III. Um deus e a tirania

Uma das primeiras medidas do novo governante foi restaurar o templo de Apolo, que durante o período de Pirro fora tomado e sucateado pelos mercenários. Para fazer isso, porém, Apolônio precisou pedir ao povo que contribuísse com a reforma, o que resultou no estabelecimento de um pequeno imposto.

Essa medida, que na população não causou contrariedade alguma, todavia despertou a fúria de Têmis:

– É assim que começa! – gritou ela, durante o evento, em frente ao palácio, em que Apolônio anunciava essa e outras medidas. – Saímos de um regime explorador só pra colocarmos outro igual!

– Cale-se! – gritou o povo, quase unissonante. – Como diz isso de nosso libertador?

O próprio Apolônio, que no geral sempre se mostrava tolerante, deixou evidente sua ofensa com tais palavras.

– Por que me compara com tão grande injusto? – perguntou, com sua voz trovejante. – Não poderia ter me feito ofensa maior, jovem. Peço-te que reconsidere tuas palavras. Caso insista nesse pensar sobre mim, então não vejo como pode continuar bem vinda em nosso meio.

– Está me exilando?

– Vê-me da mesma forma que via Pirro?

– Potencialmente – ela disse, em tom destemido. – E nisso não retrocedo.

Apolônio ergueu a mão, para interromper a nova eclosão de fúria do povo, e determinou:

– Então você não compartilha mais do mesmo espírito dos arcadianos. Deixe a Arcádia e não volte mais.

Têmis olhou ao redor, procurando algum apoio em meio aos seus, mas só encontrou rejeição. Milo era o único que não gritava impropérios contra ela; antes, encarava, com profunda melancolia, o ambiente circundante, embora ela não soubesse se de contrariedade, ou se apenas procurava alguma ovelha perdida entre a multidão.

Derrotada, a rebelde ergueu o capuz e desapareceu no meio do povo.

Durante o período em que o templo de Apolo era restaurado, uma velha pitonisa passou perambular pela cidade, anunciando em tom etéreo e deslocado:

Como cresce a fúria de Apolo!

Algumas pessoas mais pobres, que tinham começado a sentir no bolso o peso do imposto, viram aquilo como um recado e afastaram quaisquer pensamentos insurgentes.

Semanas mais tarde, a reforma terminou e o templo foi reaberto para culto. Apolônio ofereceu uma grande festividade de uma semana, regada a música, vinho, frutos e assados. No último dia de festa, sob a aclamação do povo, entrou no templo e se sentou no trono, sob a estátua de Apolo.

Nem todos ficaram felizes com aquilo. Algumas pessoas mais idosas murmuraram entre si:

– Por que ele se assenta no trono de Apolo, como se Apolo fosse?

Mas os mais entusiastas apoiadores de Apolônio responderam:

– Ora, porque ele é enviado por Apolo! Foi o próprio deus quem o colocou lá!

Algo parecido com o que Apolônio discursou, ao final daquela noite:

– Foi-me dada a difícil incumbência de representar os valores da justiça e da paz, valores que poucos deuses representam tão bem quanto Apolo. Com esse gesto deixo claro, portanto, que Apolo tem um representante aqui na terra, e que isso sirva de temor para todos os que amem a injustiça.

O aplauso foi tão grande que pouca gente percebeu a coruja inquieta sobrevoando interior do tempo e soltando piados curtos, mas sentidos.

No dia seguinte, durante a ressaca da festa, os arcadianos foram informados de um novo tributo, necessário para suprir os gastos da festividade.

Tributos, na verdade, passaram a ser muito comuns no período subsequente. Apesar de todos terem aparentes bons motivos – como o merecido bem estar do governante, cujo palácio, deixado quase inabitável por Pirro, necessitava de melhorias –, isso fez com que aos poucos alguns se sentissem descontentes com o novo governo. Talvez por isso, a notícia de que Têmis estava abrigando, fora da cidade, os insatisfeitos com o regime, passou a atrair alguns jovens mais rebeldes. Eles deixavam a Arcádia e não voltavam mais.

Por outro lado, a parcela entusiasta de Apolônio não só se mantinha irredutível em seu apoio, como passou a procurar meios de demonstrá-lo mais ativamente. Começaram a agir como uma patrulha do governante, seja buscando coibir qualquer crítica a ele, seja aplicando, eles mesmos, os valores que o líder pregava. Vendo a energia desses bons apoiadores, Apolônio acabou decidindo por legitimá-los: deu, a esse grupo, armas e autorização para agirem em seu nome. Seus patrulheiros reais, seus aplicadores de justiça. Como símbolo dessa autoridade, agora carregavam no peito o brasão do governante.

