Capítulo 4 - Matar ou morrer

O batimento do seu coração acelerava a cada segundo. LeFou sentia o efeito do álcool a inebriar-lhe a consciência, mas ele não tinha bebido assim tanto para ter a racionalidade toldada por alucinações. Ele sabia que estava a ser perseguido. Meticulosamente vigiado.

Tinham sido os amendoins os verdadeiros culpados do seu louco devaneio de se separar do grupo e embrenhar-se nas profundezas da floresta recém-descoberta. Na altura, parecera-lhe incrível a ideia da caça à árvore de amendoins. Porém, no momento, ele não estava certo de o risco vir a compensar. Até porque não havia sequer nenhum mísero fruto seco à vista. E ele é que parecia estar a ser caçado.

As gotas de suor escorriam-lhe pelo corpo. Os movimentos precipitados começavam a cansar-lhe os músculos, enferrujados pela falta da prática de atividade física. O ex-republicano já sentia a garganta a restringir a passagem de ar. O ataque de pânico iminente não ajudava ao caso.

Um rugido rouco emanou atrás de LeFou. Um som selvagem, gutural. O homem sabia que nada humano provocaria semelhante som, muito menos, uma simples planta. A floresta não passava de uma cúmplice silenciosa, uma mera observadora ávida. Se o coração do pobre homem não lhe ecoasse nos tímpanos, talvez ele tivesse ouvido o som das folhas secas a serem calcadas no solo. Se ele tivesse coragem de olhar para trás, veria as pegadas deixadas pelas enormes patas da besta que o fitava. A criatura estudava o melhor momento de dar o bote, atenta a cada novo sinal captado. Como era sagaz!

LeFou encostou-se ofegante atrás de uma imponente árvore, que lhe camuflava o corpo. Só que o animal não precisava de o ver para saber onde se encontrava. Sua audição não era das mais apuradas, mas o cheiro do medo deixava um rasto bem marcado. A mistura da adrenalina com o cortisol deixava a criatura a salivar em antecipação. Hormonas que supostamente ajudariam, apenas atrapalhavam o desafortunado humano.

Ele sufocou o grito que o seu descontrole deixara quase escapar. A mão suada esmagava a própria boca, e as lágrimas viam ali um obstáculo. "Se gritar por socorro, será que alguém da comitiva me ouve?", ponderou alarmado, sem saber como agir. Ele temia que movimentos bruscos ou sons demasiado elevados, despertassem a ira da criatura. Na sua cabeça, bastava ficar quieto que o predador passaria a não ter interesse algum na presa. Mas as desgraçadas hormonas continuavam a ser produzidas em grande quantidade e era isso que alimentava o desejo ardente do animal. Ele não iria desistir da caçada, de jeito nenhum.

O animal avançava lentamente, movendo-se num largo círculo imaginado. Era como se ele estivesse a definir o limite da arena.

A besta apareceu no campo de visão de LeFou, à sua esquerda, com as quatro patas bem assentes no solo. Seu dorso levantava-se numa curvatura acentuada e os dentes cortantes tornavam-se visíveis no maxilar contraído. Os oito olhos do animal perfilavam-se numa testa larga, com as íris esbranquiçadas vidradas no alvo. O rugido baixo não deixava espaço para qualquer dúvida, o ex-republicano estava condenado a uma morte lenta e excruciante. Talvez fosse um fim justo, tendo em conta a sua participação na invasão à mansão real. Pelo menos, durante aqueles segundos, enquanto enfrentava a morte nos olhos, ele acreditou nisso, que aquele era um asserto de contas do Destino.

− Socorro! – gritou, vendo-se sem mais nenhuma outra opção. – Socorro! Alguém me ajude! – O animal pareceu sorrir com a aflição do homem, suas pequenas orelhas afiadas na direção da presa. − Por favor... − A voz sumiu-lhe, juntamente com a esperança.

A criatura, movida pela descarga de adrenalina, percorreu a pequena distância que a separava de LeFou numa velocidade estonteante. Os reflexos de um humano pouco poderiam fazer para impedir a investida certeira. Os dentes cravaram-se na perna direita do humano, pouco abaixo do joelho. Um golpe calculista, para dificultar a fuga da presa.

