Dois - O vestido branco
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Ingrid mordia as unhas, um hábito, na opinião de Karen, extremamente odioso.
Não importava o quanto a princesa insistisse para que ela parasse, sua dama de companhia era simplesmente incapaz de conter o impulso quando estava nervosa.
Depois pedia perdão pelos péssimos modos, mas Sua Alteza sabia que o arrependimento só duraria um minuto.
Karen estava em seu quarto, enquanto alguns andares abaixo dela o baile de seu décimo quinto aniversário acontecia.
O tecido do seu vestido branco de rendas francesas, que tinha uma longa cauda com aplicações de bordado dourado, escorreu por seu corpo, acomodando-se em volta dos pés.
O vestido foi um presente do irmão e agora ela sabia exatamente o porquê da escolha daquelas cores. A farda do príncipe Sales levava os tons da bandeira do império, uma bandeira branca, cujo centro possuía a ilustração de um enorme Leão Dourado, símbolo da família De Ravin.
Kilian planejara que Karen fosse o par perfeito para o príncipe, já que em breve selariam sua futura união. A única coisa que a tranquilizava era o fato de que anúncio público aconteceria apenas meses mais tarde.
Naquela noite, após o baile, o "acordo" aconteceria apenas em família.
A princípio, Ingrid tentou se opor à ideia da troca de vestidos. Mas sabia que não poderia ir contra a vontade de Sua Alteza. Por isso, a jovem roeu as unhas até não sobrar mais nada além da cabeça dos dedos para mordiscar.
A princesa, que parecia acuada quando chegou ao aposento, já exibia um sorriso travesso no rosto. Em todos aqueles anos, Ingrid podia dizer que já a conhecia bem.
Cada um dos seus fáceis sorrisos tinha um significado. Aquele, excepcionalmente maroto, não podia significar boa coisa.
Levantando um pé de cada vez, Karen saiu de dentro da veste da qual se despira. Seus pés tamanho trinta e seis, estavam cobertos por um precioso scarpin, revestido de pérolas, o qual dentre todos os que possuía, era seu preferido. Além de garantirem um caminhar satisfatoriamente elegante, aquele par lhe concedia doze centímetros a mais de altura.
Ela caminhou até uma gaveta, a qual abriu com cautela. Vasculhou por alguns segundos até que encontrasse o que procurava. Tirou de lá um lenço verde escuro, cuidadosamente dobrado, e quando finalmente o estendeu, lá estava ela: a bandeira de sua pátria. Era isso que ela faria hoje em seu baile: uma honra ao país do pai.
A bandeira de Vera Cruz era simples: uma cruz branca contornada por dois finos traços: vermelho e dourado, atravessava o verde escuro, sua cor predominante. Mas essa era a cor que Kilian e a maior parte de suas pretendentes usariam. Precisava de uma solução rápida e prática, quando de repente, olhando para seus vestidos usados, uma ideia lhe ocorreu.
− Ingrid! − chamou, fazendo a menina saltar sobre si mesma. − Você borda! Poderia fazer uma coisa para mim agora?
A dama ficou desconfiada, mas admitiu que podia bordar. Quando a ideia finalmente lhe foi exposta, entretanto, ela sugeriu algo mais prático.
− Se Vossa Alteza pretende usar esse modelo ainda esta noite – tentou explicar. − Creio que uma aplicação seja a melhor saída.
− Faça como quiser. Mas que seja resplandecente − ordenou, mal contendo a euforia.
Ingrid se pôs a trabalhar, e não conseguiu esconder que, no fundo, ficara orgulhosa da perspicácia da princesa. Não seria de todo mal que esse novo pretendente tivesse um pouco de trabalho, afinal.
− Veja só! Novecentos e noventa e sete anos após a Terceira Guerra e uma mulher não tem o direito de escolher com quem ou se quer se casar − pensava consigo mesma, enquanto fazia seu melhor trabalho.
Quando enfim terminou, ajudou Karen a vestir-se de novo. O mesmo modelo do qual acabara de despir-se, agora, porém, com as modificações que as duas fizeram.
Ao chegar à escada do salão de festas, Karen fora anunciada por um dos criados. Todos pareceram positivamente surpresos quando puseram os olhos nela, exceto pelo irmão que, com os olhos atônitos, não parava de pressionar a mandíbula − uma mania que tinha − em sinal de desaprovação.
Ela sabia que ele se sentira desafiado, o que em ocasiões normais, provavelmente não ocorreria. Era o reino dele que ela estava homenageando, afinal.
Enquanto descia, o maravilhoso tecido da sua saia deslizava pela escada. Nela, antes apenas branca com aplicações douradas, estava estampada uma grande cruz em seda vermelha, que há pouco pertencia à cauda de um vestido da princesa.
Ingrid aproveitara o bordado da própria peça para representar o tracejado dourado da bandeira. Só o verde faltava, mas o recado estava bem dado. Não existia espaço para qualquer leão ali. E já havia verde o suficiente no salão.