Isso, sem dúvida, girou de vez o clima na cidade. Mesmo Apolônio ainda sendo amado pela maioria, a presença de seu grupo patrulheiro fez com que o ambiente voltasse a adquirir um silencioso peso de opressão. Mais pessoas deixaram a Arcádia para se unir ao infame grupo de Têmis, e outros só não foram porque ainda ouviam, em suas cabeças, as palavras da velha pitonisa, sempre anunciando pelas ruas, em agouro:

Ah, como cresce a ira de Apolo!

Era evidente que levantar-se contra Apolônio era levantar-se contra o deus da Luz.

Não à toa, um boato cada vez mais popular na Arcádia dizia que o herói era o próprio deus em forma mortal.

– Um sacrilégio! – espantavam-se alguns, ao ouvir aquilo.

– Faz todo sentido! – exclamavam outros, fiéis seguidores do líder, com sorrisos no rosto. – A Arcádia é de Apolo!

Com o passar do tempo, a vida na Arcádia foi se tornando quase tão dura quanto na época de Pirro; os impostos já consumiam metade da produção popular, e as pessoas que se levantavam contra o governo eram julgadas publicamente por se levantarem contra a reta justiça.

A esperança dos insatisfeitos passou a se depositar em Têmis e na suposta resistência que ela estaria montando. Começavam a sonhar com o dia em que ela invadiria a cidade, com os seus rebeldes, e expulsaria o forasteiro que se tornara governador.

– Mas isso não seria mais do mesmo? – perguntava Milo, quando alguém lhe confessava esse desejo. – O velho rei foi derrubado por Pirro, com o apoio do povo; Pirro foi derrubado por Apolônio, com o apoio do povo; e agora esperam que alguém, com o apoio do povo, derrube Apolônio. E daqui um ano? Não desejarão o mesmo para Têmis? E, enquanto isso, sangue, sangue, sangue...

- Sangue é o preço para a paz.

- Um preço muito caro, pra uma paz tão efêmera...

Esses discursos de Milo, considerados dúbios por alguns, não se restringiam apenas aos que vinham lhe confidenciar. Pelo contrário: o camponês era frequentemente visto nas praças e nas esquinas, em rodinhas, conversando com o povo sobre coisas como justiça e misericórdia. Apesar de justiça ser o lema do novo governo, Milo não só lhe dava um conceito diverso do de Apolônio, como acrescentava-lhe uma companheira não muito bem-vista ultimamente.

Mas, mais do que explanar conceitos, Milo gostava mesmo de usar-se de diálogos. Nestes, fazia seus interlocutores se perguntarem o papel que eles tiveram nos últimos acontecimentos; como os seus atos levaram a regimes arbitrários consecutivos; e como toda aquela opressão, em vez de ser algo extraordinário, poderia ser apenas um reflexo do que eram como sociedade.

Em ocasiões, Milo abordava mesmo os patrulheiros de Apolônio, perguntando-os, frequentemente, se não lhes doía perseguir seus próprios amigos por devoção a um líder, ou pelo mero prazer de ver suas concepções de mundo prevalecerem, ainda que sobre um próximo muito amado. Por um instante, esses questionamentos realmente desestruturavam os patrulheiros.

Quando vieram advertir Apolônio, pela décima vez, das perigosas palavras que Milo andava dizendo, ele sacudiu a cabeça e repetiu algo da memória:

"O ideal seria educar o coração das pessoas, para que rejeitem o ódio plantado pelos Pirros... e lembrar os cooptados do que trocaram por uma réstia de poder"  – murmurou. – Oh, Milo e sua juvenil inocência! É assim que me enxerga? – voltou-se então aos denunciantes, com um suspiro. – Não se preocupem com Milo. É um ingênuo, mas é bom rapaz. Ainda considero-o um dos meus. Deixem-no.

Essas concessões feitas a Milo eram, sem dúvida, uma exceção ao comportamento recente de Apolônio. Se a princípio se mostrara um líder transigente, agora se revelava completamente implacável. Seu lema era arrancar o mal pela raiz: qualquer pessoa meramente suspeita de qualquer ato desviante já sofria o juízo do bom herói. E o juízo geralmente era o mesmo para ladrões de frutas, hereges, assassinos e críticos ao governo, não diferenciando um de outro.

No quarto mês do governo de Apolônio, aquela que parecia a última esperança dos inconformados desmoronou: uma bem sucedida incursão dos patrulheiros às florestas que cercavam a Arcádia resultou na captura de Têmis e seus quase setecentos rebeldes.

