O Fogo do Dragão
Caos. Melancolia. Tristeza. Solidão. Mergulhada nestes sentimentos, uma China despedaçada chorava lágrimas salgadas que caíam na terra árida. O sangue, que outrora corria alegremente nos corações, secava no interior dos corpos, escorrendo muitas das vezes para o exterior em rios de um encarnado profundo.
Durava já há longos anos a batalha contra os malditos dos Jian Shi. Por motivos incompreendidos, um grande número de cadáveres erguera-se em simultâneo das terras inférteis dos cemitérios, sedentos por energia vital. As suas almas, aprisionadas nos corpos deteriorados, sofriam uma metamorfose sinistra quando das carnes eram incapazes de se separar. Perseguiam os vivos, sugavam-lhes o Qi¹ e destroçavam-nos, deixando para trás corpos vazios, inanimados, sem vida alguma.
Desde tempos antigos, as lendas narravam a presença daquelas criaturas demoníacas, deambulando nas florestas sombrias à noite e nos pântanos esquecidos sob o crepúsculo. Mas, em todas as histórias escritas em pergaminhos envelhecidos, jamais em tempo algum se referia a existência de Jian Shi organizados numa espécie de sociedade tribal, munidos de espadas enferrujadas e a atuar como um exército renascido do mundo dos mortos. Contavam os mitos que aqueles eram seres perdidos, esquecidos, cuja única companhia era a própria solitude. Caçadores oportunistas no passado, era estranhíssima a mudança do paradigma do modo de vida daqueles monstrinhos.
Sabido era que, para os vivos, uma ameaça sobrenatural tomara as almas intactas de sobressalto. Os homens, com a armadura sobre os ombros, saíram das suas casas com o propósito nobre de banir os demónios que sucumbiam as aldeias indefesas. Deixavam para trás as mulheres, os filhos, os campos, o conforto do lar. Pelo caminho, encontravam a morte, o desespero e a angústia. De muitos só voltavam para casa a espada e o cavalo. Outros regressavam de espírito abalado, confusos, desorientados, entrelaçados num ciclo mental vicioso que à memória lhes ressuscitava as feridas da guerra. Depois do fervor das batalhas, travavam uma nova luta contra os fantasmas interiores que adotavam juntamente com os traumas. Alguns, apesar de os Jian Shi lhes terem poupado a vida, a sua força vital perdiam no combate arriçado contra as memórias pesadas dos companheiros caídos, tombando eles mesmos com um golpe da própria espada e da própria mão.
Fa Zhou, guerreiro condecorado, prezava os seus dias na calmaria da casinha serena em que vivia com a mulher, os dois filhos e a mãezinha cujos longos anos de vida e a grande sabedoria já pesavam nas costas vergadas. No entanto, nada é eterno. À sua porta, chegara um mensageiro com um pergaminho do Imperador. Davam conta as letras artisticamente desenhadas a negro no papiro amarelado do ressurgimento implacável dos Jian Shi e do seu avanço rápido em direção aos povoados. Assim sendo, cada família era incumbida de enviar um guerreiro hábil na arte de um dos cinco elementos para o conflito.
O homem, meio coxo e com os cabelos brancos cansados a cobrirem-lhe o topo da cabeça, olhou de relance para a sua prole que se divertia com o pequeno grilo de combate da família, famoso na imediações por ser um campeão nas disputas daqueles insetos: o rapaz, franzino, mal terminara de atravessar a infância; a rapariga, por sua vez, apesar de determinada e sagaz, tinha uma juventude inteira pela frente para desfrutar. Além disso, os exércitos eram inteiramente masculinos, pelo que a Fa Zhou não restava outra opção do que erguer de novo a espada em chamas.
Uma lágrima visitou as pálpebras do antigo guerreiro. No seu estado físico e com o peso dos anos desgastantes sobre os ombros, as hipóteses de poder ver outra vez o lume acesso na casa campestre e os familiares a soltarem gargalhadas alegres era muito reduzida.
Secou de imediato as gotas que lhe molhavam os globos oculares. Tentou esboçar um sorriso; afinal, alegria era o sentimento característico do clã ao qual a família Fa pertencia. Acercou-se dos seus entes queridos e convidou-os a sentarem-se no chão de pernas traçadas, numa roda improvisada. Lentamente, foi buscar alguma lenha, a qual pousou no centro do círculo. Num gesto solene e melancólico, acendeu uma chama crepitante com as próprias mãos, criando uma fogueira aconchegante.
- Recebi um pergaminho do Imperador. - Começou Fa Zhou. - Partirei em breve.
- Para a batalha, outra vez? - Replicou instantaneamente Hua Mulan, a filha mais velha.
- Mas os Jian Shi não tinham recuado? - Espantou-se a mãe dos jovens.
- Era o que pensávamos. - O rosto do homem entristeceu. - Mas parece que aqueles demónios voltaram. Já atacaram algumas aldeias da periferia.
- Não vás, pai. - Choramingou o miúdo.
- Eu vou voltar, filho.
- Queres acreditar, mas não o podes prometer. O pai mal consegue andar, quanto mais lutar contra aqueles monstros astutos sugadores de sangue!
- Mulan! - Admoestou o homem, elevando a voz.
