O fogo não tem sombra

Antes tudo era frio e unido, então na vibração eu surgi espalhando a massa através do meu corpo incorpóreo.

Erguendo-me, derretendo, agitando e explodindo entre gases, poeira e massa. Mais potente núcleo dos sólidos que se juntavam, para no fim descansar remansoso sob camadas e camadas do que nós erámos até virarmos somente eu da mesma forma que ainda somos nós. Não há sono para mim, pois mesmo contido sob a terra, eu ainda fervo e explodo expelindo meu ser do topo de picos abertos, são minhas bocarras.

Quando o relâmpago beija a árvore seca, eu estalo e existo, no verão eu me alastro entre os campos, faço correr os ratos, os corvos e as raposas do milho que se rompe perdido, mas há tempo em que sou pequeno, pseudocontrolado, sentam-se ao meu redor hipnotizados pelas minhas línguas douradas soltam as próprias ou ficam calados.

Sou tudo o que consumo e sou eu, os consumidos não podem ser eu, sobem aos céus em filetes ou montanhas ofuscando por pouco tempo meu olho que jamais pisca, que tudo vê, um dia ele se apagará, mas antes devorará você.

Por vezes sou azul aquecendo a chaleira de ervas que cura pulmões doentes, por vezes sou brasa laranja na ponta do cigarro que deixa pulmões doentes, por vezes sou folha amarela tremulando no topo das velas ouvindo preces, por vezes sou vermelho devorando insaciável tudo o que não preste.

Por vezes sou lilás nas pontas dos mastros dos navios em tempestade, por vezes sou brasa que aguarda e espera a eternidade.

Sou rastro, sou poder, sou selvagem. Não há nada que me mate, mesmo inexistente existo. Oxigênio, combustão e combustível. Me invocam, me apagam e me temem.

Não importa o que façam sou perene, a água machuca e chia, os prédios desabaram no incêndio, as cidades acabaram no incêndio, as florestas acabaram no incêndio. Brilho nos galhos, eles me espreitam, a carne caí sobre mim, salivam, o que eles temem à noite foge perante a minha presença, não tenho o que temer, temor não existe, eu sou o temido.

A flecha dispara comigo sacudindo, no piche eu cresço, é época de seca, há um lindo campo de flores, eu sou a coroa de pétalas naqueles que gritam.

Me acendem em suas comemorações de vitória, eles dizem que escreveram História, álcool e mais um milhão de vinhos, a tapeçaria estendida pelo salão de pedra, óleos perfumados das hastes em que saio, alguém tropeça, eu me espalho. Queimo as tapeçarias com histórias antigas, homens com histórias recentes, consumo todo o conhecimento da biblioteca que ninguém jamais tudo saberia.

Eu me espalho, eu me espalho, eu me espelho iluminando o farol para o mar velho. Iluminando mil ruas, observando parado crimes e amores abaixo da caixa de vidro sobre o poste.

Observando acenderem o cigarro, a lareira e movimentarem o trem por todo continente pelas barras de ferro que ajudei a moldar, pelas balas que ajudei a disparar, pelas marcas que ajudei a cravar.

Contam milhões de contos e estrelas, essas últimas todas minhas, tentam me tocar, bolhas nascem e estouram. Estou aqui, porém sou intangível. Sem peso. Sou e existo.

Deixo rastros, não sombras, nem dor e nem passado. Tudo atrás de mim é carvão e cinzas, o universo ainda irá muito queimar e novamente renascerá.

Deixo rastros, não deixo pistas, lembranças ou histórias. Não faço sombras, elas não vêm de mim, vêm dos outros ao meu redor, eu não deixo sombras. Eu não deixo nada e se deixo é porque não deixei de verdade concluso, voltarei e queimarei tudo.

Eu sou o fogo. Divino e infernal.

Eu sou fogo. Eterno.

Eu não conto histórias.

Eu não conto segredos.

Eu não sou vida.

Eu não sou morte.

Eu sou o fogo e eu não faço sombras.

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