O povo assistiu, alguns com aplausos, outros com lamúria, os capturados serem conduzidos, acorrentados, pelas ruas da cidade até o palácio. Um arauto foi à frente dos prisioneiros, anunciando que, na tarde seguinte, durante as festividades de Apolo, Apolônio começaria a execução dos rebeldes à porta do templo. Toda a população deveria comparecer.

Quando soube disso, Milo correu ao palácio e pediu uma audiência com Apolônio. Os prisioneiros estavam amontoados no pátio, alguns com as vestes sangrentas de chicotadas. O pastorzinho viu Têmis entre eles, com os cabelos emaranhados e um olho inchado como uma maçã, e seu coração se comprimiu. Antes que fosse até ela, porém, informaram-no que o governador aceitara recebê-lo e foi conduzido à presença de Apolônio.

– Meu bom Milo! – saudou-o o governante, alegre. – O primeiro a me receber na Arcádia! A que devo sua gentil visita?

– Meu senhor, venho aqui te suplicar que poupe a vida dos prisioneiros.

A luz de Apolônio se apagou.

– Não posso fazer isso, filho. Devo mostrar firmeza, para que se saiba por toda Arcádia o que acontece quando se levanta contra a justiça.

– Mas senhor, isso não é justiça. Nada do que o senhor fez até agora me parece justo, para ser sincero.

– Como não? Milo, Milo... Por que ainda olha, com choque, os corpos mutilados dos opressores? Por que ainda chora a carcaça exposta do tirano? Por que ainda carrega, sempre contigo, o mesmo olhar daquela noite na Ágora? Já é hora de amadurecer, jovem. Justiça se conquista com sacrifícios. O mal deve ser cortado. Os rebeldes devem ser postos de exemplo.

– Que mal eles fizeram, a não ser se desprazer de sua opressão, meu senhor, que em muito lembra a de Pirro?

O lábio de Apolônio tremeu, mas o pastor continuou:

– Uma parcela da população está insatisfeita. E matar os rebeldes, que nada fizeram senão deixar a cidade, não acabará com a  insatisfação dessa parcela. Continuará governando sobre uma sociedade dividida, senhor. Por que não ouve os insatisfeitos, em vez disso? Ouça suas demandas, reintegre os descontentes, afrouxe o seu punho,  acrescente misericórdia à justiça. Ninguém precisa morrer: a Arcádia pode ser um lugar realmente justo e democrático.

– Não tente me ensinar o que por natureza sei, Milo.

– Senhor, se realizar o que planeja amanhã, se tornará pior do que Pirro!

Apolônio enfim explodiu e, furioso, apontou um dedo pra face do pastor:

– Chega de testar minha paciência, rapaz! Até agora tenho tolerado sua tolice, como um pai a um filho, mas está na hora disso acabar. Não serei mais complacente.  Esse é seu último aviso. Juro por mim. Agora saia.

Milo nem precisou se retirar: foi agarrado por dois soldados e lançado pra longe do palácio.

Aquela não foi a única visita que Apolônio recebeu naquele dia. Durante o tempo em que falava com o pastorzinho, uma coruja estivera pairando pelo salão, e os olhos de Apolônio eventualmente iam até ela.

– Ei! – ele dirigiu-se à coruja, ao se ver sozinho na sala de novo. – Por que se disfarça?

A coruja piou e fixou os olhos glaucos nele.

– Eu sei quem você é – disse o governante, sorrindo. – É uma honra ter-te aqui.

Imediatamente, a ave inclinou-se e, ao tocar o chão, assumiu a forma de uma mulher de vestes surradas. Pareceria uma camponesa comum, se não fosse a postura inabalável e os olhos verdes ardentes.

Ela caminhou até o trono e disse, em tom baixo:

– Está certo do que está fazendo?

– O que quer dizer com isso?

– Olhe o seu coração. Relembre o propósito gravado aí, e compare-os com as ações que tem tomado. São compatíveis com as de um justo? Tem sido o exemplo que deveria ser? Não acha que o pastorzinho entendeu tudo melhor?

Apolônio encurvou-se em direção a mulher, inquieto:

– Não consigo entender. Onde está o meu erro?

Ela o olhou por vários segundos, como se esperando que ele mesmo achasse a resposta. Vendo que não, ela murmurou, entristecida:

– Bom... farei questão de estar aqui quando você compreender. Até lá, faça como lhe convém. Se quiser, considere isso um aviso.

E, pesarosamente, ela lhe deu as costas e saiu da sala. Apolônio caminhou após a mulher, mas, ao alcançar a porta, viu apenas uma coruja alçar voo de uma das colunas e desaparecer pelo céu aberto do pátio.

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