Apesar da expressão aborrecida, no fundo do espírito, Fa Zhou sabia que a jovem tinha razão. Talvez aquela fosse a última vez que sentia o perfume floral da esposa nas narinas, o derradeiro abraço materno em que era envolvido pelos braços sábios da mais velha da família, a postrema memória dos filhos que gravaria na sua alma. Mas o dever chamava-o e a honra sobreponha-se a qualquer desejo egoísta. Tombaria pelo seu país, pela sua nação, pelo seu povo.
Despediu-se da família o melhor que conseguiu. Doía-lhe o coração contemplar a mágoa nos rostos daqueles que mais amava. Até Dídi², o cãozinho da casa, sempre irrequieto, tinha a cauda baixa e gania a meia voz.
Vestiria novamente a armadura e manejaria a espada, atravessando-a nos peitos e nos crânios daquelas criaturas moribundas que deixavam um rasto de desconsolo a cada passada que davam. Pelo Fogo da sua tribo, pelo Clã Huo³, por um futuro onde as risadas corriam soltas ao sabor do vento.
***
A avó Fa acordou sobressaltada na escuridão noturna. Podia ser velha, mas tinha bom ouvido. Jurava ter escutado passos leves no chão de madeira, passadas que, apesar de firmes, se deslocavam suavemente sob o pavimento.
Levantou-se do seu leito e iluminou o corredor com a própria chama. O silêncio do sono tomava conta da casa. Talvez tivesse sido um sonho, um pesadelo, um demónio da sua imaginação provocado pela incerteza quanto ao destino do filho.
No entanto, a idosa não duvidava dos seus tímpanos infalíveis. Tinha ouvido passos. E continuava a ouvir.
Investigou a casa. Os vasos, os pratos, as flores e as cerâmicas repousavam quietos, estáticos e calados no mesmo sítio de sempre. A mais velha da família Fa prosseguiu a busca pelo autor dos sons que a haviam despertado do seu sono.
Levou-a a intuição que visitasse a sala de treino do filho. O pasmo assombrou-a quando se apercebeu da ausência da armadura e da espada militares. Correu para o quarto de Fa Zhou, tão depressa quanto as pernas enfraquecidas pelos anos vigorosos a permitiram.
O coração desassossegado acalmou-se quando os roucos do homem chegaram aos ouvidos da idosa. O compasso acelerado cessou assim que, pelo canto do olho, vislumbrou o antigo guerreiro embrulhado em lençóis no seu leito.
A mulher quase centenária deixou escapar um suspiro de alívio. Por descargo do consciência, visitou também os locais de sono dos restantes familiares. A nora, de tanto se preocupar com a partida vindoura do marido, havia fechado as pálpebras cansadas. O netinho, enroscado, já há muito desbravava o mundo onírico. Mas a neta não se encontrava debaixo dos panos minuciosamente enrolados na cama, de forma a se assemelharem a um corpo adormecido.
Aos ouvidos da avó, chegou o relinchar de um cavalo. Enquanto avançava apressada pela casa afligida pela ideia que começava a ganhar forma na sua racionalidade, a velha pisou algo que veio a confirmar as suas suspeitas mais terríveis. Era macio, suave, perfumado e de um negro brilhante. Um monte de cabelos, cortado à pressa, descansava sob o pavimento, ao lado de uma tesoura.
Pela janela, a idosa ainda captara o movimento rápido do equino que na garupa transportava uma jovem tenaz e valente, de espírito abnegado e mente destemida.
Sabendo que nada podia fazer para impedir a partida de Hua Mulan, a avó Fa acendeu umas quantas velas esperançosas no altar com a pequena chama viva que criara no seu dedo indicador. Inspirou fundo. A neta era uma jovem corajosa e perseverante, mas a ameaça que a cada dia aumentava o seu império era temerária. A Mulan não lhe bastaria o talento na artes pirocinéticas nem a confiança e a astúcia que reinavam no seu íntimo para sobreviver e regressar a casa. A velha queimou algum incenso e cerrou os olhos. Ingeriu o ar ao seu redor como quem saboreia a água bem-aventurada que lhe surge num dia seco de Sol tórrido.
- Meus ancestrais do Clã Huo! Nesta noite nebulosa, eu peço que o Yin⁴ ilumine a jornada da minha neta com a luz lunar que irrompe o breu e as trevas! Que os ancestrais ajudem Hua Mulan no seu trilho e alumiem o seu caminho com a chama alegre do fogo eufórico do nosso Clã!
Os olhos vazios do dragão de rocha de um vermelho vítreo que descansava no altar à luz das candeias cintilaram em sinal de resposta. A idosa continuou a murmurar palavras impercetíveis na tentativa de rogar aos ancestrais e aos bons espíritos a proteção da sua querida neta.
***
Hua Mulan apresentou-se no exército como Fa Ping, filho mais velho do grande guerreiro Fa Zhou. Montava o atlético cavalo do seu pai, Khan, e vergava a armadura vermelha do condecorado general, o que motivou elogios por parte dos seus colegas de batalha. Apesar de o sentimento de camaradagem entre os jovens soldados ser intenso, Mulan não tencionava, de todo, ser o centro das atenções. Quanto menos desse nas vistas, mais segura estaria a identidade que escondia por baixo do capacete e da restante vestimenta militar.
