Capítulo 2 - Velhos hábitos

30 horas depois

O entusiasmo dos homens destacava-se nas terras áridas onde fincavam os pés. O silêncio de séculos quebrado, sem cerimônia. Na linha do horizonte, os tons alaranjados do céu mesclavam-se com a terra ressequida e sem cor. Olhando para trás, não havia qualquer sinal da província, eclipsada pelo peso do sol ardente, que se recolhia na procura da paz, também ela perdida.

As seis horas de viagem não tinham trazido fruto algum. Era impressionante como os vestígios da humanidade tinham sido apagados de forma exímia. Melhor do que uma borracha, que sempre deixa aparas para trás. Naquele caso, as cinzas já tinham sido engolidas pela terra há muito. Seria irónico, se não fosse tão trágico, que os próprios humanos tivessem destruído o património erguido ao longo de milhares de anos. Sempre tão preocupados em deixar tudo registado, todos os vestígios do passado preservados, e apenas uma guerra havia mudado completamente as prioridades dos Homens.

A terceira guerra mundial fora munida com os equipamentos tecnológicos mais avançados e as armas mais mortíferas, numa luta de egos entre países. Talvez agora estivessem mais satisfeitos, já que não restaram egos para se defender, nem muito menos os países. Sobrara a terra, as rochas sempre mutáveis e resistentes a qualquer tipo de pressão e temperatura. Algumas zonas, pelas quais as carrinhas passaram, pareciam fumegar. Tinha sido necessário contornar vastos lagos de líquido vermelho, que borbulhavam, reclamando de algo que se dera há tantos anos. A comitiva temera pelos frágeis pneus tão antiquados das viaturas. Ao contrário do carro da família real, que flutuava a poucos centímetros acima do solo, aquelas carrinhas eram verdadeiras relíquias movidas a eletricidade. Mas, felizmente, a precaução tinha-lhes salvo a vida, tal como tinha acontecido na construção da Redoma.

Enquanto os soldados montavam as tendas, Gaston agarrava-se às poucas estrelas que ascendiam sobre sua cabeça. Ele era o único que não trabalhava, momentaneamente alienado daquele tempo e espaço. Um homem sem rumo que procurava uma resposta naquelas que se diziam guias da humanidade. Talvez isso fosse apenas mais um sintoma do egocentrismo da sua espécie, Gaston falhava em ver qualquer linha no céu. Eram apenas pontos isolados, sozinhos e distantes de tudo e todos.

O ex-prisioneiro sentou-se em um assento improvisado feito de uma das caixas de transporte. Os homens, que passavam por ele, nada diziam. Agarravam-se às caixas pesadas de metal e continuavam o seu caminho. Não era por lhe temerem, ou, muito menos, por lhe terem respeito, mas antes pelo sentido de justiça. Os soldados não haviam conduzido durante horas a fio, muitos tendo até adormecido no trajeto vazio e aborrecido. Seus pescoços não estavam tensos, nem tinham as pernas dormentes. Não que isso explicasse por inteiro a posição soberba do queixo quadrado levantado no ar. O que é certo é que LeFou poderia ter exatamente a mesma desculpa e, porém, suava a tentar fincar os pinos das tendas no solo duro e resistente.

Os olhos de Gaston, escuros e tão ou mais impenetráveis do que a terra que lhes oferecia estadia naquela noite, perscrutavam, atentos, as pessoas que ele ainda não conhecia bem. Um ou outro homem cantarolava, alguns gargalhavam com a mais simples piada e poucos eram aqueles que encaravam as tarefas, delegadas por Killian, com seriedade. Ele aproveitava cada pequeno gesto, cada pequeno deslize, para saber em quem poderia confiar no caso de as coisas descambarem para o seu lado. Ele vivera toda a sua vida a planear, a engendrar formas de se proteger e de vingar seus pais. Gaston era um homem calculista, que se habituara a estar à defesa, para depois poder atacar. No entanto, naquele momento, ele apenas registava sem saber para que lhe serviria toda aquela atenção esgotante aos mais pequenos pormenores. Sem causa alguma, toda a sua forma de agir e pensar parecia-lhe, repentinamente, inútil.

Junto às duas carrinhas empoeiradas, Killian controlava as caixas que saíam, analisando o que lhes poderia ser proveitoso para uma simples noite de descanso. Tinha especialmente debaixo de olho as que forneceriam a alimentação da comitiva. Os soldados tinham tendência a querer mais do que seus estômagos realmente precisavam, e, numa viagem tão imprevisível quanto aquela, era necessário ser-se cauteloso e saber-se poupar. Mas as rações secas não eram tão apetecíveis como as iguarias servidas na mansão real, e isso poderia bastar para manter longe a gula incontrolável dos soldados.

