Capítulo 9 - Os pulmões da floresta
A madeira pesada caiu com um baque mudo sobre a grama, esmagando-a implacavelmente. Uma fina camada de poeira levantou-se no ar, fugitiva da batalha que se travava naquela porção de terra há quase duas horas.
− Cuidado! – Taupe gritou ao ver a madeira recém cortada mover-se. Ele balançava a serra acima da cabeça para reforçar o sinal de perigo.
O tronco roliço desceu um pouco no desnível do piso, alicerçando suas esperanças vãs de escapar dos homens no pequeno vale que o manteve cativo.
Os dois guardas correram assustados, imaginando o retorno da besta. Um terceiro olhou para os companheiros do lado de lá do que restava da árvore. Ele assentou o pé sobre o vestígio do que antes tinha sido um frondoso ser vivo.
‒ Retornem imbecis! ‒ O guarda vociferou, massajando os braços doloridos do esforço de empurrar. ‒ Ainda não terminámos!
Killian espreitou a confusão que se fazia cinco árvores abaixo da sua estação de trabalho. Com a mão direita, ele limpou a testa húmida de suor. A outra permaneceu no cabo do longo serrote enfiado entre o tronco.
‒ O sol está demasiado forte ‒ reclamou Gaston, colocando o braço à frente do próprio rosto. Com o passar do tempo, a árvore deixou de projetar a sua sombra sobre o ex-prisioneiro, talvez magoada com o que lhe faziam. ‒ Poderíamos fazer uma pausa.
O calor parecia deslocado da chuva forte do dia anterior. Com períodos intermitentes, a água que, vez ou outra, caía do céu, havia obrigado a comitiva a permanecer no interior das carrinhas, enquanto Soline realizava os testes necessários à mistura transparente que armazenara em um de seus béqueres.
‒ Vamos terminar só mais esta ‒ asseverou Killian de olhos fixos nos guardas que voltavam às suas posições.
O general conseguiu ver o rosto baixo de seus homens, mesmo à distância, envergonhados com a reação automática de fuga perante o perigo iminente. Porém, ele não os julgava, era o instinto de autopreservação a falar. E o que mais importante e sagrado havia do que a vida? Talvez ele fosse o errado ao colocar o dever acima de tudo.
Gaston retirou a t-shirt pela cabeça e atirou-a para o chão.
‒ Acho que preferia estar nos calabouços da mansão real ‒ protestou contrariado, fazendo força com os braços sobre o tronco da árvore. Em teoria, ninguém o obrigava a ficar ali, mas ele sabia que sozinho, desarmado e sem abrigo, nem comida, ele não teria qualquer hipótese de sobrevivência. ‒ As minhas costas agradeciam o colchão.
Sem qualquer resposta, Killian limitou-se a aproveitar a brecha na madeira para continuar a serrar. Já não faltava muito para que a árvore tombasse.
‒ Se quiser, eu faço uma massagem em você ‒ sugeriu Soline, dando de ombros. Ela enroscou a peça que unia o recipiente metálico à goteira afixada no furo da árvore à sua frente. ‒ Em qualquer um de vocês ‒ acrescentou fitando as costas largas do general. O corpo dele tremia com a força que investia no serrote.
O ex-republicano sorriu com malícia, pronto a aceitar a proposta tentadora de ter as mãos suaves de uma mulher sobre si. Pelo canto do olho, Killian viu os traços condenadores das intenções menos dignas de seu ajudante.
‒ É muito gentil da sua parte, mas nós não precisamos. Não é verdade, Gaston?
‒ Fale por você! ‒ Gaston não se mostrou minimamente afetado pelo tom autoritário do outro. ‒ Eu vou querer essa massagem, sim. Vai ser um prazer. ‒ Ele sorriu de lado para a moça que o olhava junto à árvore adjacente.
Soline enrubesceu e seus olhos desceram para o peitoral suado do homem. Olhava o corpo de um, mas imaginava um outro no lugar. Para infortúnio da jovem, o general não se parecia importar com a camiseta ensopada.
‒ Como é que isso vai, Soline? ‒ Killian tentou desviar o assunto da conversa.
Uma massagem também não iria arrancar pedaço de ninguém e ele não queria armar-se em guarda pessoal da garota. Ela poderia defender-se sozinha. Ele tinha assuntos mais prementes com que se preocupar.
‒ Já... já fiz o corte em dez árvores ‒ respondeu com a voz a ganhar vigor ao concentrar-se no engenho que montava. ‒ Irei fazer as análises à resina, amanhã, mas a cor e consistência me parecem promissoras. As árvores aparentam estar muito saudáveis.
‒ Onde já se viu fazer análises às árvores? ‒ Gaston protestou em surdina. Para ele, apenas se justificava cuidar da saúde das pessoas. Tudo o resto era paisagem.
‒ A Soline sabe o que está a fazer ‒ garantiu Killian, ainda que não percebesse a utilidade do tal líquido que circulava no interior da casca grossa. A moça não tinha ouvido o comentário do ex-prisioneiro, mas gostou de ouvir o general a defendê-la.