Distante e quase sempre em silêncio, a jovem admirava as artes de manipulação dos elementos dos outros clãs durante os treinos. Os soldados do Clã Tú⁵, com as suas armaduras amarelas ou castanhas sempre cheias de pó, provocavam impressionantes remoinhos de terra com mero toque do dedo indicador no chão. Com uma simples pisada, o solo respondia-lhes com um violento abalo que causava a queda instantânea a qualquer adversário que caminhasse na direção de um guerreiro Tú. Num assobio, aqueles jovens invocavam a força imponente das rochas, que se fragmentavam fatalmente em lascas cortantes ou caíam em blocos esmagando os inimigos.
Perto de um pequeno curso fluvial, os membros do Clã Shui⁶, em movimentos lentos, sentiam a leveza e a pureza da água. Tendiam a ser mais calmos e introspetivos relativamente aos restantes clãs, embora fosse deveras incauto subestimar o poder destrutivo da água enraivecida. Exibiam uma indumentária de um azul escuro profundo, que lembrava a serenidade do mar. O oceano atrai os olhos curiosos pela beleza das suas marés e da sua cadência, mas também sabe ser traiçoeiro. Um mero remoinho pode afundar a maior das embarcações. Um tsunami, em escassos segundos, torna História a mais avançada das cidades. Uma corrente inesperada arrasta consigo tudo o que nos seus caminhos encontrar. E aqueles jovens Shui, como patronos da água, guardavam no seu interior todas essas técnicas para utilizar no momento certo, interrompendo momentaneamente a postura inofensiva e indefesa que aparentavam.
Nas imediações de uma mina, a fração do batalhão pertencente ao Clã Jin⁷ extraía freneticamente minérios de metal. Artesãos hábeis, moldavam as espadas mais bonitas e mais leves de toda a China. Era um espetáculo agradável de se observar ver um Jin pedir às profundezas das grutas fragmentos metálicos e, segundos depois, manejar uma arma entalhada com baixos relevos invejáveis. Dava pena ver uma espada daquelas a mergulhar no cheiro férrico do sangue e no odor da morte das carnes, quando os seus detalhes eram dignos de serem contemplados durante todas as horas que iam do nascer ao pôr do Sol. No entanto, que não se duvidasse da resistência de uma lâmina tecida por um Jin: inquebrável, resiliente e firme, assim era a arma de um guerreiro das famílias do metal. Sagrada era a ligação entre a espada e o seu portador de armadura branca ou prateada. Aqueles jovens, pelo seu talento inato na arte da guerra, eram uma peça fundamental no jogo mortal contra os Jian Shi.
Na solitude de uma floresta ali próxima, os soldados do Clã Mú⁸ reuniam-se ao redor de uma árvore imponente. De olhos fechados, interpretavam os sinais que o ser lenhoso lhes enviava. Sentiam a sua energia, o fluido que corria nas suas entranhas, o movimento das suas folhas e o fluxo da vida que se materializa naquele ser de tronco castanho e copa verde. Numa guerra, comunicar com árvores, arbustos e outras plantas podia parecer tão inútil quanto um guerreiro com medo de sangue e de lâminas. Mas era insensato desprezar aqueles elementos implacáveis. As plantas, na brandura, também sabiam ser letais. Uma inteligível libertação de compostos voláteis e de pólens causava grandes danos nos pulmões dos oponentes. Um tronco imprevisível no caminho de um cavaleiro era o suficiente para provocar a sua queda. Umas heras silenciosas e furtivas enrolavam-se vagarosamente ao redor dos tornozelos do inimigo, restringindo-lhe os movimentos de forma surpreendente. Até uma fruta pesada que caía repentinamente no cimo da cabeça do adversário podia provocar um dano assombroso. E os Mú conheciam todos os segredos que se escondiam atrás das folhas serenas e das flores perfumadas dos seres vegetais que às ordens dos membros desse clã se vergavam.
Chamava a atenção de Mulan, escondida atrás de um arbusto frondoso, um jovem que coordenava o treino dos Mú. Os companheiros chamavam-no de Li Shang. Através das suas instruções firmes, Li Shang transmitia confiança aos seus colegas. O seu olhar atento absorvia as qualidades e os defeitos de cada um dos soldados e transformava essas informações em palavras que ora elogiavam, ora incentivavam, ora ajudavam a melhorar. A expressão destemida no rosto deixava vislumbrar o coração audacioso e o espírito intrépido do guerreiro. O medo era convertido em esperança, o sentimento mais poderoso quando se enfrenta o terror em pessoa.
Hua Mulan apercebeu-se do aproximar de alguns Huo, membros do seu clã, que gritavam por um tal de Fa Ping. Tinha de regressar à sua máscara e deixar de lado as suas emoções. Estava ali para lutar pelo seu pai e proteger o irmão, a mãe, a avó, a aldeia e o país. Vingar-se-ia dos Jian Shi e voltaria para casa.
***
Mulan ergueu o tronco alarmada com um barulho que a despertou do seu sono. Parecia que alguém muito desajeitado estava com insónias e deambulava aos tropeções do lado de fora das tendas. Ou seria que o exército tinha recrutado um sonâmbulo?
As passadas desastradas e barulhentas levavam a jovem momentaneamente a excluir a hipótese de uma visita dos demónios sugadores de Qi ao acampamento militar. Mas a verdade é que alguém rondava a sua tenda e fazia intenções de abandonar a área. Os Jian Shi estavam cada vez mais imprevisíveis e astutos. Talvez rondar tendas militares e produzir ruído propositadamente fosse a sua mais recente técnica de passarem despercebidos, à espera do momento perfeito para atacar. Ou talvez fosse apenas um ladrãozeco iniciante na arte furtiva.