O general olhou para as restantes cinco caixas que ainda tinha para analisar e suspirou. Ele gostaria de ter estado no controle do que entraria ou não nas carrinhas, mas, com o tempo apertado e a posição afirmativa de Jofrey, Killian não teve outra opção senão confiar que tudo o que precisariam seria trazido. Se os Rayne haviam passado a vida dedicada àquela jornada, certamente que estariam bem mais preparados que um simples soldado, promovido a chefe da guarda por mera casualidade do destino.

Subindo para o interior da bagageira larga, Killian aproximou-se das caixas mais resguardadas, ansioso por terminar, de uma vez, aquela tarefa e se juntar aos restantes soldados. A sua altura forçava-o a assumir uma posição desconfortável, meio curvado, para não bater com a cabeça no teto da carrinha.

As caixas estavam presas por fivelas bem apertadas, pressionando-as contra as costas dos bancos, e impossibilitando-as de se moverem. O general agachou-se junto à do canto esquerdo, sem fletir as pernas por completo, e exerceu a força necessária para vencer a pressão da tampa fechada.

− Mas o que...?

De olhos arregalados, Killian pegou em um dos estranhos dispositivos presentes no interior da caixa. Não era preciso escolher, todos se perdiam em um mar de um só tom azulado, sem identidade própria, cada um como a cópia perfeita do que o que se encontrava ao seu lado. O general testou o peso leve do objeto e não foi preciso muito tempo para que a sua mão soubesse exatamente onde segurar. Um prolongamento, de diâmetro ideal para uma mão fechada, descia pelo largo cilindro que se afunilava em um dos extremos. Seu indicador alojou-se na pequena janela quadrangular, tentado a pressionar o pequeno gatilho que pendia inocente naquele espaço aberto.

− Eu se fosse a você tinha cuidado com isso, general. – Uma voz jocosa surgiu do exterior da carrinha.

Killian reconheceu, de imediato, o tom prepotente e maduro de Jofrey, um dos homens com mais idade da comitiva, só ficando atrás de Taupe, o informático. Mas sua experiência nada tinha que ver com o tempo em que já vivera. Rayne apenas sabia mais do que todos ali, porque sempre tivera os olhos bem abertos à possibilidade de uma vida sem a Redoma.

− Isto é uma arma, não é? – questionou o general assustado com a constatação que já lhe era tão óbvia. Ele mantinha-se quieto, agachado e com os olhos esverdeados a enfrentar o mar escuro de engenhos tão mortíferos. – Não é possível. As armas foram abolidas da província para se alimentar a paz e não a guerra.

Os pensamentos de Killian corriam desenfreados. À memória, chegavam-lhe todos os treinos que tinha tido tão jovem para se tornar no soldado que sempre quisera. Aos dezasseis anos, habituara-se a ver a violência como uma solução de último recurso. Os guardas eram treinados a usar o próprio corpo como a única forma de ataque.

− Já não estamos em Villeneuve, general. – Killian voltou o rosto na direção de Jofrey. – Aqui fora as regras são outras.

Sem largar a arma, o general encaminhou-se, com o tronco dobrado, para fora da carrinha. Aquela conversa não estava a ir no rumo que ele gostaria. Rayne permaneceu rígido no seu lugar, enquanto o guarda encorpado saltava precisamente para a sua frente.

− Os reis sabem dessa... mudança de regras? – A voz de Killian saiu cortante. Seu corpo agigantou-se para o homem que alegava ser o dono da verdade.

− Óbvio – respondeu Jofrey, transbordando serenidade. Ele fitava, sorridente, o engenho mortífero inutilmente apontado para o chão. − Eles deram-me liberdade total para encaminhar esta expedição, não se lembra, general?

− Hmm – murmurou ácido. Killian não gostava quando se esquivavam às suas perguntas. Ele era um homem direto, nada fã de atalhos ou caminhos sinuosos.

− As armas servem apenas como proteção. Não têm balas, nem munições cortantes dentro do cano. − A luz escassa do sol, que ainda se fazia presente, embatia no objeto apontado ao chão, permitindo ver umas espirais, de um azul mais escuro, dentro do longo cano translúcido que atravessava o cilindro. Killian sentiu uma vontade estranha de descobrir o que aconteceria se apertasse o gatilho sob seu indicador esquerdo. – Elas imobilizam os oponentes com uma descarga de energia de alta voltagem. Se disparada sobre as pernas, nada de mal ocorre, a não ser uns dias sem andar.

