C A P I T U L O 0 1

Houve um tempo, eu me lembro
Em que eu não conhecia nenhuma dor
Quando eu acreditava no para sempre
E que tudo continuaria igual

Memories - Maroon 5

A única coisa audível no momento é o som ensurdecedor de tiros e bombas por toda a parte.

A guerra tem um som e um cheiro distinto. Diferente de qualquer outro, cheiro de morte, de sangue e excrementos. Cheiro de pólvora e algo ainda mais mortífero. 

O pior, é que você se acostuma a isso.

Você se acostuma aos corpos empilhando ao seu redor, os gritos de ajuda passam a ser quase inaudíveis depois de muito tempo no front. Você precisa ignorar a tudo, na guerra, se manter vivo é a única coisa que importa.

— Andrei, tem mais nove deles se aproximando pela direita. Estou ficando sem munição, você consegue me cobrir? 

— Claro, mas recarrega essa porra rápido, Mark — digo, mirando nos soldados que se aproximavam cuidadosamente — toma cuidado, esses filhos da puta estão protegidos, não consigo um bom ângulo daqui.

Mark, tenta ser rápido. Posso vê-lo colocar um novo pente em sua metralhadora, mas o nervosismo atrapalha sua agilidade e num momento como esse cada segundo é crucial, um milissegundo pode ser a diferença entre a vida e a morte.

— Porra Mark. Você não consegue fazer isso um pouco mais rápido? Ou está esperando esses filhos da puta meterem um tiro na nossa cara? — Grito por cima dos sons da batalha, pelos ruídos do outro lado, os inimigos também ouviram e acham que estamos despreparados, ótimo.

— Fecha essa boca suja, Andrei. Eu já terminei aqui.

Mark se vira ao meu lado, apontando a arma carregada novamente. Meu coração bate forte conforme aguardo o momento certo, meus olhos se recusam até mesmo a piscar e perder o momento perfeito, o momento em que o primeiro deles levanta a cabeça um pouco mais do que deveria, subestimando nossa capacidade. O momento em que meu dedo pressiona o gatilho, a mira travada na testa do inimigo.

Em pouco tempo. Temos nove inimigos a menos no front. Meus olhos encontram Mark por um segundo e abro um sorriso. Formamos uma boa parceria, no fim das contas.


Conseguimos avançar no território inimigo o suficiente para ganhar paz o bastante para voltar aos acampamentos por alguns dias, o que é bom, pois meu corpo parece clamar por um pouco de descanso.

— 15 dias, deve ser algum tipo de recorde — Mark diz e estende um peço de pão seco para mim que pego e rasgo um pedaço com os dentes.

— Tenho certeza que 15 dias não era nada para os alemães de Hitler. Ainda assim, estou aliviado por poder apenas me esticar e tomar um banho… parece que passei algumas horas abraçado em um gambá — dou uma risada e encaro os olhos azuis de Mark, que tira sua farda e joga em cima de mim.

— Tenho certeza que o pobre gambá estaria traumatizado se fosse o caso.

— Seu babaca de merda. — Rio e jogo seu uniforme para o lado.

A amizade entre os homens que convivem diariamente é quase inevitável, ainda que, no fundo, todos saibamos que no segundo seguinte seu camarada mais próximo pode estar caído ao seu lado, lavando seus sapatos com sangue. 

Seria muito melhor se cada um vivesse a sua vida, a dor no peito a cada baixa seria menor. Mas é realmente possível evitar? Por quanto tempo você conseguiria ignorar a pessoa que está ao seu lado 24 horas por dia, salvando a sua pele e arriscando a vida com você? 

Foi assim que a vida me juntou com Mark Ivanov, o russo com quase a mesma idade que eu, tinha os cabelos loiros curtos, mais claros que os meus e a pele pálida que combinava com seus olhos azuis cristalinos. 

Acabamos unidos de um jeito macabro. Rodeados pela morte como dois dos soldados recém-chegados com mais corpos abatidos em seus ombros. As pessoas nos respeitavam, ainda que tivéssemos apenas 18 e 19 anos, nos uniram em uma tenda confortável e logo eu estava amarrado a esse cara, com seu olhar perdido e com seu jeito de bom moço.

— Você vai tomar banho agora? Ou vai continuar fedendo como uma lagartixa radioativa? — Pergunto ao Mark enquanto passo por ele, trombando meu corpo no seu de propósito.

— Você parece ansioso para tomar banho comigo, Andrei. Tenho que te lembrar que já tenho alguém me esperando em casa?

— Pare de encarar a minha bunda então, Mark seu desgraçado.

— Nem nos seus melhores sonhos eu encararia sua bunda, Andrei — ouço-o falar enquanto eu saio.

Vou até a área dos lavatórios, onde alguns chuveiros enfileirados estão e tiro minha roupa, minha pele pálida, poucos tons menos pálida que a de Mark se arrepia com o frio. Prendo meu cabelo longo em um coque no alto da cabeça e entro embaixo da água gelada. 

Deixo a água fria lavar a sujeira do campo de batalha do meu corpo. Ainda que ela não possa lavar o sangue e a poeira da minha mente. Respiro fundo e me deixo. Por um único segundo fraquejar. Ali, embaixo do chuveiro, onde minhas lágrimas se misturam com a água, me permito chorar pela alma de cada soldado abatido, por cada família que receberá uma carta desrespeitosa informando de forma banal o falecimento de um filho, um marido, um irmão. Ninguém deveria passar por isso independentemente de que lado está. Penso no meu irmão, a única família que me resta, penso em como será sua reação quando o dia inevitável em que sua vez de receber a desprezível carta chegar.