Mulan fechou o punho firme à volta do cabo da espada. Lentamente, saiu da tenda, com as pálpebras bem abertas.
Estranhamente, ouviu um latido familiar. Viu um vulto familiar. Reconheceu uma cauda a abanar familiar e umas orelhas arrebitadas também familiares.
- Dídi! - Chamou a jovem, ao ver o cãozinho da família. - Como é que chegaste até aqui?
- Eu trouxe-o. Aceito um pagamento pelo serviço de transporte.
Mulan virou-se. Pequeno, franzino e com um ar superior, um dragãozinho diminuto de escamas vermelhas gesticulava engraçado enquanto com uma expressão malandra nos olhos.
- Permite-me que me apresente, cara guerreira. Sou Mushu, um dos maiores dragões do Clã Huo. - Disse a criatura, numa vénia desajeitada.
- Um dos maiores?
Mulan torceu o nariz. Aquele bicho parecia tudo menos um dragão. Dragões eram enormes e majestosos e, além disso, não andavam escondidos atrás das tendas à noite a tropeçar em tudo o que lhes aparecia e muito menos a levar cães aos soldados. Aliás, via-se pela expressão cansada, suja e sedenta do cãozinho que tinha sido o animal a caminhar por si mesmo até encontrar a dona. Mushu, pela certa, ter-se-ia aproveitado e seguido o bicho. Aquele demoniozinho até era divertido, mas não era um dragão certamente.
- Sabes, minha guerreira, é como dizem: o tamanho pouco importa. O que interessa é a personalidade.
A jovem soltou uma gargalhada sonora. Aquele monstrinho fazia-a rir com os seus gestos exagerados e espampanantes.
- Trouxe-te um amuleto como sinal da minha lealdade.
Mushu mostrou as patas dianteiras. Nelas, repousava sonolento um inseto já conhecido pela humana.
- Cri-Kee! - Exclamou Mulan entusiasmada.
- Ouvi o chamamento da tua tia, minha jovem, e vim em teu auxílio como pedido.
- Tia?
Hua Mulan não tinha contacto próximo com tia. Aliás, nem sabia da existência de nenhuma tia sua na árvore genealógica da família Fa.
- Uma velhinha, curvada, de cabelos brancos e, permite-me dizer, muito assertiva.
- A avó Fa?
- Isso! - Retorquiu o dragão, num estalar de dedos. - Como vês, a minha ajuda é in-dis-pen-sá-vel.
A jovem sorriu com o soletrar do bicho. Permaneceram durante o resto da noite numa conversa animada ao relento, com Dídi a dormitar no colo da dona e Cri-Kee a cantarolar na escuridão serena.
***
- Recuar! Recuar!
Bravos, intrémulos e valorosos, os soldados avançavam de espada em punho na direção de um batalhão de Jian Shi. Os humanos estavam claramente em desvantagem. Além de serem em menor número, as suas armas e as suas artes cinéticas não pareciam causar danos significativos nos demónios que se contentavam em extrair o fluido vital das suas presas. O cheiro a ferro inundava o campo de batalha e tornava-se mais intenso quantos mais corpos tombavam vazios no chão. Pele branca e tensa preenchia as sobras do banquete dos demónios. Almas sem salvação, que nem a morte podiam viver sossegadas. Os monstros humanóides, com os seus rosnares, os seus fios de cabelo despenteados e os seus corpos magricelas, marchavam com uma alegria infernal sob os guerreiros, extraindo o máximo de Qi que conseguiam.
Mulan observava os seus companheiros de guerra, com alguns dos quais entretanto travara amizade durante os treinos, tombarem inanimados um por um. Desassossegava-lhe a alma a insistência do general em continuarem a lutar mesmo perante a derrota certa, ainda que as ordens de recuo já alastrassem entre os soldados.
Nem fogo, nem água, nem terra, nem madeira nem metal: as criaturas continuavam a avançar intactas, e até esboçavam um sorriso cínico naqueles lábios ressequidos e naquelas bocas desdentadas.
Por um momento, a jovem ficou estática, parada e quieta, rodando o pescoço em todas as direções. Para onde quer que olhasse, só vislumbrava destruição, caos e morte. À sua mente, veio a imagem do seu pai. Também ele estivera naqueles campos de batalha e sempre regressara a casa de braços para cumprimentar os filhos, acariciar a esposa e sossegar a mãe. Nos momentos em que regressava ao lar, mostrava o seu lado afetuoso, nunca referindo os traumas da guerra. Era um homem forte e, sobretudo, um bom homem.
Nasceu em Mulan uma vontade de seguir o exemplo de Fa Zhou. Olhou para os seus companheiros e estendeu-lhes a mão. Manejou a espada, não por si, mas por aqueles que lhe eram queridos: a família e os amigos. Protegeu os feridos e encaminhou-os para um ponto seguro. Atacou de surpresa os inimigos, lançando-se furiosa sobre os demónios pelas costas, evitando a queda de mais soldados, que agradeciam veementemente a Fa Ping pelo auxílio.