Jofrey viu as mudanças no rosto jovem do guarda à sua frente. Sua expressão continuava moldada pela dúvida, mas já não havia qualquer ameaça velada no seu olhar. As grossas sobrancelhas contraiam-se, mostrando o quão recetivas estavam ao efeito das palavras de um Rayne.

− Já pensou o que seria do rei Keandre e da rainha Florianne, se estivesse armado com uma dessas, – Jofrey apontou para a arma que Killian segurava, − no dia em que a mansão foi invadida pelos republicanos? Certamente que o desfecho tinha sido outro.

O tiro fora certeiro. Ainda que não estivesse armado, Jofrey encurralara Killian com as próprias inseguranças do rapaz. O mais velho sorriu de lado ao ver a luta interna que o general travava.

− Que seja! – Killian disse, por fim, sem argumento plausível para contrariar a lógica do raciocínio de Rayne. − Mas apenas eu e o senhor carregaremos uma destas. Será o suficiente para nos protegermos. – Jofrey aquiesceu, com o sorriso triunfante a desafiar o jovem demasiado volátil. − Não iremos envolver os soldados nesta história, muito menos os ex-republicanos – exigiu, perentório.

− Como preferir, general.

Pelo final da conversa, dir-se-ia que tinha sido Killian o vencedor daquela batalha. Jofrey Rayne dera as costas ao chefe dos soldados como quem recua de um confronto fracassado. Mas o sorriso superior estava lá, implantado no rosto longo e delgado de um homem que tinha sido treinado para vencer. Os dois tinham isso em comum, ainda que o tabuleiro estivesse desequilibrado à partida. Jofrey havia distorcido as coisas de tal modo que fez com que o general sentisse que estava no controle da situação. Contudo, a arma dos Rayne estava lá, no cós das calças do jovem soldado.


As caixas vazias haviam sido colocadas em forma de círculo em volta do radiador portátil de climatização de uma das carrinhas. Anoitecera rápido e a temperatura não era a que os habitantes de Villeneuve estavam habituados, ao terem vivido anos debaixo da atmosfera controlada da Redoma. A maioria dos soldados cobria-se com mantas até ao queixo. E todos aqueles que não estavam destacados para a vigília daquela noite, puderam dar-se ao luxo de beber de um dos dez garrafões de vinho trazidos para a missão. Uma regalia para tão bravos homens, que se sacrificavam em prol do bem da humanidade.

− Não tivemos sorte ainda, mas melhores dias virão! – prometeu Taupe levando o garrafão ao centro da roda e depois colando o gargalo aos lábios. O líquido arranhou-lhe a garganta e logo lhe aqueceu as entranhas. – Que maravilha! Quem sabe não encontraremos mais mil garrafões iguais a este no Novo Mundo?

Os soldados urraram animados, rapidamente esquecidos do frio.

O informático estendeu o garrafão para o seu lado direito.

− Não, obrigada – recusou Soline, timidamente. A garota encolheu-se no lugar por debaixo da larga manta, trazendo-a para mais junto do rosto. Os seus curtos cabelos escuros começavam a ondular com a humidade do ar. – Eu não bebo.

− Só sabe se experimentar – comentou o soldado à sua frente, do outro lado do círculo. − Tem umas quantas coisas deliciosas que nós, homens, podemos lhe mostrar. – O jovem passou a língua pelos dentes de forma sugestiva.

Os soldados gargalharam, alguns tecendo comentários maliciosos, em surdina, para o colega do lado, outros mirando a bela e pequena mulher, idealizando curvas avultadas, que não existiam, por debaixo do trapo pesado.

Soline olhou para o primo, procurando proteção, mas Jofrey fingiu não notar. Era cada um por si.

− Aquietem o facho! – bramou Killian sobre as vozes inquietas de seus homens. O silêncio caiu de forma imperiosa naquele círculo humano. − Soline é uma de nós, agora! – A jovem levantou o rosto humilhado e encarou o olhar complacente do general. − Quem se atrever a tocar-lhe com um dedo sequer, terá de se haver comigo!

