Capítulo 18 - A captura
Nilespri acenou com a cabeça e os cinco homens colocaram-se em posição de ataque. O alvo movia-se para além da parede alta de folhas. A confiança que o transbordava, enquanto desbravava terreno proibido, revoltava o irmão mais velho de Nileya.
Ele havia dado tempo ao homem. Em silêncio, junto com seu grupo, Pri assistira à ousadia do invasor, atravessando o rio, na sua parte mais baixa. Observara durante todo o tempo, acompanhando de perto seus avanços floresta adentro. Porém, o estranho não parecia saciar nunca a sua curiosidade. Ele aproximava-se cada vez mais da residência atual da tribo.
Os vários pares de mãos abriram estreitas brechas na cortina verde. Os espaços improvisados cuspiram os corpos sem qualquer resistência. A passagem parecia tão natural que só poderia ser sinal de que tinham a Natureza do lado deles.
Harmil foi o mais ágil e preciso de todos, saltando sobre o alvo, mal seu pé direito havia assentado no solo. O tempo de reação do invasor não ficara muito atrás. A criatura fora alertada pelo som das folhas remexidas, em diversos pontos. Ele já levava a mão ao cós das calças, quando sentiu seu corpo ser projetado por uma força bruta. Seus olhos viram apenas uma mancha escura, num relance tão breve que não foi possível detetar os contornos humanos.
O baque duro foi amparado pelas mãos, que rasparam na terra irregular. Os grãos soltos abriram fendas na pele imaculada de Killian e os vestígios de sangue fizeram a poeira grudar. O general ergueu o rosto para o pedregulho que o fitava, hirto e rígido, com o semblante vincado numa fúria silenciosa. O ataque inesperado dizia-lhe que a sua presença ali não era nem remotamente desejada. Seus ímpetos de contra-atacar cresceram ardentes dentro de si, mas acabaram sendo reprimidos pelos longos cabelos brancos do homem. Os fios, que balançavam entre a brisa, lembraram-no da nativa por quem já procurava há dois dias. Duas tardes inteiras de frustração, para agora esbarrar na sociedade de que a moça sempre se mostrara hesitante em falar.
Os dois irmãos de Nileya apressaram-se a ladear o intruso e inclinaram-se para o levantar do chão. As mãos dos nativos firmaram nos braços de Killian e puxaram-no para cima. O general, agitado pelo súbito surgimento de mais dois atacantes, resistiu às investidas, forçando o corpo a manter-se sentado. As botas deslizaram pela terra seca, enquanto os descendentes Nile tentavam fazer valer sua vontade. Os pés descalços dos indígenas não vacilavam, aderindo aos detritos como se fossem um prolongamento dos mesmos.
Quando um quarto elemento do grupo se colou nas costas de Killian, apoiando os braços nas axilas do general, a balança desequilibrou de vez. Tinham sido necessários três homens para o levantar e isso só reforçava a crença da perigosidade daquela espécie que tanto se assemelhava à da tribo.
Eram criaturas a temer-se, sem dúvida, concluiu Nilespri fazendo um novo sinal a Harmil, estacado na frente deles.
O homem rochoso captou o movimento exagerado das sobrancelhas no mais velho, que suportava em esforço a revolta do capturado. Ele rasgou um pedaço dos próprios calções de pano, sem dificuldade, já que o material se desfazia em gastas ripas nas bordas justas às pernas torneadas. E verteu sobre ele o líquido resguardado no interior do pequeno frasco de cortiça, que havia trazido amarrado à cintura especialmente para aquela missão.
Os olhos de Killian abriram-se, sem quererem acreditar no braço que se estendia na direção de seu rosto. A memória atraiçoara-o, por momentos, fazendo-o viajar de novo para o passado. No golpe dos republicanos, ele tinha sido obrigado a assistir a muitos de seus companheiros deitados abaixo, derrotados sem possibilidade de luta, por panos embebidos num líquido implacável. Ele não conseguia pensar numa forma mais injusta para se definirem vencedores e perdedores em batalha.
‒ Não, por favor... ‒ pediu, se debatendo. Ele não tinha a certeza de que seria compreendido, mas, se Nileya o entendia, a hipótese não lhe parecia tão impossível assim. ‒ Eu não que...
Killian quis defender-se, alegar que não estava ali para lhes fazer mal algum, assim como ele acreditava que também seria o caso deles. Estavam apenas intimidados pela presença de um humano tão diferente. Os encontros anteriores com Nileya davam-lhe essa certeza. Porém, Harmil esmagou a boca aberta do general, sem complacência, com o tecido a abafar os últimos sons que conseguiu emitir. As palavras esmoreceram num instante e logo os músculos seguiram esse mesmo caminho. As pálpebras ficaram-lhe estranhamente pesadas e o corpo rendeu-se aos inimigos. Num último relance de consciência, ele pensou no peixe farol que ajudara a capturar. Talvez ali estivesse a justiça de que ele sentira falta ainda há pouco. Aquela era prova de que o Destino poderia ser mordaz, se assim o entendesse.