No terreno da morte, um outro jovem seguia o espírito da rapariga: Li Shang. Furtivo, enrolava raízes à volta dos pés e dos pescoços das criaturas e lançava-lhes nuvens intensas de pólens. Os movimentos do membro do Clã Mú ditavam a sobrevivência de muitos guerreiros agradecidos.
Porém, uma imagem aterradora invadiu os globos oculares de Mulan: enquanto tentava levantar um companheiro que, ferido nas pernas, não se sustinha em pé, Li Shang foi atingido de surpresa pelas garras de um Jian Shi na parte traseira. Do seu abdómen, escorria um líquido vermelho com o qual o monstro fazia o prato principal do seu jantar.
- Li Shang! - Berrou a jovem, correndo na direção do amigo com o qual estreitara laços.
Mulan, enraivecida, soltou das palmas das mãos a chama mais viva que algum Huo alguma vez conjeturara. A criatura, afligida pela dor das queimaduras, rosnava e uivava, ao que a guerreira lhe respondia com uma labareda ainda mais acessa. Feito em cinzas, o Jian Shi viu o seu fim.
- Li Shang! Li Shang! - Choramingava a soldado perante o definhar do outro.
- Não há nada a fazer, Fa Ping. - Gaguejou o ferido, a meia voz.
- O meu nome não é Fa Ping. É Hua Mulan.
Num gesto desesperado e irracional, Mulan tirou o capacete e removeu a armadura, atirando o disfarce para um canto poeirento. Com uma pequena e ténue chama que acendeu na ponta do dedo indicador, a jovem tentava suturar os cortes profundos que o demónio deixara.
- Não vale a pena. É tarde.
- Não, não é.
- Deixa-me partir.
- Eu amo-te, Li Shang. - Confessou a guerreira, num gesto emotivo.
O soldado fechou os olhos uma última vez, com as lágrimas de dor derivadas da partida precoce a preencherem-lhe as pálpebras. No entanto, partia pleno. Cumprira o maior propósito que estabelecera consigo mesmo naquela batalha: ajudar o próximo e lutar contra os Jian Shi pelos que ocupavam um lugar na sua alma.
Mulan concentrou toda a sua raiva sob a forma de um grito agudo e penetrante, que ecoou por toda a China. Esbracejava, esperneava, gesticulava e berrava amaldiçoando os malditos dos Jian Shi.
- É uma mulher! É uma mulher! - Exclamou alguém.
Mulan saiu daquela batalha derrotada e desonrada. O corpo de Li Shang foi enviado num cavalo para a sua família. A rapariga foi chamada a se apresentar ao general, que a expulsou do exército e ainda teve a audácia de atribuir o desastre daquele confronto à presença de uma mulher disfarçada que, só por mero acaso, evitou que o número de baixas fosse substancialmente maior.
***
Mulan deambulava melancólica pelos caminhos perdidos de uma floresta, levando Khan à mão pelo arreio. Pontapeava as pedras que lhe empecilhavam o trajeto e levava os olhos fixos no chão.
- Uma guerreira nunca abaixa a espada!
Mushu, sempre com aquela sua excentricidade, tentava levantar o ânimo da jovem de todas as maneiras possíveis e imaginárias, sem sucesso.
- Não sou uma guerreira digna. Fui expulsa. - Lamentou-se a rapariga.
- Eles são uns ignorantes! Não sabem o que perdem em não terem lá uma Hua Mulan! O mal é deles!
- Acabou, Mushu. Vamos para casa.
- Onde é que vais com tanta pressa, moça? Não acabou, não! Isso querias tu!
- Ai não? - Perguntou a jovem, arqueando desconfiada uma sobrancelha.
- Eu tenho um segredo. - Murmurou o dragão, num tom quase inaudível. - Eu sei uma maneira de expulsar os Jian Shi para sempre das terras dos vivos.
- A sério?
Aos olhos de Mulan, Mushu só dizia aquelas palavras motivadoras, retocadas com a sua boa disposição eterna, para a animar.
- A sério! Mas é um caminho perigoso...
- Diz logo de uma vez por todas! - Gritou a rapariga, já a passar-se com o secretismo da criatura.
- Pronto, pronto, não é preciso tanta agressividade! Guarda essa raiva para a batalha! - Instruiu o ser fantástico, enquanto limpava os bigodes. - Dou-te o prazer de me seguires.
Nos seus movimentos excêntricos, Mushu encaminhou Mulan, acompanhada de Khan, Dídi e Cri-Kee, floresta adentro. À medida que avançavam entre o arvoredo, as penumbras tornavam-se mais densas e o ar mais pesado. O desespero reinava naqueles campos sombrios em que só a infelicidade tinha lugar.
O dragãozeco parou defronte de uma grande pedra que cobria uma gruta. Estava suja de pó da terra e apresentava uns adornos retorcidos em metal. Algumas plantinhas diminutas, resistentes e perseverantes, cobriam a rocha. Um pequeno riacho corria ali perto, preenchendo os ouvidos com a sua melodia mística e aprazível.
- É aqui. - Disse a criatura de escamas vermelhas, fazendo uma vénia.
- É aqui o quê?
- A entrada.
- A entrada para quê?
- Para o mundo dos espíritos e dos demónios. - Sussurrou o ser, revirando os globos oculares com receio. - Mas só os mais destemidos e intrépidos dos guerreiros podem entrar. Como tu.
- Esquece, Mushu. Não vale a pena. Não sou a pessoa indicada para essa façanha. Nem o Li Shang fui capaz de salvar em batalha...
