Seis - O longo verão
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Duas dúzias de malas. Era o que, entre presentes e pertences, levariam a Lima. Kilian não parecia se importar com aquela quantidade exagerada de bagagem, que só trazia à memória da princesa o tempo em que seria obrigada a passar sob o mesmo teto do que Sales de Ravin.
Enquanto Moises, o valete do rei, e Ingrid acomodavam as bagagens em um dos automóveis que os levaria ao aeroporto, Karen despedia-se do duque Dumas, seu primo, que permaneceria no Castelo Marisco na ausência da família real.
Percebendo a angústia da prima, ele deu a ela recomendações para manter a calma e não se deixar abater pelas provocações de Sales. Tentou dar-lhe também, alguns conselhos amorosos, mas Karen decidiu que os ignoraria.
Ela não era tão ingênua e tampouco estava tão desesperada para receber conselhos de alguém cujo empenho incessante era conquistar sua melhor amiga, a qual, assumidamente, caía de amores pelo rei.
Ao entrar no automóvel, lançou um olhar para o jardim do castelo. O lugar onde passou maravilhosos momentos da sua infância, entre aquelas tulipas de cores várias, tão bem cuidadas pelo senhor Arão. O velho jardineiro acenou para ela em despedida, enquanto regava suas plantas, e a princesa respondeu o gesto com um tchauzinho pesaroso.
Nunca antes fora tão difícil para a princesa partir de sua casa. Nunca houvera, também, um risco tão grande de que ela não voltasse.
Eles passaram pelos portões, pegando uma estrada longa, que serpenteava entre a vegetação da intocada mata. Ao seu lado direito, podia ouvir o marulho do Atlântico, que se agitava com braveza, e ela queria acreditar que o motivo de todo estardalhaço era que ele (o mar) não suportava vê-la partir. Não para um destino tão incerto.
Kilian fechou os olhos e não demorou muito mais do que alguns minutos para pegar no sono, deixando claro para Karen que ela estaria solitária durante o todo o percurso até o aeroporto. Ingrid e Moises eram os criados que os acompanhariam, mas viajavam ambos em um segundo automóvel, o mesmo que levava a bagagem da família.
Além dos dois, seguiria com eles também Portos, o oficial responsável pela guarda pessoal de Kilian. Este era jovem, polido, mas algo em seu olhar causava calafrios em Karen. Ele estava sentado no banco da frente, junto ao condutor do veículo e, ao espiá-la pelo espelho retrovisor, lançou-lhe um sorriso macabro.
Não eram raros os momentos em que a princesa tinha a impressão de que aquele homem tivesse algo contra ela − talvez a odiasse − e, mesmo se aquilo fosse coisa da sua cabeça, nunca ficaria confortável o bastante para se dar ao benefício da dúvida. Pressionando um botão no painel ao seu lado, ela sussurrou um pedido de licença e fez com que uma tela subisse entre as cabines, separando os compartimentos em que estavam.
Aqueles olhos sombrios, entretanto, ficaram em sua memória durante mais algum tempo. Ela se perguntou como alguém daquele tipo teria conquistado a confiança do irmão. De repente lhe ocorreu o pensamento de que existia muitas coisas sobre Kilian que ignorava. Coisas das quais jamais tinha se dado conta. Até agora.
Sobre o colo, Karen folheava um livro na intenção de ocupar a mente. Era uma história antiga, escrita na idade contemporânea, que ela mesma já havia lido algumas vezes. Com um mocinho que tinha problemas na fala e a irmã de seu melhor amigo, o livro falava sobre como o amor verdadeiro era capaz de vencer todas as diferenças.
De repente, alguma coisa fez seu estômago embrulhar, e a princesa se deu conta de que todos os sonhos ocultos que já tivera, imaginando que um dia iria se apaixonar por um homem que a tratasse da mesma forma como Simon tratava Daphne, estavam muito próximos de desvanecerem para sempre.
Karen passou os dedos sobre as páginas, o que trouxe a sua memória a forma como o primeiro pretendente que tivera reagira ao simples fato de que ela sorria demais. "Riso fácil", ele disse. E insinuou que ela não fosse de confiança.
Sales a detestava simplesmente pelo que era. E hoje, ela não tinha dúvida alguma, era recíproco.
A princesa não pôde deixar de se lembrar de Roque, e desejou em seu íntimo que ao menos ele não fosse como o irmão. Por mais que ela quisesse evitá-lo e que de maneira alguma desejasse aceitá-lo como marido, não estava assim tão segura de que conseguiria se livrar facilmente dos planos do imperador.
