Capítulo 17 - Wazzirti
A multidão aguardava, ansiosa, por notícias. O povo havia sido reunido na frente da cabana de Zanile. Não sabiam o motivo, mas viam nos dois irmãos Nile, parados na frente das acomodações do líder, que o caso era sério.
‒ O que se passa, yaan? ‒ Nileya perguntou em sussurro no ouvido da mãe. A jovem tinha conseguido furar a massa de pessoas e chegado na linha da frente.
‒ Não sei, Lya. ‒ Aexleil acariciou a mão da filha, tentando reconfortá-la pela possível tempestade que ameaçava chegar. ‒ Seu pai tem algo importante para comunicar, mas eu não estou por dentro do assunto.
Aquela era uma resposta que a jovem não esperava. A opinião de sua mãe era das que o líder mais procurava. Se tinha existido uma decisão sem a consultar, talvez não existisse muita margem, nem de tempo, nem para um outro possível caminho.
Zanile saiu da cabana, na frente de Virsari. O líder colocou-se no meio dos dois filhos e o sábio manteve-se num local recuado, quase recostado nas paredes exteriores da casa.
‒ Lamento estar a interromper as alegrias próprias de um final de tarde ‒ começou Zanile, varrendo seus olhos pelos indivíduos que tinha como irmãos. Eles eram uma grande família e a última coisa que ele queria era que algo de ruim acontecesse a algum deles. ‒ Mas a nossa segurança vem sempre em primeiro lugar. Uma preocupação recente chegou-me aos ouvidos. ‒ Os dois descendentes Nile assentiram com a cabeça, denunciando a contribuição deles naquela história. A primogénita foi consumida por um receio repentino de que eles a tivessem visto com Killian. A culpa levou-a a encolher os ombros. ‒ Virsari confirmou. Homens, diferentes de nós, espíritos malignos do outro lado do rio, montam casas na margem e aproximam-se perigosamente de nosso povo.
Um burburinho de vozes, perdidas no medo, cresceu por entre a multidão. Nileya e Abenile, na linha da frente, remexeram-se nervosas, cúmplices de um segredo que agora chegava à superfície. Aexleil interpretou a reação da filha como receio e trouxe o corpo dela para junto do seu.
‒ Não há razão para nos alarmarmos ‒ continuou o líder, tentando aquietar os inúmeros corações que se alastravam à sua frente. O povo entregou-se ao silêncio, ainda que a ansiedade permanecesse resguardada no interior. ‒ As visões de Virsari são claras. Se nós não nos pusermos no caminho deles, eles não serão uma ameaça. O grupo do rio ‒ Ele abriu os braços e envolveu os dois filhos ‒ irá patrulhar a floresta todos os dias, para evitar que estes Homens tentem desafiar as leis do Destino. Eles não se irão aproximar de nós.
Nileya avançou com o pé direito, mas logo a mãe a prendeu forte nos seus braços. Era de se antever que a moça tentasse voluntariar-se para ajudar. Ninguém conhecia tão bem aquele lado da floresta quanto a sucessora de Zanile. Mas Aexleil sabia porque seu amado não atribuíra essa missão à primogénita, e estava absolutamente de acordo. O perigo de perder a sucessora tinha de ser evitado.
‒ Ninguém, repito ‒ o líder fixou os olhos em Nileya ‒ ninguém, poderá se aproximar do rio. Muito menos, destes Homens. A floresta a sul ficará interdita até o perigo passar.
A garota abriu a boca para protestar, mas viu no olhar duro do progenitor que aquilo não era negociável. Um longo suspiro rompeu-lhe da alma e ela deixou-se entregar ao abrigo do corpo meigo da mãe. Aexleil passou a mão pelos cabelos da filha, como se quisesse sugar as dores que a acometiam. Nileya sentia como se estivessem a queimar-lhe parte da alma. Sua liberdade restrita a uma zona cada vez mais apertada.
‒ Nossas vidas continuarão normalmente ‒ garantiu Zanile. ‒ O nosso povo já passou por tantas tempestades, não será esta que nos deitará abaixo. Os Deuses estarão sempre com a gente.
‒ Dangralum! ‒ A multidão proferiu em uníssono.
Tão rapidamente quanto haviam se juntado, as pessoas começaram a dispersar. A pequena reunião tinha chegado no fim e, apesar do tom pesado do assunto anunciado, todos pareciam caminhar com leveza. A resiliência de um povo que realmente passara por muito para sobreviver. Mas não se poderia tirar o mérito ao líder, que sempre conseguia escolher as melhores palavras.
‒ Logo, logo, você poderá voltar a circular junto ao rio ‒ disse Aexleil, puxando a filha para trás para que lhe pudesse ver o rosto. As mãos massajavam-lhe os ombros. ‒ Isto vai passar num piscar de olhos, você vai ver.
A jovem anuiu, com um sorriso forçado. Tudo o que menos queria era que a mãe se alarmasse com o seu desânimo.
‒ Vou ver de seu pai ‒ avisou a mulher, ao ver Zanile voltar para a cabana. ‒ Você fica bem?
‒ Sim. O rio não vai a lado algum, não é mesmo?
‒ Isso, ele vai estar esperando por você.