Do lado esquerdo do ambiente estavam quatro homens vestidos impecavelmente de branco. Um deles, de cabelo loiro acobreado, não tinha nenhum tom de dourado no fardamento, em vez disso, carregava uma medalha na forma de uma pequena cruz de contorno vermelho, o que significava Comando Real de Vera Cruz.
O sorriso caloroso no rosto, ela conhecia bem. Tratava-se de seu primo, Dumas Pascoal, duque de Ilhabela, comandante da Guarda Real do seu país e o que ela tinha de mais próximo em matéria de família, além de seu irmão. Pela expressão em seu rosto, Dumas parecia ter aprovado o traje da princesa. Ao lado dele, negro e altivo, estava o imperador de Lima. Apesar do título, o homem era relativamente jovem.
Não tanto quando seu irmão, é claro, mas não tão experiente quanto seu pai seria se estivesse entre eles. O imperador Dom Fernão de Ravin e seu pai, o rei Ur Orleans, foram amigos de guerra, o que garantiu a Vera Cruz alguns anos de aliança com a maior nação do Novo Mundo.
Ao lado dele, estavam seus filhos Sales e Roque, cujos olhares não desviavam dela.
Apesar do vestido e de todo o tule que compunha sua anágua, Karen se sentia despida por aqueles olhares. Nunca antes tivera tanta certeza de que aquelas pessoas eram completos desconhecidos.
Assim que alcançou o último degrau, o irmão aproximou-se dela, tomando-a pela mão e, inclinando a cabeça em sua direção, da forma mais discreta que pôde, sussurrou em seu ouvido:
− Diga-me o que isso significa.
Ela não conseguiu conter uma risada abafada, para completa irritação do rei, que cessou os passos e virou-se em sua direção, tomando o cuidado necessário para que quem estivesse em volta não percebesse o teor da conversa.
− Acha que isso é uma espécie de brincadeira, Karen? − insistiu, inexpressivo, tentando intimidá-la.
Mas ela o conhecia bem. Por baixo daquela pose de déspota irredutível, estava desesperado. Por um momento, sentiu pena do nervosismo do irmão, diante de sua travessura.
− De forma alguma, irmão. Eu apenas quis homenageá-lo. Não sei até quando estarei por aqui para honrar nossas cores, não mesmo?
Essas palavras o fizeram engolir em seco. Não que ele tivesse considerado que fossem sinceras, mas, ainda assim, decidiu que era conveniente mudar de assunto. Tomando-a pelo braço, anunciou que a levaria até o príncipe para que dançassem a primeira valsa.
O coração de Karen se apertou, mas ela sabia que, caso precisasse fazer uma cena, aquele não seria o local indicado.
Jamais constrangeria o irmão efetivamente na frente dos seus súditos. Se aquele aniversário tinha algum significado, era que ela não era mais uma criança.
Quando chegaram até a família imperial, Karen se esforçou para não ruborizar. Ela se lembrara dos conselhos da mãe sobre controlar a respiração da melhor maneira possível para manter os ânimos sob controle. E era boa nisso.
Aproveitou o momento em que se cumprimentavam para encarar os dois príncipes e sentia como se os estivesse vendo realmente pela primeira vez.
Roque, o mais novo, se aproximava um pouco mais de sua idade. Para falar com precisão, ele completaria dezessete em dois meses. Ainda assim, não era ele a pessoa a quem ela fora prometida − apesar de se sentir, na verdade, vendida.
O rapaz era magro e atlético, embora não muito alto para o padrão de sua família. Seus traços eram fortes: lábios grossos, como os do pai. O cabelo bem rente à cabeça, estilo militar, como o de um príncipe deveria ser.
Roque era como uma cópia não muito fiel de seu irmão, cujas feições eram parecidas, mas a altura e os músculos eram capazes de fazer qualquer pessoa distinguir os dois, mesmo a uma longa distância.
Diferiam também nos olhos. Os olhos de Roque eram negros como a noite, enquanto os do herdeiro do império, segundo todas as pessoas descreviam, eram cor de mel.
Mas Karen sempre achou que aquele tom se parecia mais com a cor de uma bala que ela costumava comer na infância. Bala de caramelo.
Olhos caramelos, são os que ele tem. Pensava.
Sales era pelo menos cinco centímetros mais alto do que ela. Isso quando a moça usava seus scarpins, o que garantia ao príncipe, no mínimo, dezessete centímetros de diferença. Seus ombros eram largos e os braços os acompanhavam em proporção. Ele não era o mais simpático entre os dois, mas era justamente com quem ela deveria se casar.
O príncipe Sales tocou em sua mão para beijá-la em cumprimento e, de repente, os pensamentos de Karen a levaram à sua suíte de Núpcias.
Ela estremeceu sob o pensamento de seu corpo, magro e com pouquíssima força, sendo tocado por aquelas mãos enormes.
Desejou, com toda sua alma, que houvesse alguma delicadeza por trás daquela figura bruta.
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