A serenidade de Zanile nada mais se tratava do que uma capa em torno do corpo tenso. Os rostos assustados recebiam seu olhar sapiente, um aquiescer da cabeça que dizia o quanto eles poderiam confiar nele. Porém, ele não sabia ainda o que fazer. O líder avançava até à cabana de Virsari pesando sua decisão, antes mesmo de vislumbrar a face do inimigo. De uma coisa ele estava absolutamente convicto, não poderia deixar que seu povo corresse perigo.
‒ Aexleil ‒ ele chamou a mulher do seu lado, estacando a poucos metros da entrada.
Sem pestanejar, Aexleil posicionou-se na frente do pai de sua filha e aplacou-lhe a mão calejada. Em silêncio, ela dizia-lhe que poderia pedir-lhe qualquer coisa. Seguiria cega fosse qual fosse o caminho para o qual ele apontasse.
‒ Chama a Nileya. Ela foi incumbida de tratar do campo a Este, mas isto é mais importante agora. ‒ A mulher massajou a palma da mão de Zanile, sentindo a tensão invisível aos restantes dos observadores. ‒ Eu quero que a nossa filha esteja do meu lado, neste momento.
‒ Ela estará aqui.
A mulher encostou seus lábios ao único homem com o qual continuava a estabelecer uma ligação profunda, mesmo depois de todos aqueles anos, e viu um pouco da carga pesada desvanecer dos ombros do líder. Um mísero segundo onde Zanile pôde fugir das suas obrigações, do seu dever para com toda uma nação.
Com o afastamento de Aexleil, os traços do líder firmaram posição no ponto à sua frente. As grossas sobrancelhas enrugavam perante o desafio que o esperava. Ele não era homem de adiar ou fugir. Não seria na sua liderança que o povo Bélu pereceria. Enchendo-se de determinação, Zanile adentrou no espaço onde seria definido o Destino de um simples homem, como se de uma raça inteira se tratasse.
‒ Pai ‒ Nilespri soltou a palavra aliviado. ‒ Virsari disse que já não falta muito para o intruso recuperar a consciência.
O recém-chegado não olhava o filho, mantendo sua atenção no homem amarrado a um dos pés pesados da cama. A cabeça caída para o chão não permitia que seus traços fossem analisados, mas as longas e torneadas pernas, como dois troncos pulsantes mesmo depois de abatidos, e os ombros largos, tal qual a profundidade inesperada de um troço do rio, não deixavam margem para dúvida. O estranho humano não era, de todo, uma criatura fraca e indefesa.
‒ Qual será o procedimento, Zanile? ‒ questionou Virsari, levantando-se da roda central onde o grupo do rio estava reunido. Apenas Harmil faltava, por ter sido escolhido para avisar o líder.
‒ Ele veio do outro lado do rio. ‒ A resposta curta foi o suficiente para o sábio perceber suas intenções.
‒ Em meia hora, já terei tudo pronto ‒ declarou Virsari, dirigindo-se calmamente para o canto esquerdo da cabana. A sua devoção e respeito pelo líder nunca o fariam contestar a posição do soberano.
Zanile assentiu agradado. A sentença já estava feita, com poucas palavras e sem espaço para discussão.
O acusado permanecia entregue à escuridão, sem se poder defender. De todo o modo, a decisão não era contestável.
‒ Ele está acordando ‒ informou Econile prostrado na frente do inimigo. O rapaz ficara zelando pelo sono do homem, enquanto os outros discutiam cursos de ação após a execução da sentença.
Zanile aproximou-se do filho e afastou-o daquela posição tão frágil em que se encontrava. As pernas de Killian haviam sido amarradas uma na outra para precaução, mas ainda estavam soltas no vazio, sem poderem ser firmadas nas folhas secas do chão.
‒ O soro está pronto. ‒ A declaração de Virsari deixou o ambiente mais leve. Aquele seria um problema a menos.
‒ Essa dosagem é suficiente? ‒ Nilespri espreitava duvidoso para o líquido enjaulado na seringa entre as mãos do sábio. ‒ O porte e o metabolismo dele diferem um pouco das criaturas que têm vindo do outro lado do rio.
‒ E você acha que já não pensei nisso, rapaz?
O filho do líder encolheu-se encabulado. Tinha sido mais o desespero a falar do que outra coisa. Ele sabia que a experiência de Virsari o tornava totalmente qualificado para aquele momento.
Engolindo em seco, Nilespri segurou no injetável e o levou ao pai. Aquele era dos equipamentos mais avançados que detinham na tribo. Por herança de uma vida passada, o povo Bélu havia conseguido assegurar, até ao momento presente, uma quantidade razoável de seringas. O racionamento tinha sido bem planeado e executado, continuando assim, elas poderiam estender-se por mais uma década.
