V. Um deus e o julgamento
Na medida em que Milo ia caminhando, suas formas se transformavam, abandonando a magreza e a exaustão e adquirindo a eloquente majestade de um ser quase inteiramente feito de luz. As marcas das lágrimas desapareciam de seu rosto, dissolvidas pelo brilho ardente de sua pele.
Uma vez em cima do palanque, Apolo virou-se e contemplou o cenário ao redor.
O tempo estava como que parado. Era um efeito colateral comum da presença de um deus, em plena forma divina, na Terra. Não à toa Apolo decidira transformar-se: não queria que os mortais testemunhassem a cena a seguir. Não queria que o vissem como outro além de Milo.
Na multidão, alguns ainda estavam com os braços estendidos e as mãos juntadas, pedindo a Apolônio que interrompesse a execução. Outros tinham os olhos cerrados, recusando-se a presenciar aquele espetáculo. A velha pitonisa estava mais à frente, o dedo apontado para o transformado Milo, e um brilho triunfante na face, como se, mesmo congelada, dissesse: "Eis Apolo! Testemunhem!". Mas foi um grupo especial que chamou a atenção de Apolo: os antigos patrulheiros do governante. As espadas e os brasões, que tinham abandonado agora há pouco, ainda estavam aos seus pés.
Um fogo alentador consumiu o coração de Apolo, e seus olhos se umedeceram.
– Impressionante – disse Palas Atena, ao seu lado. Saltara de seus ombros e pousara no solo já em forma divina. A estagnação do tempo se solidificou ainda mais. – Você me provou errada. Na forma do mais simples dos homens, forma que conseguiu manter até o fim, enfim fê-los te escutar. Tornou-se uma inspiração.
– Mas estive agora prestes a explodir, Palas – ele murmurou, embargando a voz. – Ver injustiça feita em meu nome vinha aumentando minha ira, a pitonisa sentiu isso... Mas não cedi. Suprimi o furor. Exceto, talvez, neste último segundo: se não fosse sua providencial calma, cara irmã, creio que eu consumiria Teseu perante todos... Obrigado.
Escutou um rangido: era Apolônio, que, recuando em cima do palanque, tropeçara em um dos carrascos petrificados.
O tempo não havia parado para ele. Talvez porque Apolo e Atena assim desejassem; talvez porque, por ser um herói, não era afetado pelas mesmas coisas que os mortais comuns.
– Teseu! Por que escolheu "Apolônio"? – repetiu o outrora Milo.
O herói, apesar de acuado, ergueu o olhar e firmou-o no rosto resplandecente do deus:
– Por causa de ti, meu senhor. És o deus que mais admiro.
– E ainda assim, não me reconheceu todo este tempo? Ainda assim, dizendo compartilhar de minha justiça, não a ouviu quando saiu de minha própria boca?
– Eu não sabia que o senhor era...
– Um simples pastor de ovelhas?
Apolo sorriu e, estendendo a mão para Teseu, ajudou-o a se levantar.
– Ah, Teseu... Do Olimpo, olhei a Arcádia e vi a opressão deste povo – sussurrou – Previ também que uma maior se aproximava: você. Surgindo primeiro como libertador, para tornar-se depois um déspota ainda maior do que o que eles tinham. Então, como mortal, desci e vivi entre eles seis meses, embora os fizesse crer que sempre estivera aqui. Tentei influenciá-los, naquilo que eu podia, na forma do mais comum deles.
Apolo caminhou até a imóvel Têmis e lhe tocou a face, ternamente:
– Têmis... Tentei dizer a ela, algumas vezes, que não se deve tratar a vida como uma moeda de troca. Sempre me ouvia com atenção, mas nunca atendia minhas palavras. Até agora – sorriu. – Percebe que, nestes quatro meses, ela não fez uma investida sequer contra o seu governo? Sabia que não tinha força contra você, então preferiu prezar pelas vidas a fazer ataques infrutíferos. Resolveu simplesmente acolher os descontentes. E quer saber? Em breve, toda a Arcádia estaria lá com ela, e você reinaria sobre uma cidade vazia!
– Senhor... foi o senhor quem primeiro me recebeu na cidade – disse Apolônio, ou Teseu, numa aparente tentativa de se justificar.
– Fui. Sentindo que você chegara, fui apascentar à porta da cidade. Ao te ver deixar a mata, pensei a princípio em te impedir de entrar na Arcádia. Mas então uma esperança invadiu meu coração e, dominado por ela, corri ao seu encontro: e se eu tentasse te mudar também? Moldasse seu coração com minhas palavras? "Insurgência sangrenta não tem funcionado... Nada como um herói pra fazer o certo na medida certa... Força, e sabedoria para aplicá-la... Uma saída rápida e limpa". Mas para minha infelicidade, não funcionou. Logo no seu primeiro dia aqui, você preferiu adotar um modelo de justiça completamente diferente do meu.
– Os homens de Pirro mereceram!
– Eu não contesto isso. Mas você ofereceu um banquete de sangue aos olhos de todos os arcadianos, e eles se deliciaram no que viram. O que isso planta nos corações? Por que as crianças pareciam tão felizes em tacar pedras em um cadáver cujos crimes elas sequer compreendiam? Viram o herói fazendo, viram os conhecidos vibrando, e assimilaram aquilo como uma fonte legítima de prazer. O ciclo se perpetua. A má violência é substituída pela boa violência, a má dor pela boa dor, e a violência e a dor continuam existindo, invencíveis! Não, não era o caminho, ou eu mesmo teria feito isso.
– Senhor, não me pinte como inteiramente mau. Lembre-se que, até hoje, eu nunca tinha feito mal algum a Milo... ao senhor. Pelo contrário, sempre demonstrei carinho.
