você seguir essas regras, com certeza tudo será mais fácil.

– Obrigado, papai, pode ter certeza que tentarei fazer isso. E não se preocupe que vou mandar dinheiro pra vocês, sei que vai ser mais difícil manter a lavoura sem que eu lhe ajude. - na verdade, desde meus 14 e poucos anos que eu fazia o possível para não ser um peso para eles, tanto que comecei a dar aulas particulares pras famílias da roça e mesmo para alguns colegas pra ganhar algum dinheiro extra. Isso me ajudou até a comprar alguns livros não exatamente didáticos, como romances da moda.

– Não se preocupe, filho, eu não criei você para ser meu empregado, e sim para que vivesse a sua vida. Só lamento não poder te ajudar a fazer isso sem recorrer ao exército, mas saiba que sempre me orgulhei de você. - e depois de me dar mais um abraço, voltou para a caminhonete antes de ver que meus próprios olhos estavam marejados.

Ao entrar no quartel, recebi meu uniforme e algumas recomendações, para em seguida ser levado ao meu alojamento. Fui informado de que no dia seguinte começaria nosso treinamento, que naquele ano seria comandado pelo general Roberto de Castro Lopes, muito respeitado nas forças armadas por ter chefiado missões de paz no estrangeiro. Só espero que o fato de eu começar com um cara tão capacitado já seja um bom sinal, pensei enquanto me deitava e repousava de tantas emoções novas.

Roberto

– Bom dia, Roberto. Não preciso dizer mais uma vez como estou feliz por você estar se integrando a nós. - meu velho amigo, o coronel Luís Cardoso Filho, apertou minha mão quando entrei na sua sala.

– Eu é que agradeço, Luís. A morte de Marina e, algum tempo depois, a formatura de Gerson e o casamento de Mirella deixaram uma sensação de vazio imensa lá em casa. Estava com o início de uma depressão, e se você não tivesse me acenado com esse convite para supervisionar o treinamento dos novos recrutas não sei o que seria de mim agora. - respondi com sinceridade quando me sentei defronte sua mesa.

– Amigos são para isso. Além disso, o seu histórico como comandante de missões de paz em outros países é impecável. Uma pessoa com sua bagagem não pode ficar parada entregando-se à solidão. Tem de passar esse conhecimento para os mais jovens.

– Você está certo, mas é porque já não tenho o mesmo fôlego de antes. Muitas noites fora de casa, provações, dificuldades... Céus, ainda bem que não faltam muitos anos para minha aposentadoria! Daqui a pouco eu vou ter netos e quero estar presente na vida deles, não vou repetir meus erros. - comentei referindo-me a um dos meus maiores arrependimentos, que foi o fato de que, para progredir na carreira militar, nem sempre estive presente para minha mulher e meus filhos. Felizmente, graças à educação carinhosa que tive dos meus pais, consegui escapar do estereótipo do militar rígido e avesso a demonstrar emoções e tentei, na medida do possível, dar o melhor de mim para eles no meu tempo livre. Além disso, Marina era uma mulher muito sábia e conseguiu criá-los de maneira que eles entendessem que o pai deles não era ausente porque não se importava, e sim porque seu trabalho impunha sacrifícios. A morte dela há quatro anos, vítima de uma meningite, fora muito dolorosa, mas também contribuiu para que ficássemos mais próximos. Nós nos falávamos quase todos os dias por telefone ou skype.

– Vida de militar não é fácil, meu caro, mas felizmente seus filhos parecem compreender isso. Mas falando seriamente, Roberto, você nunca pensou em iniciar um novo relacionamento? Eu sei que perder sua esposa do jeito que você perdeu foi difícil, mas já se passou algum tempo, meu caro. O fato de você ter uma certa idade não quer dizer que você deva se fechar para o mundo, você sempre foi o que manteve a melhor forma entre os da nossa época. A Lídia me disse que não poucas das amigas dela já demonstraram interesse em você, se quiser posso te apresentar alguma.

– Luís, o fato de eu estar em forma é simplesmente porque meu pai morreu de ataque cardíaco antes dos 45 anos e minha mãe me fez prometer que eu não deixaria isso acontecer comigo, de forma que me vi na obrigação de cuidar sempre de minha saúde. Além disso, a academia me ajuda a ter foco e, ao menos por algum tempo, deixar as preocupações de lado. Mas quanto a arrumar pretendentes, esqueça. Simplesmente não consegui demonstrar interesse em alguém até agora, e aos 54 anos você já está num ponto em que não quer perder tempo com coisas que não importam. Não digo que estou fora do mercado, mas até o momento não estou disposto. - sem contar que ainda havia os meus filhos, e só começaria alguma coisa com alguém que pudesse apresentar a eles, nunca fui homem de fazer coisas clandestinamente, como se me envergonhasse, e não seria agora que faria isso.

– Tudo bem, vamos encerrar essa conversa por ora. Mas se precisar de alguma coisa, eu estou às suas ordens.

– Lembrarei disso, coronel. Mas por ora, creio que chegou a hora de conhecer a tropa. Vamos? - disse para encerrar o assunto.

– Vamos, na verdade eles estão esperando por você.

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