O clima pesado seria propício a um enterro, ainda que se fizesse uma festa ainda há uns minutos. Os soldados sentiam-se mal pela reprimenda, eles tinham orgulho do general e respeitavam-no como se fosse Deus na Terra. Já os ex-republicanos sentiam-se constrangidos pela situação, mas não poderiam deixar de sentir admiração pela postura de Killian. Gaston não o admitiria nunca em voz alta, porém, ficara satisfeito com a ação do jovem soldado com que implicava frequentemente.

Jofrey inclinou o corpo para o lado, estendendo-se à frente da prima e agarrando no garrafão que esta não quisera. Ele bebericou com vontade, sem se aperceber do olhar reprovador de Killian.

− Eu espero encontrar um rio da juventude eterna no Novo Mundo – comentou Gaston, tentando desanuviar o clima. Não estava ali para fazer amigos, preferia manter-se reservado para se proteger, mas ali não havia hipótese. Ele tinha de fazer algo para que os homens voltassem a ficar motivados. Se o clima fosse ruim entre todos, não chegariam muito longe, e o maior desejo de Gaston Côte, no momento, era manter-se afastado o mais possível de Villeneuve. – Perder este rosto perfeito seria um desperdício. A melhor criação de Deus tem de ser protegida.

Risos tímidos escaparam de alguns soldados. Quase que se conseguiam palpar as fendas na barreira invisível em torno dos homens. Se uma Redoma de 300 anos se quebrara, aquela não poderia ser tão difícil assim de derrubar.

− Uma árvore de amendoins – sussurrou LeFou.

Ainda que tivesse falado baixo, o silêncio da noite fez com que todos o conseguissem ouvir. O ex-republicano havia ficado fragilizado depois de participar da luta contra a monarquia, mas o pior tinha sido perder seu melhor amigo. Ele sabia que era o culpado, que fora ele o traidor que cortara os laços fortíssimos de uma amizade de anos, e estava disposto a tudo para voltar a recuperar aquela relação que tanta falta lhe fazia. Ouvir Gaston falando sobre sua beleza lhe dera um relance dos tempos antigos. Lhe fizera lembrar dos dias que passavam os dois no único bar existente na província, bebendo cerveja e comendo amendoins racionados.

− No Novo Mundo, certamente que haverá uma árvore de amendoins – continuou, num tom de voz mais seguro.

− Para isso era preciso que viessem das árvores – contra-argumentou Taupe, rindo da sugestão do amigo. Os soldados se juntaram a ele. – E olha lá, só uma? Pede logo um hectare inteiro!

− Seria um sonho – ponderou LeFou pensativo, já se imaginando a correr entre uma enxurrada de árvores, com os amendoins a caírem-lhe para a boca, já descascados e tudo! Um suspiro pesado soltou-se do fundo das suas entranhas.

Daquela vez, o riso parecia um só, um som refrescante emitido pelo círculo. A barreira completamente quebrada, e os homens desinibidos e prontos para partilharem seus desejos mais profundos para o Novo Mundo que encontrariam.

Soldado atrás de soldado, se ouviu de tudo um pouco, cada desejo refletindo um pouco da alma de cada homem.

− E você, general, o que gostaria de encontrar? – interrogou Soline, aproveitando um silêncio fugaz. A moça ficara o tempo todo observando o misterioso e bondoso soldado, que agira a seu favor, lhe oferecendo proteção. Ela sentia que havia uma divida para quitar.

Killian, que ficara calado e quieto no seu lugar durante todo o tempo, apenas se rindo de uma ou outra parvoíce de seus companheiros, levantou o rosto, sem medo de enfrentar os olhos curiosos da única garota do grupo.

− Não quero nada para mim. Estou aqui por uma missão e irei cumpri-la com rigor. Quero que o Novo Mundo nos ofereça tudo o que Villeneuve precisa. Isso será o suficiente para mim.

Os soldados não viram a grandiosidade daquela resposta, até porque já estavam habituados ao sentido de honra e compromisso de Killian. No entanto, Soline sentiu qualquer coisa de diferente se remexer dentro de si, ao se deparar com um fragmento genuíno e tão cativante da alma do general.

− E se não houver nada? – A garota colocou para fora sua inquietação de uma vida. Assustava-a que o trabalho de seus familiares tivesse sido em vão. Que ela tivesse chorado tanto, por nada.

O elefante na sala finalmente era notado por todos os presentes naquele círculo. A dúvida invadia todos de uma forma dilacerante, menos de uma única pessoa.

− Existe, sim – afirmou Jofrey.

Para Soline, pouco significavam as certezas do primo. Ela teria gostado de ouvir um outro alguém a assegurar-lhe que tudo correria pelo melhor. Mas nunca ninguém o fazia.

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