— A água está tão gelada que te fez chorar? — Ouço a voz do meu lado e prendo a respiração por meio segundo.

— Achei que não vinha tomar banho agora, Ivanov — respondo, me virando para longe dele.

— Estamos nos tratando pelos sobrenomes agora? — Ele dá uma risada — eu nunca disse que não viria soldado Pasternak. O que aconteceu? Seus olhos eram cinza e agora são vermelhos…

— Entrou sabão nos meus olhos.

— Algumas vezes… entra sabão nos meus também… e eu me pergunto… qual o sentido… de tanto… sabão, por que fazemos isso com nós mesmos? Quando isso está nos sujando mais que limpando, que diferença faz? Não poderíamos apenas… deixar o sabão de lado…

— Não temos outra opção, Mark… Precisamos usar o sabão… mesmo que nos deixe sujos, mesmo que nos faça arder os olhos… mesmo que nos faça enxergar apenas o vermelho…

— Sempre temos outra opção Andrei…

— A que custo?

— Eu que te pergunto… a que custo?

Suspiro e fico em silêncio. Se algum superior ouvisse essa conversa, se alguém entendesse que não estamos falando apenas de sabão… poderíamos ser condenados os dois por traição. No fim, todas as escolhas levam para o mesmo lugar. Soldados morrem. Traidores morrem. Desertores morrem. Ninguém tem perdão.

Termino o banho e vou até o quarto, com um Mark silencioso ao meu lado. Não trocamos nenhuma palavra após a conversa sobre o “sabão”, mas em alguns momentos, podia sentir seu olhar sobre mim, a decepção misturada com algo mais em seu olhar, algo profundo, algo totalmente escondido.

Estico meu corpo no colchonete estendido sobre a estrutura de metal que eu deveria chamar de cama e o objeto range sob meu peso. Mark faz o mesmo na sua própria estrutura de metal, a poucos centímetros de mim.

— Faltam poucos dias para o natal recebeu alguma carta? — Pergunto quebrando o gelo que ficou entre nós.

— Ainda não, mas deve chegar em breve. Catherine nunca deixaria de lembrar essas datas — Mark sorri, puxando a última foto enviada pela namorada que deixou em um outro mundo. Um lugar longe do front.

Na foto, a bela mulher de cabelos escuros ondulados sorri, em uma pose artificial. Não posso negar que Catherine e Mark combinam muito bem. Posso imaginar os dois juntos, a pele pálida de Mark contrastando com o tom escuro de Catherine. Posso imaginar seus olhos frios correndo pelo corpo quente dela, um corpo esbelto e cheio de curvas nos lugares certos. Posso imaginar o corpo de Mark. Batendo contra o dela, sua expressão de prazer invadindo o rosto bonito de Mark, seus dedos se movendo, pressionando e apertando no mesmo ritmo que sua carne bate…

Merda, no que caralhos estou pensando…

Devolvo apressado a foto para Mark, com um sorriso que espero esconder o calor que sobe pela minha face devido à direção tomada pelos meus pensamentos.

— Seu irmão mandou alguma coisa? — Ele responde e parece realmente ignorar minha reação estranha, de alguma forma… isso parece quase me incomodar mais do que se ele tivesse notado.

— Meu irmão é um cuzão. Ele nunca me manda porra nenhuma…

— Vou comprar um presente de natal para você e mandar entregar no nome dele…

— Se quer me dar presentinhos, Mark. Dê um com a merda do seu nome. Não ligo para porra nenhuma que Nikkolai dá ou deixa de dar para mim... na verdade, acho que a essa altura, eu deveria dizer que você é muito mais importante para mim que aquele escroto de merda.

— Não fale assim do seu irmão…

Meus olhos encontram os de Mark e não consigo respondê-lo. É como se as palavras travassem em minha garganta. Impedidas de sair. Sinto meu coração doer no meu peito, de uma forma estranha. De uma forma que eu nunca senti antes. Me lembro dos pensamentos que tive, há poucos momentos antes, e o ar parece deixar meu pulmão também. Meu olhar corre até seus lábios, e não consigo evitar me perguntar qual seria o gosto dele… Quando encaro os olhos de Mark de novo e...

— Andrei, estamos indo comer umas putas, você vem? — Alguém me chama da entrada.

— Já vou — grito de volta, ainda imóvel olhando para Mark.

— Você vai com eles? — Sua voz quase parece rouca.

— É quase natal, tenho uma pica para dar de presente… — Digo, uma piada normal, mas que soa estranha e forçada aos meus ouvidos dessa vez.

Me levanto, pego um casaco e me preparo para sair, ignorando o ar que não vem, ignorando meu peito que arde. Estou quase saindo quando sua voz me para.

— Andrei…

Ele me chama e olho para ele e depois meus olhos caem para a foto da mulher em suas mãos. Mark é um homem comprometido, não posso deixar o que quer que sejam esses sentimentos estranhos me dominarem. Preciso sair de perto dele…

— O que foi Ivanov? Quer vir junto dessa vez? — Meu coração bate tão acelerado que dói, olho para Mark e ele dá uma risadinha sem humor.

— Sou um homem comprometido e apaixonado Pasternak… Divirta-se enfiando a rola por aí e tente não pegar uma IST.

Dou uma risada e me viro de costas para ele, me afastando cada vez mais. Como deveria ser.

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