A comitiva poderia ter achado o zelo com a chuva excessiva. De fato, as análises à água não apontaram nenhum elemento nocivo na sua composição. Mas a jovem cientista sabia que era melhor jogar pelo seguro. Faria todas as análises necessárias, se os materiais que detinha o permitissem. Já tinha bastado o risco de se comerem os frutos silvestres à chegada. A euforia do momento tinha demovido Soline de aborrecer os homens com procedimentos demorados de segurança.
‒ A resina será bastante útil ‒ informou a mulher afagando a casca rugosa, bem acima do ponto de corte. A árvore sangrava da ferida imposta precisamente pela pessoa que agora lhe acariciava.
‒ Está indo! ‒ bramou Gaston, jogando o próprio peso contra a árvore que já balançava. Killian largou o serrote no solo e ajudou-o.
As folhas agitaram-se e começaram a tombar em antecipação à grande tragédia. As mais velhas eram as mais sábias, aquelas que se despregavam dos ramos e se agarravam à leve brisa que passava como testemunha. Não iriam muito longe, mas também não se deixariam ficar ali, como as teimosas folhas verdes viçosas. Jovens, inocentes, ingénuas, condenadas à vontade dos homens.
A árvore fincou posição exatamente no local em que caiu, sem energia para mais. Ela tinha sido a escolhida, enquanto as suas companheiras mais próximas se mantinham vivas e de pé, com pequenas feridas que rapidamente se iriam sarar. De cinco em cinco árvores, ao longo daquela fileira, o destino era cruel e definitivo. Elas não se voltariam a erguer.
Nileya espreitava por entre as ervas altas, completamente chocada com o que via. O rio arrastava-se silencioso enquanto os troncos, já sem as folhagens, eram carregados pelos braços das estranhas criaturas do outro lado da margem. Para cada cinco Homens, uma vítima. Eles arfavam com o peso, não com a culpa. Os rostos contorciam-se com o esforço, não com os remorsos.
Os pés perfilados pisavam uma terra desnuda. Todas as ervas do lado de lá do rio, arrancadas sem piedade, onde tendas repousavam inocentes como se sempre tivessem pertencido ali.
A jovem nativa percebeu, de imediato, do que tudo aquilo se tratava. Eles construíam uma casa para eles, como a tribo dela sempre fazia quando mudava de local. Porém, o povo Bélu nunca precisou de destruir nada em prol de suas necessidades.
O terreno ligeiramente inclinado tornava-se mais estável bem junto ao rio, por isso os Homens continuaram a avançar, em três grupos, espaçados apenas pela distância necessária a garantir a segurança de todos.
Nileya encolheu-se mais um pouco, com receio de que fosse detetada. Os da frente baixaram-se, parecendo imitar os movimentos da garota escondida, para pousar o tronco robusto. Mas eles estavam tão próximos que a curiosidade da moça não poderia deixar a oportunidade esvair-se, sem nada fazer. Seus gestos saíram contidos, aperfeiçoados com a convivência com os animais, e, lentamente, ela projetou o corpo para a frente. Os olhos, um de cada cor, rompiam das ervas, ávidos por descobrir mais.
As feições das criaturas denunciavam sua natureza humana, ela estava certa disso. A cor dos cabelos aproximava-se à madeira que jazia aos pés deles, o que não deixava de ser irónico. A pele mais bronzeada e húmida brilhava debaixo do sol. Nenhum deles parecia ter qualquer mazela visível. E eram tão perfeitamente simétricos que Nileya julgou estar sonhando.
No grupo seguinte, encontrava-se Soline, que investia suas forças junto com Killian, Gaston e outros dois guardas. A cabeça da indígena descaiu um pouco para o lado ao reconhecer as formas femininas entre os homens. Ela tinha a pele ainda mais escura que os companheiros e os cabelos curtos entregavam-se a uma negritude que contrastava com a luz forte do dia. Era uma bela mulher e Nileya não podia admitir maldade em uma criatura que aparentava ser tão frágil e inocente. Seria possível?
Mais um tronco foi depositado no solo e depois o outro. Os Homens ao se verem de mãos livres, voltavam para o interior da floresta, para regressarem logo de seguida com mais vítimas entre as mãos.
A garota ficou ali, agachada por entre a densa vegetação, a observar aquele ritual macabro. Os troncos se acumulavam na pilha junto ao rio. Por cada baque da madeira com o solo, ela estremecia. Porquê abater árvores?, se perguntava. Mas ela sabia o motivo, só não o achava plausível. O seu povo fazia todo o tipo de construções com os ramos soltos, raízes mortas, canas... Eram tantas as hipóteses. Para a comunidade de Nileya, as árvores eram sagradas. Os pulmões da floresta.
Quando um dos homens chamou um outro à parte, Nileya arrumou os longos cabelos atrás das orelhas. Ela via as bocas mexerem-se, mas o som perdia-se por entre o longo caudal de água que a separava deles.