‒ O que... ‒ Killian balbuciou, forçando os lábios secos e dormentes a entreabrirem-se. A visão embaçada não lhe permitia chegar a uma conclusão sobre o local em que se encontrava. Porém, os vultos, que se desenhavam aos poucos, não se pareciam em nada com os seus homens. ‒ Onde... estou? ‒ O general tentou levar a mão à cabeça pesada, mas foi surpreendido com uma força que lhe prendia os pulsos. O material fazia-o recordar da textura e resistência de uma grossa corda, roçando-lhe desagradavelmente na pele.
‒ Ele não parece feliz ‒ comentou um dos integrantes do semicírculo formado em torno do capturado.
‒ Você também não estaria, no lugar dele ‒ retrocou Econile. Seria bom se a empatia se pudesse desligar com um interruptor, mas esse não era o caso.
‒ Não nos compares a ele ‒ repreendeu o irmão mais velho, cuspindo a última palavra com desprezo.
O soldado reconheceu as formas dos homens que o haviam atacado na floresta, porém não entendia o que estes falavam entre si.
Então, esta é a língua dela, pensou Killian sem conseguir evitar lembrar-se de Nileya. Só que eles não eram como a doce jovem indígena. Ao invés de o tentarem ouvir, eles atacaram-no, drogaram-no, amarraram-no, e ele nem queria cogitar o que mais é que eles seriam capazes de lhe fazer.
‒ É raivoso ‒ disse o rapaz da ponta, recuando dois passos. O capturado puxava os braços para dentro e para fora, tentando quebrar as fibras que lhe envolviam os pulsos. As pernas eram domadas por espasmos ocasionados pela força aplicada contra a cama atrás dele. ‒ Vocês acham que morde?
‒ Não quero arriscar testar. ‒ Econile sentiu-se incomodado com a aspereza na voz do irmão. Aquele era um lado que não reconhecia em Nilespri. A forma como ele se estava a deixar afetar pelo estrangeiro não era nada saudável.
‒ Podemos falar? Em francês, para que nos entendamos mutuamente. ‒ Killian fez uma pausa, mas não obteve qualquer tipo de reação por parte dos seus raptores. Eles mantiveram-se calados, olhando-o com estranheza. Parecia-lhe ridículo exigir que entendessem a sua língua, quando ele mesmo não percebia a deles. Mas o que mais lhe restava? Ele tinha de tentar fazer-se ouvir. E aquela era a única maneira que conhecia de comunicar. ‒ Eu realmente não queria perturbar-vos de modo algum. Se eu fiz alguma coisa que não devia... ‒ Por momentos, passou-lhe pela cabeça que tudo aquilo não passasse de um acerto de contas. Que talvez estivessem tentando defender Nileya. Depois da última discussão dos dois, a hipótese seria plausível. ‒ Foram os vossos Deuses que vos mandaram fazer isto comigo?
A frase repercutiu no lado de lá como um chicote. Zanile fechou o punho desocupado com força, controlando-se para não responder à ofensa.
‒ Ele está zombando da gente? ‒ Nilespri falou na sua própria língua, porém a sua expressão facial e o tom ríspido davam a entender que ele estava reagindo ao discurso de Killian. Apenas os três rapazes dos extremos do semi-círculo aparentavam um desnorteamento, como se não fizessem a mínima ideia do que se estava passando ali. ‒ Como ele ousa falar assim dos Deuses?
Era oficial, o general era perito em colocar o pé na poça. Ele recriminou-se, de imediato, ao sentir a fúria que crescia dentro daqueles homens.
‒ Virsari, pode começar o ritual ‒ Zanile falou, sem qualquer hesitação.
Killian não teve muito tempo para processar o nome que já tinha ouvido pela boca da jovem indígena. O homem idoso começou a ziguezaguear dentro da cabana, entoando sons curtos e embalados numa melodia arrepiante. A música não soava como uma boa premonição.
A seringa foi erguida em riste, enquanto o grupo do rio saltou para a frente, agarrando as pernas que se preparavam para escapar.
‒ Por favor, não me matem. Não me matem.
O capturado esperneava-se, tentando, em vão, superar a força dos cinco rapazes de cabelos longos e pálidos. O sangue fervia-lhe nas veias e ele só conseguia pensar em como tinha sido idiota em arriscar tudo, a missão, a própria vida, por uma curiosidade boba. Ele lutava, mas, no fundo, sabia que não havia mais nada a fazer. Só aceitar seu cruel Destino.
‒ Não! ‒ Por entre a cantiga do seu desfecho amargo, a voz de um anjo chegou-lhe aos ouvidos. Killian fechou os olhos esperando o choque final, porém o frio do líquido não o invadiu. ‒ Não, baa! Não o faças.
Zanile não podia acreditar na imagem que seu cérebro processava. A sua primogênita desafiava sua autoridade, plantada na frente do inimigo, com as palmas das mãos erguidas, pedindo clemência.
O general via-lhe a retaguarda, reconhecia sua silhueta e a voz doce, e, apesar de não perceber a língua, era óbvio que estava ali por ele. Um anjo sem asas, era o que Nileya parecia para Killian.
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