C A P I T U L O 0 4
Houve um tempo, eu me lembro
Que eu nunca tinha me sentido tão perdido
Quando senti todo o ódio
Era poderoso demais para parar
O vento forte faz com que meus cabelos voem enquanto olho pela janela do último andar do prédio alto. Vejo minha vida passar mais uma vez em frente aos meus olhos, enquanto respiro o ar fresco da noite.
Dentro do quarto o sangue se espalha, virando uma poça vermelha que vai penetrando pelos vãos do piso de porcelanato caro. Ainda que eu tenha saído do front, a morte nunca saiu de perto de mim, como minha eterna amiga e companheira.
Fecho os olhos e deixo o ar entrar em meus pulmões, sentindo uma vez mais a brisa fresca me resfriar de fora para dentro.
E só então me viro para o corpo baleado no chão.
A essa altura, eu não faço perguntas, apenas obedeço ordens como um robô programado faria. Sou programado para matar, qualquer coisa, qualquer pessoa.
Me ajoelho ao lado do cadáver, que a poucos minutos atrás era um homem que vivia e respirava. Não mais. Meus joelhos sujam com o líquido viscoso e vermelho enquanto alcanço no bolso do homem um envelope de papel branco. Me esforço para não manchar a coisa toda enquanto enfio o envelope ainda quase totalmente branco no bolso.
Saio de lá, sem me preocupar em ser visto, saio de lá, sem me importar com as matérias que no dia seguinte estamparão as capas de todos os jornais: “O fantasma russo faz mais uma vítima”.
Concordo que é um nome apropriado, afinal, parte de mim morreu a muito tempo. Algo, que nunca pôde ser recuperado, sou realmente como um fantasma, como a sombra de um homem, o reflexo de alguém que um dia existiu.
Meu peito havia sangrado como uma ferida aberta, vazando emoções e sentimentos que deveriam importar, até não restar mais nada em mim. Agora, sou tão vazio quanto o homem que jaz no chão do seu quarto caro.
No horário certo, o telefone toca. Não preciso olhar para tela informando “número desconhecido” para saber quem é do outro lado.
— Terminou o trabalho? — A voz fria pergunta.
— Sim, senhor general — respondo, meu tom igualmente frio.
— O envelope?
— Está comigo, senhor general.
— Algum imprevisto?
— Não senhor general.
— Volte para cá imediatamente então, Pasternak e entregue-o em minhas mãos. Estarei te aguardando — ele soa quase ansioso, o que é uma novidade vindo do homem sem emoções.
— Sim senhor, general.
E como um cão treinado eu acatava mais uma ordem, sem me importar com as consequências. Afinal, isso era uma guerra. É necessário quebrar alguns bons ovos se quer fazer uma omelete.
No térreo um homem me espera, como todas as outras vezes, ele sequer me cumprimenta, apenas me encara com os olhos semicerrados e se vira, esperando que eu o siga. Como o cão bem treinado que sou, eu o faço.
O carro segue a alta velocidade enquanto permito minha mente vagar para lugar nenhum. Fugindo de tudo o que me rodeia como sempre que possível me permito fazer.
Depois de algum tempo de viagem meu telefone toca, eu o levo a orelha, sem conferir, uma vez que é sempre uma única pessoa esperando do outro lado da linha.
— Sim senhor general? Algum problema?
— Desculpe, esse telefone pertence a Andrei Pasternak? Me disseram que eu poderia falar com ele nesse número.
— Quem está falando? — Pergunto para a voz feminina.
— Cat. Catherine, eu gostaria de pedir um favor. Meu primo serviu no exército com você…
Ela para de falar esperando uma resposta que não vem, depois de algum tempo segue, permanecendo inabalada, com sua voz bonita.
— Meu primo se chamava Mark, Mark Ivanov. Cabelo loiro, olhos azuis, sabe quem é? Me passaram esse telefone para falar com você.
— Não sei do que você está falando — respondo imediatamente, sem nem ao menos sentir o peso da mentira em meus lábios.