– Sim. Ah, a misericórdia... Essa virtude que gostamos de conceder, tão seletivamente, apenas a uns poucos escolhidos... Ou terá sido um instinto inconsciente de autoproteção, te alertando contra tocar em mim? No teu julgamento, saberemos.
– Senhor, se ao menos tivesse me alertado como um deus, eu teria feito tudo diferente... Achei que Milo era só um rapaz portando a voz da ingenuidade...
– Mas eu o avisei – Palas Atena falou, naquele tom pragmático que lhe era de praxe, o olhar duramente cravado em Teseu. – Deprimida em te ver causar tanto mal, revelei-me e tentei te fazer lembrar do propósito que deve mover o coração de um herói. Era meu papel como protetora dos heróis. E você confessou saber quem eu era, não? Por que não se considerou avisado?
– Mas eu não te entendi...
– Agora entende. E, como prometi, aqui estou, no momento da verdade.
– Teseu, Teseu... O herói que tem evitado usar o próprio nome, pois este evoca mais terror que amor... – prosseguiu Apolo. – Você trocou misericórdia por morte. Arrogou ser a própria justiça, sendo a arbitrariedade. E o pior: convenceu metade da Arcádia a ser como você. Nesses meses, lutei pra fazê-los enxergar essa contradição. Tentei fazê-los recusar a espetacularização da dor e da morte, aplaudidas com zelo sádico, e a não normalizarem o ódio, que proclamando-se virtude, faz morada nos mais puros corações. E hoje, finalmente.... Me ouviram – olhou emocionado para a multidão, congelada no brado contra Apolônio; e para os radicais, com os brasões arrancados aos pés. – Hoje tive minha vitória. Inspirei mortais a serem melhores, e mostrei a deuses como podem mudar os mortais!
Se Apolo era a imagem da vitória, Teseu era a desolação em pessoa.
– Eu só... Achei que estava fazendo o certo... Que estava fazendo o que agradava os deuses... Agindo da forma como eles agiriam, se estivessem no meu lugar... Da forma que já vi-los agir...
Ora, essas últimas palavras deixaram uma forte impressão nos dois deuses. Apolo e Atena se entreolharam rapidamente, enrubescidos. Então Apolo começou a andar em círculos, inquieto, mergulhado num profundo silêncio, os olhos semicerrados.
Assim ficou durante muitos tempos indescritíveis – como descrever o tempo que se passa durante um tempo paralisado?
Era observado pelo olhar temeroso e culpado de Teseu, e pela expressão sábia, quase onisciente, e ainda assim impassível, de Palas Atena.
Por fim, Apolo suspirou e disse, num tom de voz baixo, mais parecido com o do pastorzinho Milo do que com o deus da Luz:
– Vá, Teseu.
– Senhor? – o herói se surpreendeu.
– Vá. Deixe a Arcádia. Analise seu coração e tente, uma última vez, relembrar o propósito de ser um herói. E quando for fazer algo que pensa agradar os deuses... A mim... Agora sabe o que me agrada. Que esse conhecimento traga sua redenção. Vá!
A cor voltou imediatamente à face de Apolônio. Incrédulo, perguntou algumas vezes se os deuses tinham certeza, olhando especialmente para a expressão dura de Atena. Mas ela também aquiesceu.
– Obrigado, meus senhores! Prometo-vos mudar meus meios... Obrigado!
E, a passos largos, Teseu saltou do palanque e, desviando-se da multidão petrificada, deixou quase correndo a cidade, como se temendo que os deuses mudassem de ideia.
Apolo e Atena voltaram a se encarar:
– Este não era seu plano – disse ela. – Estou certa que, até segundos atrás, você planejava levá-lo a julgamento.
Apolo respondeu, com os lábios trêmulos:
– Que moral temos para condená-lo? Percebe que, este tempo todo, ele pensava estar nos agradando? Não é a toa que se inspirou em meu nome, que sentou em meu templo, que se disse meu enviado... Pois essa é a imagem que nós, deuses, passamos pra homens e heróis. Somos exemplos de supremacia e arbitrariedade. De justiça própria. Se a mortalidade é corrupta... a imortalidade é a própria corrupção.
Ela abriu um sorriso triste e cansado:
– É o que também concluo, Apolo. Não somos nós que andamos espelhando os homens. Eles que se espelham em nós. Somos o grande problema. O que gera um impasse quase insolúvel: homens e heróis têm a nós para julgá-los. E nós? A quem temos para julgar nossos erros?
Os dois ficaram outra vez em depressivo silêncio. Apolo sentiu um súbito arrepio, causado pela eclosão de uma única palavra em seu cérebro, talvez sussurrada ali pela Profecia, de quem ele era conhecedor de alguns mistérios, ou talvez simplesmente regurgitada por uma mente conflituosa... "Caos."
Por fim, sacudindo a cabeça, Apolo olhou para a multidão, cujos corações ele mudara no último momento, e um raio de esperança, o mesmo que o motivara a descer à Terra, mas agora sólido, provado, embasado, voltou a mover seus lábios:
– Espero que meu sucesso aqui sirva de exemplo para os outros deuses. Tudo depende disto. Porque senão, minha cara Palas... Se o Olimpo não mudar, então creio que a Era dos Deuses já está chegando ao fim.
Após aquilo, os dois se despediram.
Palas Atena assumiu novamente a forma de uma coruja e subiu graciosamente ao Olimpo.
Apolo voltou-se para os arcadianos, deixou sua luz se espargir e encolheu-se outra vez na forma de um jovem pastor. Precisava de mais alguns instantes com aquele povo. Como um mortal. Como um deles.
No momento em que Milo deu um passo, o Tempo voltou a correr.
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