A jovem calou-se. O vento intensificara-se repentinamente e tomara uma direção estranha. O sibilo entre as copas das árvores aumentava gradualmente de volume, como se de um cântico ancestral se tratasse.
Uma labareda crepitante atravessou os céus, num bater de asas enérgico ao qual se juntava um piar agudo. O grupo ergueu as cabeças na direção da abóbada celeste. Uma grande e majestosa ave em chamas cortava o ar com o seu voo impressionante.
- É uma Fenghuang! É uma Fenghuang! - Repetiu o dragão.
O pássaro do fogo pousou à frente da jovem. Lançou-lhe um som agradável de encorajamento e cobriu-a com a sua asa ardente. Mushu não mostrou receio da atitude da criatura: os membros do Clã Huo eram invulneráveis ao calor das chamas e, melhor do que ninguém, sentiam as suas emoções e as suas mensagens.
Depois de alguns instantes de confraternização com a guerreira, a Fenghuang levantou voo deixando um rasto de faúlhas de esperança.
- Será preciso mais algum sinal dos espíritos para te convencer que és a humana mais capaz para esta tarefa gloriosa?
Mulan respirou fundo, exalando as suas apreensões.
- Vamos, Mushu. Mostra-me o caminho. Vingarei a morte de Li Shang e não permitirei que esses malditos Jian Shi me tirem mais do que o que já tiraram.
- Assim é que eu gosto de ouvir a minha protegida falar! Tem o prazer de me seguir!
***
O mundo dos espíritos emanava uma atmosfera misteriosa. A água de cascatas cintilantes tocava melodiosamente as pedras dos leitos dos rios. Nas bordas dos cursos de água, cresciam árvores esplendorosas enfeitadas com líquenes coloridos. No solo, intrinsecamente infiltradas na terra castanha, as rochas exibiam os seus xenólitos metálicos que reluziam com a luz mística que alumiava aquele mundo.
Mushu parecia conhecer bem o território. Liderava o grupo e avançava em passos apressados, estranhamente silencioso. O seu palrear constante calara-se, para suspeita de Mulan.
- O que é que foi, Mushu?
- Estas terras nem sempre são amigáveis. - Respondeu o bicho num murmúrio tímido.
O quinteto continuou a enveredar pelos caminhos enigmáticos da dimensão dos demónios. A aura transcendental cobria quanta coisa que àquela esfera pertencesse. Mulan girava o pescoço constantemente, maravilhada com o cenário sublime em que imergira, seguindo-lhe o exemplo Cri-Kee, que passeava pousado no seu ombro, Khan e Dídi.
De súbito, os tímpanos da jovem captaram umas pisadas leves e rápidas nas folhas. O cão espetou as orelhas e levantou o focinho, contorcendo repetitivamente o nariz. Sentia um movimento entre os arbustos, uma criatura que observava os intrusos nas suas terras.
- Acho que estamos a ser seguidos. - Disse a rapariga.
- Estamos agora a ser seguidos! Impossível! - Contrapôs de imediato Mushu. - Eu não vejo ninguém.
- Não ouves os passos sorrateiros?
- É só imaginação. Imaginação, essa maldita que nos faz ouvir e ver e pensar muitas coisas que... que não passam de imaginação. I-ma-gi-na-ção. - Retorquiu a criatura, que parecia atrapalhada. - Além disso, quem é que nos seguiria? E porquê?
- Talvez porque um certo dragão diminuto e de escamas vermelhas tenha algumas explicações a dar.
Uma menina a entrar na pré-adolescência, que envergava um kimono rosa e lilás, com detalhes dourados, aproximou-se do grupo em passos delicados. Arrastava atrás de si uma espessa cauda vulpina de cor branca, a qual balançava enquanto os seus pés descalços pisavam a vegetação. Na cabeça, o cabelo negro pelos ombros ocultava duas pequenas orelhas pontiagudas e felpudas.
- Então, dragãozinho, quem é que roubou a pedra de jade?
- Pedra de jade? Qual pedra de jade?
- Não te faças de desentendido. Sabes bem do que falo.
- É hora de pegar na espada, minha guerreira. - Sussurrou Mushu ao ouvido de Mulan. - Os Hulijing, esses espíritos de raposa, nunca são confiáveis.
- Não? Olha que o Dídi não é da mesma opinião.
O ser draconiano rodou a cabeça na direção do canídeo. O canino, sentado muito direito, mantinha a boca firmemente fechada, num evidente esforço para não perder a compostura.
- Ele é um Shishi? - Questionou Mushu, incrédulo.
- É.
- Ele enganou-se! Ele queria abrir a boca em vez de fechá-la!
- Shishi nunca se enganam. Conhecem a natureza dos demónios. Abrem a boca para espantar os maus espíritos e fecham-na para proteger os bons. Seja lá quem for essa Hulijing, o seu âmago é puro. Nem todos os demónios de raposa são malévolos.
- Esse cão não é um verdadeiro Shishi! Está só a fingir!
- A avó Fa invocou um Shishi juntos dos ancestrais para guardar a minha família, quando a minha mãe estava grávida e o meu pai foi chamado pela segunda vez para a guerra.
- Pois... Agora que me lembro também fui invocado da mesma forma, tem lógica.
- Mentira! - Interveio a demónio, que assumira a sua forma animal. - Ele não foi invocado por ninguém!