— Preciso de alguns documentos do Mark que ficaram em posse do seu colega, me disseram…
— Devem ter te passado o número errado, não conheço ninguém com esse nome. — Digo e desligo o aparelho rapidamente.
Solto um suspiro, encarando a paisagem que passa como um raio do lado de fora do veículo. Parte de mim, tem a consciência de que eu deveria entregar os documentos a mulher, ela que escreveu infinitas cartas para o primo, ela que fez questão de ser uma presença constante em sua vida, trazendo um pouco de alegria aos dias tristes do front. Quem sou eu para querer algo para mim? Para querer tomar da mulher algo que por direito deveria pertencer a ela? Uma vez que, enquanto ela fez tudo para trazer alegria e normalidade a sua vida, enquanto eu, a única coisa que consegui fazer foi me debruçar sobre seu corpo enquanto assistia seus olhos perderem a cor com a vida se esvaindo do seu ser.
Pensar na morte do Mark ainda é algo que enche meu peito de dor, perdemos tudo o que nem mesmo chegamos a ter. Sou egoísta por querer mantê-lo comigo, como o fantasma do natal passado prestes a me lembrar incontáveis vezes do quanto fracassei, de como ele não está vivo por culpa exclusivamente minha.
Respiro fundo e quase posso sentir seu perfume mais uma vez, trazido pelo vento como uma lembrança. Se eu me concentrar bastante ainda posso ouvir sua voz rindo logo depois de me criticar por falar um palavrão. Eu nem mesmo consigo falar um palavrão hoje em dia, sem me sentir atormentado por sua lembrança.
Solto um suspiro e sinto uma lágrima escorrer pelo meu rosto… aperto meus dedos em torno do meu punho até sentir minhas unhas formando meias-luas em minha pele.
Preciso me controlar, preciso voltar a mim antes de me encontrar com o general. Um fantasma não deveria ter sentimentos.
— Mandou me chamar senhor general?
Menos de 24 horas se passaram e cá estou eu, prestes a receber uma nova missão. Sinto os olhos do general em mim, me avaliando, medindo quão confiável posso ser. Não é a primeira vez que ele o faz, mas algo parece diferente desta vez.
— Estamos há anos caçando um homem. Ele é um dos maiores inimigos da Rússia atualmente, conseguimos descobrir seu endereço duas vezes, através de cartas que interceptamos. Porém, nenhum homem jamais conseguiu voltar com vida.
— Não seria a primeira vez que enfrento um inimigo desse tipo, senhor general.
— Não o subestime. Todo o seu trabalho, foi um preparo para este momento. Você pode mudar o destino de todo o mundo se for esperto, só preciso saber que vai conseguir cumprir seu objetivo.
— Eu nunca falhei antes, senhor general. Essa não será a primeira vez. Faço o que for necessário, tem minha palavra.
— Confio em você Andrei. Você é minha única esperança. Preciso desse homem morto, o futuro do mundo depende de você.
— Farei tudo o que for necessário, senhor general.
Estendo minha mão para pegar a pasta com as informações da missão, mais uma vez sinto os olhos me encarando antes do homem a minha frente finalmente soltar os documentos em minhas mãos.
— Seja rápido. Estará sozinho dessa vez, iremos te arrumar um carro. Você deve matá-lo e voltar com todos os papéis que encontrar junto do homem, você me entendeu?
— Sim, senhor general.
Abro a pasta de papel pardo e meus dedos tremulam uma vez, engulo em seco enquanto olho para a foto do homem, um rosto já conhecido.
Um rosto que me olhou nos olhos enquanto eu crescia, que esteve a vida inteira ao meu lado. Ao menos até me ver entrar para o exército. O rosto do homem que eu não falo desde que cheguei aqui.
Tudo faz sentido quando encaro a foto do meu irmão.
— Algum problema soldado?
— Não, senhor general. Problema nenhum. Considere-o um homem morto.
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