LeFou berrou de dor, tentando afastar a fera de si. Mas a pele, desprovida de pelos, era escorregadia, húmida. Os pequenos olhos do homem embaçavam enquanto ele se tentava focar no que tinha à sua frente. O tom rosado da pele do animal era interrompido por manchas vermelhas que lembravam o sangue. A associação só fazia piorar o entorpecimento que o invadia, as tonturas tornando-se vertiginosas.

− Ei! – O grito apanhou a criatura desprevenida, demasiado compenetrada no sabor do sangue que sugava da perna da presa. Metade dos olhos felinos voltaram-se na direção do som. − Estou aqui, grandalhão! – Killian chamou, gesticulando os braços no ar.

O general não tinha nenhum plano, estava a ser guiado pela improvisação do momento. Fora conduzido ao local, primeiro, pelas pegadas pesadas das botas do ex-republicano, e, depois, pelos gritos desesperados. Em nenhuma altura, enquanto corria até ali, ele ponderou a hipótese de ter de enfrentar uma enorme criatura devoradora de homens. Seu treino não o preparara para tal cenário. Não sabia nada sobre as capacidades de ataque do seu opositor, muito menos as fraquezas. Ele sempre havia sido elogiado pelo seu rápido raciocínio em situações de crise. Killian esperava que essas pessoas estivessem certas, que seu cérebro vencesse a mente ardilosa de seu oponente.

Os dentes, cheios de sangue, foram levantados e voltados de forma ameaçadora para o próximo alvo. O primeiro humano havia sido derrotado facilmente, ele poderia divertir-se com um segundo.

Abandonando o corpo inconsciente junto à árvore, o animal correu para abocanhar a próxima presa. Seus movimentos eram guiados pelo impulso, sem o preparo que lhe fora garantido na caça anterior.

Killian fletiu as pernas e trouxe os braços à altura da face, protegendo-se do futuro embate. Seu corpo contraído para a frente e os punhos semicerrados. A criatura rugiu alto, furiosa pela displicência do homem. Ele não fugia ou paralisava como as habituais presas, mas antes se propunha em atacar em resposta. Como se fosse pário para ela.

Apoiando o peso nas patas traseiras, a fera saltou, a uma distância de alguns metros do alvo, e aterrou com força sobre o general. Suas afiadas garras fixando-se no peito do homem, desequilibrando seu oponente.

O humano caiu para trás, envolvendo as mãos em torno do pescoço do animal. O sangue colava-se à t-shirt branca, mas ele reprimia as dores, grunhindo feroz junto com o seu atacante. A força que um fazia para baixo, era a que o outro fazia para cima. Os músculos dos braços contraiam de tal modo, que as artérias se vincavam na pele.

O hálito nauseabundo caia quente sobre a presa deitada sobre a terra, que se debatia para asfixiar o animal apenas com as mãos. A saliva viscosa do estranho felino, já escorria pelo pescoço do general, junto com o sangue de LeFou e o seu próprio suor. Separados por um mísero palmo, focinho e rosto contraídos em raiva, dor e vontade de vencer.

Num esforço sobre-humano, Killian conseguiu fletir as pernas sob o animal que se curvava em ataque. O homem deixou de pressionar o pescoço viscoso, e, num movimento síncrono, seus pés acertaram, com força, na barriga desprotegida da criatura, fazendo-a cair uns metros para trás.

Movido pelos instintos, o general levantou o tronco e levou a mão ao cós das calças, retirando a arma.

O animal rugiu e voltou a saltar sobre a presa.

Apontar. Pressionar. Soltar.

Os passos não eram difíceis.

Um raio de luz intensa foi projetado da boca do objeto mortal, que tornava aquela batalha tremendamente desigual. A floresta havia sido invadida por dois baques seguidos, o do disparo, mais agudo e artificial, e o do corpo da criatura a colidir com o chão, tão seco, tão real.

Killian olhou assustado para a mancha negra que se alastrava pelo peito estático do animal. Não havia qualquer poça de sangue, nenhum líquido viscoso a sair-lhe das entranhas, e, no entanto, o corpo não dava sinal de vida. Se tivesse tido tempo de precisar a pontaria, não teria sido tão certeiro.