- Na prática, eu fui. O outro dragão ausentou-se...
- Depois de partir a sua estátua propositadamente? Poupa-me, Mushu. Todos nós sabemos que os grandes dragões dos cinco elementos só podem transportar-se para o mundo dos mortais através da estátua no seu templo.
- Foi um acidente!
- Sinceramente, Mushu. Não é preciso tanto para um dragão menor ter destaque. Já não bastava teres roubado a pedra de jade e usado para o que usaste...
- Se estiveres a pensar o que eu acho, digo desde já que não foi culpa minha! Foi uma consequência imprevista!
- Consequência imprevista! - Riu-se a raposa branca. - A mexer com as almas dos mortos, estavas à espera de quê?
- Eu só queria trazer a filha daquele Imperador de volta. Teria dado uma grande imperatriz, permite-me dizê-lo.
- Jingwei morreu afogada e o destino dela é continuar metamorfoseada numa garça até cobrir o rio com seixos.
- Mas ela era tão jovem... Tinha tantas maravilhas para viver... Grandes mordomias, palácios gigantescos, vestidos da seda mais requintada, boa comida na mais fina porcelana chinesa...
- Chega, Mushu! - Cortou a demónio, que se transformara na sua forma humana. - Foi o desejo da princesa!
- Como é que podes ter tanta certeza?
- Ela conversou com um da minha espécie, um Hulijing. Dizia querer vingar-se do Mar do Leste transportando pedras das montanhas para evitar que a sua tragédia se repetisse.
- Pensamentos precipitados e insensatos!
- Precipitado e insensato é usar a pedra de jade para ressuscitar os defuntos! É claro que tinha de dar no que deu: um exército de Jian Shi a vaguear pelo mundo dos vivos. Se há algum mau espírito aqui, és tu, Mushu!
Mulan permanecera em silêncio durante toda a troca de palavras entre o dragão e a Hulijing. A sua garganta sentia o gosto amargo da saliva que em seco engolia, estupefacta com os segredos sombrios que o pequeno e simpático dragãozinho escondia atrás daquele seu ar bonacheirão.
- Mushu! - Repreendeu a jovem. - Do que é que ela está a falar?
- Eu... eu só queria reparar os meus erros. Fui invocado pelo Imperador para proteger a princesa e ela afogou-se no mar. Tentei trazê-la de volta e acabei por aprisionar mais almas nos corpos degradados do que o que era habitual. - Explicou-se a criatura, cujo permanente ar risonho se desvanecera. - Como castigo, a minha chama foi apagada e deixei de controlar o fogo. Pensei que se eu te conseguisse proteger, Hua Mulan, podia me redimir do meu passado.
- Impedindo o dragão invocado de viajar para o meu mundo? Não me parece um método correto, Mushu.
- O que é que querias que eu fizesse? Quando és desprezado para sempre pelos da tua espécie, não utilizas todos os meios que tens ao teu dispor para provar o teu valor?
- Isso não é justificação, Mushu! - Recriminou a guerreira. - Minha cara Hulijing, existe alguma maneira de impedir que os Jian Shi façam mais vítimas e tragam mais dor ao meu mundo?
- Sim. Recuperem a pedra de jade.
- Mas eu nem sequer sei bem onde é que está! - Resmungou o dragão.
- Memória fraca, meu amigo. - Disse o espírito vulpino.
- Mas é muito perigoso!
- Chega, Mushu. Apenas me mostra o caminho. - Pediu Mulan, iniciando a marcha em passos resolutos e mão no cabo da espada.
***
- É muito arriscado, Mulan.
- Cala-te, Mushu. Não quero ouvir mais essas tuas desculpas.
A humana, o dragão, o cavalo, o Shishi e o grilo contemplavam com respeito uma depressão profunda onde corria infinito um rio de lava enfurecido. O calor era intenso, mesmo no cimo do penhasco. A fúria do fogo ardente era sentida a uma distância razoável, como se a rocha incandescente gritasse um aviso em que aclamava pela sua bendita solidão.
Numa pequena plataforma formada por um fragmento rochoso saliente, um cristal esverdeado cintilava abandonado, replicando pelo seu resgate.
- Não havia mais nenhum sítio para te desfazeres dessa tal pedra de jade?
- Foi o que me lembrei na altura! Tencionava recuperá-la depois, mas fui rebaixado entretanto...
- Então a pedra está ali? - Perguntou a jovem, apontando para o rio lávico.
- Foi para ali que eu a atirei, portanto, acho que sim...
- Vou descer.
- Não, Mulan! É suicídio!
- Se for suicídio salvar o meu mundo e a minha família, então aceito cometer esse sacrifício.
- Mulan! Mulan!
Mas os berros do dragão não demoviam os intuitos da guerreira. A rapariga já principiara a arriscadíssima escalada. De respiração suspensa, o cavalo, o cão e o grilo observavam a sua dona a colocar cuidadosamente cada mão e cada pé, sempre sem temer as consequências fatais da sua queda.
Mushu esticava os bigodes nervoso. Não apreciava o ato audaz da jovem. Ainda que os membros do Clã Huo fossem imunes ao fogo, as suas habilidades não se aplicavam no mundo dos demónios. Se acontecesse alguma coisa à sua protegida, jamais se perdoaria em toda a eternidade.