‒ É mesmo preciso tudo isto? ‒ Killian apontou para a pilha.
‒ Qual o seu problema, general? ‒ Jofrey confrontou-o. O tom de voz era calmo, controlado. ‒ Eu cedi na história ridícula do espaço entre as árvores para corte. Se tivéssemos feito todas seguidas, não estaríamos agora a levar tanto tempo com o transporte. E os homens não estariam tão cansados.
Killian seguiu o ponto para onde a mão de Rayne indicava. Dois dos guardas estavam estacados na entrada da floresta, com as mãos sobre os joelhos curvados. A respiração pesada fazia os corpos reclinados subirem e descerem em movimentos sucessivos.
‒ Não me diga que seu código moral não permite maltratar árvores? São apenas plantas.
Jofrey pontapeou um ramo solto que se despregara de um dos troncos. Nileya engoliu em seco ao ver o pedaço de madeira cair dentro de água. A brutalidade do movimento do homem fizera-a sobressaltar.
‒ Eu fui muito claro quanto à minha posição, Rayne. A construção da cerca vai levar dias. Isso, sim, é perda de tempo. Deveríamos focar-nos em explorar o terreno e coletar todos os recursos que possam ajudar Villeneuve.
‒ Não se engane, general. As bestas vão aparecer. Esta posição permite-nos vê-los melhor, mas não os afasta de nós. Temos de virar o jogo a nosso favor. Proteger-nos, até que possamos avançar. Se para isso for preciso eu arrancar, uma a uma, cada árvore desta floresta, não irei hesitar. E você deveria estar disposto ao mesmo.
O general suspirou. Jofrey falava mais do que fazia. Enquanto todos trabalhavam arduamente na floresta, o descendente dos Rayne alegara precisar de fazer o esboço da construção. Não ajudara a cortar nem uma única árvore, e, no entanto, prometia desmatar uma área a perder de vista. Muito Killian se admirara ao vê-lo se juntar para ajudar com o transporte dos pesados troncos. Provavelmente, seria a consciência a pesar-lhe, se é que ele tinha uma.
‒ Sua prima foi clara, precisamos delas ‒ Killian fez uma pausa ‒ firmes na terra. Ninguém vai precisar de acabar com este paraíso. Até porque dependemos dele. ‒ Ele deu um passo em frente, quase colando o rosto ao de Jofrey. ‒ E nunca mais meta meu comprometimento com esta missão em causa. Eu sei qual é meu dever. Só não se esqueça, você ‒ o guarda espetou o dedo no peito do outro ‒, Rayne, que sou eu quem comanda a defesa da comitiva. Fui eu que cedi.
‒ Pelas minhas contas, precisamos de trinta ‒ disse Jofrey virando-lhe costas. Curvando-se um pouco para a frente, sem parar de avançar, ele retirou o papel enrolado preso por uma fivela na perna direita. Ele agitou os planos da cerca no ar e acrescentou, sem se voltar, ‒ por enquanto.
Nileya viu o homem deixado para trás encaminhar-se para junto do rio. Colocando-se de cócoras, ele mergulhou as mãos em concha.
Ela poderia não ter ouvido as palavras, mas sabia que os dois haviam estado a discutir. O corpo, às vezes, dizia mais do que a fala. Era-lhe fácil imaginar-se a si própria no lugar daquele homem. De o ver como o rebelde que ela mesma era na sua tribo. Nileya via as coisas erradas que os integrantes de seu povo defendiam, mas a tradição falava sempre mais alto. Não havia qualquer argumento que se sobrepusesse à herança deixada por seus antepassados. Eles sempre estariam certos, e ela seria sempre o espírito rebelde que se aquietaria com o tempo. As respostas estavam sempre lá, no tempo.
Killian molhou o rosto e embrenhou os dedos molhados nos cabelos castanhos. Os reflexos dourados esmoreceram com a força da água. Seus olhos fixaram-se na vegetação à sua frente, do outro lado da margem, que balançava subtilmente com a brisa. A garota congelou no lugar, apertando a terra húmida entre os dedos das mãos. Ele parecia olhar diretamente para ela, mas não a via realmente. Os seus pensamentos estavam longe daquele lugar. Talvez se não estivesse tão atordoado pelo descontrolo recente dos acontecimentos, ele pudesse ter sido capaz de a notar. Mas a raiva de ver sua autoridade contestada por alguém que, na realidade, era seu superior, estava a abalá-lo consideravelmente. Ele parecia já não saber quais eram os limites da sua ação, quais as batalhas em que deveria persistir e aquelas que não o levavam a lado algum.
O general exalou profundamente e levantou-se. Havia uma cerca que o esperava.
Enquanto um deles desistia de uma batalha, o outro decidia atirar-se de cabeça. Nileya voltaria ao seu posto de observação até obter todas as respostas às suas perguntas. O problema é que, por norma, respostas só lhe geravam mais perguntas. Ela sabia-o e, ainda assim, decidia arriscar. Ainda não havia chegado o tempo de deixar de ser rebelde.
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