"Se disparada sobre as pernas, nada de mal ocorre, a não ser uns dias sem andar", as palavras de Jofrey invadiram-lhe a consciência. O problema é que ele não havia acertado nas patas, e, sim, no coração.


O general respirava de forma pesada, sentindo as pernas instáveis e a lateral do seu abdómen a latejar. O corpo de LeFou recaia quase na totalidade sobre o apoio que lhe era oferecido pelo guarda. Sem conseguir apoiar a perna direita no chão, nem manter os olhos abertos por muito tempo, o ex-republicano dependia inteiramente da força e resistência de seu salvador.

Do outro lado, Killian arrastava o corpo morto do animal, segurando-o pela jugular. A criatura era escorregadia, o que dificultava o processo, mas não deveria pesar mais do que as caixas de 50 kg, preenchidas de barras de metal puro, que o haviam obrigado a levantar, inúmeras vezes, durante o seu treino como guarda.

A alta vegetação, de uma parte do trajeto, oferecia alguma resistência à passagem dos intrusos. O homem encorpado aproveitava esses troços para abrandar e tentar forçar o seu companheiro a se manter acordado. Os suores frios e as palavras desconexas não lhe pareciam um bom sinal. Ele sabia que estava numa corrida contra o tempo, ainda que não fizesse ideia do que pudesse explicar aquela sintomatologia.

− Meu Deus! – proferiu Soline, horrorizada ao ver os dois homens surgirem por entre a densa florestação. Seus olhos arregalavam-se, enquanto seu cérebro tentava processar o sangue nas vestes dos homens e o estranho corpo inumano que era arrastado. – O que aconteceu?

Dois soldados próximos ergueram-se e correram para ajudar seu general.

− LeFou foi atacado – explicou Killian, ao passar o ex-republicano para os braços estendidos dos guardas. Eles carregaram-no em peso, cada um num lado, possibilitando ao ferido descansar as pernas. – Por esta criatura – acrescentou, deixando cair o corpo morto aos seus pés.

A comitiva deixou-se consumir pelo peso de tal informação. Nem o álcool que lhes corria pelo organismo seria capaz de amenizar aquilo. Os rostos eram contorcidos pelo horror de encarar a besta. Era uma criatura mutada pela radiação e toxicidade que a guerra trouxera. Não era leão, nem leopardo, pantera ou gato. Faltavam-lhe os pelos e a cauda, comuns aos felinos, mas o porte denunciava a ascendência. Os inúmeros olhos esbranquiçados pareciam saltar das cavidades onde estavam alojados e os dentes afiados saíam para fora. A perigosidade da nova espécie estava impressa na pele manchada de vermelho.

− Isto foi um sinal. – A voz de Jofrey soou imponente, como um verdadeiro líder. LeFou passou por ele, carregado pelos dois soldados, e seus olhos nunca desceram na direção do homem ferido. − Para que estejamos mais atentos.

− Nada de álcool a partir de agora – asseverou o general.

Soline apressou-se a alcançar Killian ao vê-lo agarrado ao abdómen. A ferida antiga, ironicamente, era a que mais lhe doía. O passado marcava presença, sem querer largá-lo.

− Deixa-me ver. – A jovem tentou puxar a t-shirt do homem para cima, mas este travou-a.

− Vai antes ver de LeFou – pediu decidido, apontando para a carrinha onde o haviam levado. – Ele parece febril. Ficou assim depois disto, − seu pé esquerdo sacudiu a criatura no solo, − o morder na perna.

A garota assentiu, a contragosto, e virou-lhe costas.

− Bom trabalho, general! – gritou Gaston, do outro lado da clareira. Sua voz mostrava algum ressentimento, uma alma ferida. Mesmo que já não fossem melhores amigos, certamente que não seria fácil ver LeFou naquele estado. – Parece que já não sou o único assassino na comitiva.

O comentário havia acertado o alvo, bem no âmago. Killian desviou o rosto de seu mais recente oponente, morto a seus pés. Mesmo que movido por intenções mais nobres, ele não deixava de ser um assassino.