Para aflição da criatura, aos seus olhos chegou uma imagem temível: um fragmento rochoso ao qual Mulan se agarrara, soltara-se do enorme maciço. A guerreira perdeu o equilíbrio e tentou compensar a falta de um apoio com os outros membros. Porém, um dos pés escorregou sobre a rocha erodida. Em consequência, o outro pé também perdeu o apoio. A mão que ainda se mantinha firme acabou por se mostrar insuficiente a suportar todo o peso do corpo e a rapariga entrou em queda livre em direção à lava intrépida que borbulhava enquanto aguardava a sua chegada.
Mushu, aterrorizado, não tardou a reagir: desprezando a sua própria vida, lançou-se através da depressão. Com o seu sopro, criou uma nuvem espessa que abafou a queda aparatosa da jovem.
Mulan abriu os olhos ao sentir que aterrara numa camada fofa, muito diferente da sensação que esperava de um rio de lava furibundo.
Numa outra nuvem ali próxima, repousava o dragãozinho, cujo corpo tremia violentamente com o susto de morte do qual ainda recuperava.
- Mushu! A tua chama!
A criatura vislumbrou as suas próprias escamas. Mais brilhantes do que nunca, exibiam um tom de um vermelho vívido como a labareda de uma fogueira crepitante. Além disso, conjurara nuvens, feito apenas possível a dragões que não tivessem sido punidos.
Animado, Mushu conjeturou mais um punhado de nuvens de um branco imaculado que auxiliaram Mulan a recuperar a pedra de jade e a regressar ao cimo do penhasco onde Dídi, Khan e Cri-Kee aguardavam ansiosos a humana e o ser draconiano.
À pedra de um verde místico, confluíram dezenas de sombras voláteis negras durante demorados instantes. O mineral absorveu lentamente as energias demoníacas libertadas quando tinha sido roubado. Em simultâneo, no mundo dos vivos, os Jian Shi, para espanto dos soldados em batalha, caíram inanimados num estrondo que gritava vitória para os mortais.
- Conseguimos, Mushu! - Exclamou a jovem, inspirando fundo depois do esforço.
- Acho que sim...
- Para quê tanta dúvida? Conseguimos! - Celebrou a guerreira, pegando no dragão ao colo. - E, além disso, o fogo acendeu-se novamente em ti! Redimiste-te!
O trio de animais juntou-se à comemoração que a rapariga, em êxtase, iniciara. Khan relinchava de alegria. A cauda de Dídi, imparável, quase que levantava um remoinho de vento. Cri-Kee cantarolava como na mais quente das noites de Verão.
Na entrada da gruta que dava acesso ao precipício vulcânico, um vulto já conhecido do grupo surgiu em passos delicados, ostentando no rosto um sorriso ténue.
- Guerreiros valorosos! Devo-lhes os meus parabéns, principalmente à humana! Os Hulijing decidiram conceder-te um desejo, Hua Mulan!
- A única coisa que quero, - Principiou a jovem, fitando a menina com orelhas e cauda de raposa nos olhos. - é voltar para casa e abraçar a minha família.
- De certeza? Podes pedir qualquer coisa! Grandes riquezas, um lugar na corte do Imperador...
- A única coisa que desejo é poder voltar para casa e viver sem receio do dia de amanhã.
- Que assim seja. Permite-me apenas te entregar uma lembrança dos espíritos.
A demónio estendeu uma semente pulsante à humana.
- O que é?
- Sei que perdeste alguém muito querido durante a batalha contra os Jian Shi. Desta semente que resguarda a sua alma, crescerá uma árvore em sua memória. Li Shang pediu-nos para que pudesse continuar a admirar a bravura daquela que lhe roubou o coração e em quem ele reconheceu desde o primeiro dia de treino militar os traços femininos.
Mulan, com uma lágrima a escorrer-lhe pelo rosto, aceitou de bom grado o objeto que a demónio vulpina lhe estendia. Saber que era correspondida pelo jovem do Clã Mú acendera-lhe uma chama reconfortante no peito.
***
Montada em Khan, Mulan voltou para casa, onde o seu regresso foi muito festejado pela família. A guerra fora declarada como vencida, com vitória para os mortais. Durante longos e bons anos, a família Fa prosperou geração após geração, nunca se esquecendo que, certa vez, uma jovem de espírito livre montara no seu cavalo pela calada da noite rumo ao perigo e que grandes façanhas empreendera para além dos territórios e dos mundos que o horizonte deixava vislumbrar, sacrificando-se para proteger a sua família.
Notas:
¹ Na cultura chinesa, o Qi é a força principal
² Em Mandarim, "irmãozinho". Na adaptação em animação de 1998 da Disney, "Little Brother" (em Português, "irmãozinho") é o nome do cão de Mulan
³ Em Mandarim, "fogo", um dos cinco elementos da cosmogonia chinesa
⁴ Na cosmogonia chinesa, o Yin é uma das três forças, e representa o feminino, a escuridão, as nuvens e a humidade
⁵ Em Mandarim, "fogo", um dos cinco elementos da cosmogonia chinesa
⁶ Em Mandarim, "água", um dos cinco elementos da cosmogonia chinesa
⁷ Em Mandarim, "metal", um dos cinco elementos da cosmogonia chinesa
⁸ Em Mandarim, "madeira", um dos cinco elementos da cosmogonia chinesa
(Total: 6396 palavras)
Monte, 2024
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