Antes de se afastar, Aexleil puxou a filha para um último abraço. As energias que emanavam do corpo da mais velha tinham o poder de acalmar qualquer um.
Guiado pelas sombras, Virsari saiu de sua posição recuada e avançou até ao único corpo parado diante da cabana. Com passos firmes, ele seguiu numa reta, sem colidir com a mulher que fazia o caminho contrário.
‒ Wazzirti.
Nileya, que se distraía mergulhando os dedos dos pés na terra, olhou para cima, já sabendo quem iria encontrar à sua frente.
Apenas Virsari a chamava por aquele nome. A jovem era considerada um espírito guerreiro ‒ wazzirti. A heterocromia não era uma condição rara no povo Bélu. Ao longo das várias gerações já se podiam contar quase cem casos, mas continuavam a representar a minoria. O sábio tinha uma explicação para o estranho fenómeno, onde em cada olho nascia uma cor singular, defendendo que alguns corpos poderiam abrigar duas almas ao mesmo tempo. Um espírito com duas vontades, com dois Destinos opostos. Por isso mesmo, apenas um corpo guerreiro poderia suportar com bravura aquela luta invisível e constante.
‒ Tem algo a remexer-te o espírito, mais do que o que é costume. ‒ Virsari levantou a mão direita na altura do peito da jovem, sem chegar a tocar-lhe. ‒ Eu consigo senti-lo. A batalha não está fácil.
‒ Eu não os consigo ver... Os caminhos. Estou no meio de um nevoeiro, Virsari.
‒ Posso? ‒ O homem subiu um pouco a mão, estacando na frente do queixo da moça.
Ela hesitou, consciente de que o sábio veria tudo. Killian estaria lá, como prova da sua traição. Porém, Nileya sempre se sentia confortável com Virsari. Havia um acordo tácito de confidencialidade. Os seus segredos estariam bem guardados com ele.
‒ Sim ‒ decidiu, preparando-se mentalmente para o que ele pudesse vir a dizer-lhe. Estava perdida e qualquer mínimo sinal poderia ajudá-la.
O homem baixo palpou-lhe o rosto, pousando a palma sobre os olhos da garota. Ele ganhava-a em cinco centímetros, mas essa diferença, por mais pequena que fosse, fazia sentido, já que ela era agarrada à terra e ele ao céu.
Os tremores com um wazzirti eram sempre mais pronunciados, estendendo-se para além do branco vítreo dos olhos. A carga energética espalhava-se pelo corpo de Virsari em mil relâmpagos descoordenados, cada um mirando um ângulo diferente. Estando de pé e a céu aberto, a tarefa só se tornava ainda mais complexa. Os estímulos do exterior eram sugados junto com a força que emanava da jovem. A estabilidade ficava comprometida com a conspiração da gravidade contra aquele homem que deixava o corpo para trás, viajando para planos intangíveis por humanos limitados.
Quando ele regressou àquele plano, o corpo descaiu para a frente e Nileya agarrou-o com força, evitando que ambos colidissem com o solo.
‒ O que você viu? ‒ questionou curiosa, depois de se assegurar que o homem estava bem e consciente.
‒ Não deve sentir-se culpada. Os vossos caminhos cruzaram-se não por mero acaso. ‒ A nativa ruboresceu levemente. Já não havia dúvidas de que Killian era agora conhecimento de Virsari também. ‒ Sua luta é demasiado importante para que os Deuses a deixem entregue à sorte. Eu já tinha pressentindo, mas, agora, ficou claro. Suas escolhas podem fazer a diferença, Wazzirti. Não está nas nossas mãos, está nas suas.
A última frase ficou ecoando nela, tal qual uma miragem sem sentido. A moça poderia estar preparada para o poder que assumiria no futuro, como líder da tribo, mas não sabia se queria algo tão determinante assim nas suas costas. Poderiam chamar-lhe de individualista, porém, ela se sentia uma mera jovem procurando por seu lugar no mundo. O que ela era e em que se tornaria, duas simples questões sempre sem resposta.
‒ Ele... ‒ Nileya fez uma pausa para perceber se o sábio seguia seu raciocínio. Virsari fez sinal com a mão para que ela continuasse. ‒ É para eu ficar longe dele? Meu pai disse que eles são perigosos.
‒ Se é nisso que você acredita... Você o acha perigoso? ‒ Ela negou com a cabeça. O homem não viu a resposta, mas não precisava. ‒ Seus caminhos são mais do que esse rapaz, mas ele aparece sempre lá. Quer você queira, quer não. Mas lembre-se: no fim, você pode sempre escolher. É uma Wazzirti, a liberdade floresce dentro de você.
‒ Quando será esse "fim"?
‒ Ah! A imprevisibilidade da vida! Quando os momentos chave surgem, nós percebemos que é aquilo, que a hora chegou. Antes disso, quem pode saber?
Parecia-lhe justo e adequado, já que ela gostava dessa sensação livre de não saber onde botar o pé a seguir. A curiosidade de saber todas as respostas estava lá, mas Nileya não almejava obtê-las de bandeja. A jovem ficava satisfeita que até Virsari, o sábio do povo Bélu, não tinha conhecimento de tudo. Isso significava que os limites da vida estavam tão longínquos, tão inacessíveis, que talvez nem sequer existissem.
Ah! A doce imprevisibilidade da vida!
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