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A viagem de Salvaterra, capital de Vera Cruz, até Ravin, em Lima, foi tranquila como de costume. Karen conseguiu desligar-se de suas angústias e dormir um pouco durante aquelas duas horas que passou na aeronave real. Despertou apenas durante o pouso e percebeu que seu irmão a fitava.
Constrangido por ter sido pego, o rei desviou os olhos para a janela ao seu lado. Ela não conseguiu evitar desejar, em seu íntimo, que ele estivesse sentindo muita culpa pela situação em que a colocara. O relacionamento dos irmãos nunca estivera tão conturbado, desde que a princesa se lembrava.
Ao sair do ambiente climatizado do avião, Karen retirou o casaco e as luvas, entregando-os para Ingrid, que a acompanhava.
Sentiu o cheiro do verde, característico de Lima, e o ar quente e úmido chocou-se contra sua pele. Antes que deixassem o aeroporto, o tecido das costas do vestido que ela usava, já começava a molhar-se com suor.
Percorreram um curto caminho até o expresso imperial, como era chamado o veículo que os levaria até o palácio. Um homem robusto, impecavelmente uniformizado, os aguardava na porta e acenou, cumprimentando-os, assim que se aproximaram.
− Majestade. Vossa Alteza Real. Sejam bem-vindos de volta à Lima − disse, muito educado, enquanto abria a porta para que os dois se acomodassem.
Observando a paisagem que já conhecia bem, Karen não podia deixar de admitir que Ravin era uma cidade impressionante.
Fora projetada de maneira que o verde de sua vegetação convivesse harmonicamente com os enormes edifícios arranha-céus que se erguiam ao longo do caminho. Sob o indício de escuridão, que se aproximava com o entardecer, as luzes começavam a acender, deixando a cidade ainda mais encantadora.
Os letreiros luminosos e coloridos dividiam espaço com as grandes mangueiras, que sombreavam as ruas durante o dia. Lima era totalmente diferente de qualquer reino do sul equatorial, e indiscutivelmente destacava-se sobre eles. Não era à toa que o Império era considerado uma grande potência.
Deixando as pomposas construções e as luzes para trás, eles começaram a se aproximar de uma área predominantemente verde. Alguns rebanhos e um enorme vinhedo começavam a surgir e o estômago de Karen contraiu-se diante da compreensão de que já estavam dentro do território do castelo. À medida que adentravam a estrada ladrilhada, um enorme portão branco surgia na frente deles. Em seu centro, o brasão imperial reluzia imponente, com a figura de um leão dourado.
Enquanto o expresso imperial se aproximava, o leão dividiu-se ao meio, quando as portas metálicas se abriram, afastando-se para lados opostos. Passaram pelos portões, tomando o caminho através de uma pequena ponte, que atravessava o lago das vitórias régias. Surgiu na memória de Karen a lembrança de Sales, anos atrás, dizendo que aquela planta era capaz de sustentar o peso de uma pessoa.
Hoje, olhando para ela sob a lembrança da força do príncipe, a moça duvidava muito que alguém como ele estaria incluído naquela estatística.
A família imperial estava à sua espera na entrada, Dom Fernão e os filhos em posição de sentido e impecavelmente fardados. Alguns oficiais do exército do imperador se posicionaram a sua volta, em formação, além de criados do castelo.
Quando desembarcaram, o imperador foi o primeiro a cumprimentar Kilian, calorosamente.
Não parecia o mesmo homem que insinuara que seu irmão fosse um moleque, semanas atrás. Roque exibia um sorriso contido, sem tirar os olhos dela, ao contrário de Sales, que mal a encarava.
Ainda assim, todos vieram cumprimentá-la. A começar por Dom Fernão, que lhe deu um breve beijo nas costas da mão. Ele foi seguido pelo filho mais velho, que repetiu o gesto do pai, ainda sem erguer os olhos em sua direção.
Quando chegou a vez de Roque, ele se aproximou com cautela. Ao tomá-la pela mão, fez sobre ela uma carícia com o polegar, e sua boca demorou-se na pele da princesa por um tempo bem mais longo do que o necessário.
Uma leve sensação de náusea a atingiu, diante da tentativa de galanteio do jovem príncipe.
Kilian soltou um suspiro com pesar, parecendo notar a angústia da irmã, mas não disse coisa alguma. Em vez disso, o rei abriu um largo sorriso, cumprimentando Roque como a boa educação recomendava.
Aquele seria um longo verão.
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