Prólogo
Em um monte acima das nuvens, onde os pássaros não sobem e olhos humanos só alcançam com a imaginação, dois seres divinos reclinavam-se, silenciosos, no luzente cercado de um jardim. O primeiro ser parecia feito de luz, pois seu corpo, semelhante ao de um homem, brilhava como um sol. O segundo era a personificação da própria imponência, pois nada no universo parecia capaz de abalar a postura altiva e impenetrável daquela figura feminina.
- O que tanto observa, Apolo? - perguntou a mulher, quebrando o silêncio. Seu olhar indecifrável pousava na face do companheiro, que contemplava lugubremente a distante superfície da terra.
- A injustiça - respondeu ele, em voz amena, mas profunda. - Olhe: ali em Tebas, um batalhão saqueia a vila que acabou de massacrar. Em Atenas, um rei chicoteia seus desafetos até expor-lhes a carne. O povo assiste com aplausos. Vejo em Micenas um príncipe preparando armadilha para o pai, buscando tomar-lhe o trono. Dois soldados acabam de deixar um velho desacordado numa estrada de Argos. Sinto o cheiro de seu sangue daqui. Ali em Troia, uma jovem se esconde em um estábulo do general lascivo que a persegue...
Enquanto falava, o dedo de Apolo dançava no ar, riscando a superfície da terra.
- É só o que vejo, Palas: opressão, guerra, injustiça... Está em todo canto. Não vê?
Os olhos glaucos de Palas Atena atravessaram as nuvens e também se fixaram nos acontecimentos terrenos.
- Está na natureza deles - disse, impassível. - Não conseguem fazer diferente.
- Por que não? Perscruto os seus pensamentos e vejo que, enquanto agem, estão conscientes da própria maldade. Mas isso não os inibe. Do contrário: em alguns, isso torna o prazer ainda maior.
- Porque não podem resistir à própria natureza. Seus corpos são mortais e corruptos. Ora, até os heróis, que possuem sangue divino, acabam encerrando suas carreiras como assassinos ou déspotas. Não é o que tem feito Teseu? De libertador de Atenas, está se tornando um egoísta megalomaníaco, um nome que produz mais medo que conforto... A natureza dos mortais os leva inevitavelmente à corrupção.
- Ou, pelo menos, é o que eles foram ensinados. E por crerem assim, sequer cogitam mudar. E o que os deuses tem feito pra impedir isso? Nada! Antes, espelhando-se no comportamento dos mortais, tornam-se cada dia mais antropomórficos...
- Será que é exatamente assim?
- Oh, Palas, os mortais precisam de uma inspiração. Um líder diferente. De alguém que lhes prove que é possível um mortal ser bom, desafiar a injustiça, amar os oprimidos, negar os impulsos egoísticos...
Palas Atena compreendeu imediatamente o que se passava na cabeça do deus.
- Isso não vai funcionar, Apolo. Se você se tornar um deles, você será como um deles. Inclusive no que critica. Com propensão a ser pior, pois, mesmo mortal, força divina ainda correrá em suas veias. Como lidará com o inevitável orgulho?
- Sufocando-o.
- Lá embaixo, você encontrará oposição. Pessoas com visões de justiça diferente. E eventualmente quererá esmagá-las.
- Pois resistirei - ele prometeu. Seu olhar percorreu a Terra mais uma vez até se imobilizar numa província chamada Arcádia. - Olhe a Arcádia... Há tempos minha atenção reside lá. Está passando por opressão terrível, e uma maior se aproxima. É lá que descerei, minha cara irmã. É lá que provarei que ainda há esperança...
Palas, ainda que inconvicta, encerrou sua série de objeções.
Apolo sorriu, despediu-se da irmã e, num longo salto, mergulhou nas nuvens e desceu ao planeta, deixando atrás de si sua luz.
- Veremos - murmurou Atena, observando Apolo pousar na Terra, despir-se de sua divindade e abraçar a mortalidade.
Então, desejosa de testemunhar o sucesso ou o fracasso do deus, ela seguiu após ele como uma coruja.
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