− O vosso general deve ser ovacionado, não condenado por algo que tinha de ser feito. – Jofrey atravessava a clareira com as mãos atrás das costas e uma postura hirta. − Ele não salvou apenas um ex-republicano, salvou todos vocês. – O tom de voz subiu no fim da frase. − A criatura saciaria a sua fome e logo viria à procura de mais. E, não se enganem, de onde este veio, podem vir outros.

O descendente dos Rayne estacou à frente de Killian. O animal fazia uma barreira física entre os dois homens.

− Temos de estar preparados para atacar qualquer ser que nos faça frente – continuou. O discurso tornava-se cada vez mais aceso. Aos olhos escuros ascendiam as labaredas da sua ambição. − Eles não são nossos amigos, são selvagens! Eles só pensam na sobrevivência deles, e nós temos de pensar na nossa!

A chama chegou no rastilho, rápido, prolongando um caminho de fogo invisível até aos soldados. Os homens gritaram, subitamente esquecidos de LeFou, ainda sob o efeito do veneno que lhe percorria a corrente sanguínea. Jofrey afastou-se um pouco do animal, permitindo a passagem do amontoado animado de guardas que celebrava vitória. Sem grande cuidado ou respeito, o defunto foi erguido no ar e balançado como um troféu.

− Hip-Hip! – bramavam os homens da frente.

− Hurra! – respondiam os de trás. A pele do animal era esticada para todos os lados.

Os soldados não cansavam de entoar, vezes e vezes sem conta, as mesmas palavras, enquanto andavam para a frente e para trás na clareira. Killian não se havia esforçado tanto, trazendo o pesado corpo de arrasto, como uma recompensa ou forma de se gabar. Ele queria que todos da comitiva pudessem identificar o inimigo, quando o vissem.

− Suponho que já possa distribuir as armas aos seus homens, general. É o mais sensato a fazer-se.

− Não sei se será...

− Quer ser o responsável pela morte deles? – jogou seco, sem deixar Killian terminar. − Está nas suas mãos, general, não deixar o passado repetir-se. – A acusação subliminar era óbvia. O guarda vislumbrou o rei Keandre à sua frente, atravessado, de um lado ao outro, por uma barra de metal. A sensação de impotência crescia dentro dele. − Ambos sabemos que só conseguiu sair vivo do confronto com o animal, por causa da arma que carrega.

Killian encostou a mão na cintura, sentindo o conforto do objeto por baixo do tecido. Ele não poderia negar que se sentia mais protegido com ela. Mais capaz.

O sorriso de Jofrey resplandecia de altivez. Ele sempre fora um exímio jogador de xadrez. Já pouco faltava para ter o total controle sobre a operação. Só poderia haver um homem a mandar, e esse homem era ele.

− Nós ouvimos daqui o disparo. Ninguém sabia do que se tratava, mas eu sim. É fabulosa, não é? – O orgulho que deixava transparecer na voz era o equivalente ao de um pai por um filho. Killian teve alguma dificuldade em perceber de que era da arma que o outro falava. − Uma grande descoberta Rayne!

− Se as armas forem distribuídas, mais mortes se seguirão.

− Pelo menos, não seremos nós a ver nosso sangue derramado. Não se iluda, general. Aqui, é matar ou morrer. É matar ou morrer.

Killian assentiu. E que outra hipótese ele tinha?

Aquela criatura havia aparecido no caminho da comitiva como um sinal. E a humanidade, mais uma vez, usava de sua especialidade e ignorava o óbvio.

O mal dos erros não é existirem, mas antes se repetirem infinitas vezes, sem que ninguém se aperceba, até ser tarde demais.

A mensagem estava clara, o solo em que pisavam estava longe de sustentar o paraíso. Era instável, mortal, por debaixo de todas as apetecíveis coisas que poderia oferecer. O perigo camuflava-se nas folhas viçosas. Mas os soldados não estavam dispostos a abdicar dos privilégios. A partir dali em diante, qualquer coisa que se mexesse por entre a mata, correria sérios riscos de vida, incluindo eles mesmos.

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