Capítulo 16 - Nuvem negra
A talha de argila pesava nas costas de Nilespri, mas não mais do que sua aflição para chegar ao acampamento Bélu. A corda roçava na pele, bem abaixo do peito, com o sacolejar do corpo apressado. Ele sentia o som da água a balançar perigosamente perto do topo da vasilha. Mas continuava naquele ritmo invulgar para a tarefa. Em manobras mais precipitadas, na tentativa de evitar as raízes traiçoeiras que se intrincavam sobre o solo, algumas gotas vertiam. Quando lhe tocavam, frias, na pele das costas ou escorregavam pelas canelas ardentes do esforço, ele agradecia, em silêncio, pela bênção.
Outros cinco homens tentavam sincronizar seus movimentos à velocidade dele. Mantinham-se sempre na retaguarda, não obstante o esforço. De todos, o filho mais velho de Zanile era o mais alto, com pernas longas bem torneadas, mas nenhum se poderia considerar despreparado para a tarefa. Aquele era o grupo seleto para a recolha de água no rio. Se destacavam do resto do povo pelo corpo mais alongado e músculos mais resistentes.
O crepitar constante enchia o ar à passassem dos homens. As folhas secas no solo anunciavam o dilúvio que se arrastava pela floresta. Eles eram os portadores de boas novas, só que o que haviam descoberto não parecia ser exatamente positivo. As feições do grupo mostravam as marcas do desgaste físico imposto, mas nelas se sobrepunha uma preocupação sem nome. E essas eram sempre das piores, aquelas de que sabemos tão pouco e, ainda assim, nos assolam a alma.
As sombras dos braços da Natureza caiam sobre as criaturas que corriam abaixo das árvores. No céu de tantos tons, o sol entregava-se à cruel indecisão de ficar para ver o desenrolar de uma possível tragédia ou de fugir para escapar incólume às ações imprudentes dos humanos.
O historial da espécie sempre jogaria contra eles. Os instintos não se apagam, apenas se controlam. Restava saber se daquela vez seria diferente, ou se os Bélu manteriam sua posição irrepreensível perante a vida.
Nilespri tomou consciência de seu estado afoito ao vislumbrar as cabanas por entre os ramos que se fechavam à sua frente. Ele cessou seus movimentos e o som de seu coração descompassado foi diminuindo, dando espaço às risadas das crianças, que saltitavam de um lado para o outro, por entre os adultos que aproveitavam o pôr do sol. Aquela era a constatação de uma inocência que ele não estava ainda pronto para abalar.
‒ Rapazes ‒ chamou Nilespri, voltando-se para trás. Econile logo percebeu a intenção do irmão e estacou. Os outros quatro seguiram-lhe o exemplo. ‒ Vamos tentar ser discretos. Não há necessidade de criar alarme. Pelo menos, não antes de falar com o pai ‒ acrescentou, de olhos fixos no outro único descendente Nile do grupo.
Econile assentiu e tomou a frente. Sua prudência e bom-senso seriam de grande uso naquele instante. Ele iria saber controlar melhor suas emoções. Teria de ser o primeiro rosto a saudar o povo, como um escudo humano.
‒ Dangralum*! ‒ gritou uma mulher ao ver o grupo do rio chegar. Suas mãos foram estendidas para o céu em agradecimento pela água contida nas talhas.
As mulheres e homens, que se encontravam por perto, imitaram-lhe os gestos. Econile susteve o sorriso contido, transmitindo-lhes a imagem que procuravam, enquanto o irmão, oculto atrás dos companheiros, se deixava alimentar pelos receios e crenças que habitavam seu pensamento.
Como já era hábito, os observadores rapidamente se aproximaram dos recém-chegados, se prontificando a ajudá-los com as vasilhas. Enquanto um desamarrava a corda, outros três suportavam o objeto pesado, evitando a queda desastrosa.
Nilespri bufou ao perceber que era Aexleil quem ficaria encarregue de sua corda. O que o fazia remexer-se não era a falta de afeição, mas antes o exato motivo contrário.
A atenciosa mulher desprendia o nó, envolta do tronco, com os dedos dedicados, sentindo a tensão das fibras. Porém, com os olhos de âmbar, perscrutava o rosto sorumbático do filho mais velho do líder.
‒ Aconteceu alguma coisa? ‒ ela sussurrou.
‒ Meu pai, onde está? ‒ Nilespri encarou-a seriamente. Ele sabia que não conseguiria disfarçar perante aquela mulher, não havia razão para o tentar. A sua astúcia se equiparava à da filha e, ainda que não se tratasse da mãe biológica do rapaz, ela sempre mostrara conhecê-lo como se fosse. ‒ É urgente.
Os dois homens, que seguravam nas alças fundidas ao bojo da talha, deixaram suas mãos serem abaladas pelo que acabavam de escutar. As palavras não se alastraram mais do que isso. O terceiro, na sua posição mais afastada, suportando a base do objeto, se mantinha mergulhado na absoluta ignorância.
‒ Ele está reunido com Virsari ‒ comunicou Aexleil, mantendo o tom de segredo.
O que Aexleil dizia não era mistério algum, contudo, ela já se moldava ao peso da informação que estava por vir. As notícias ruins não eram recorrentes, e, por isso mesmo, ela via na expressão do rapaz a gravidade do caso. Pri nunca fora de se alarmar por tempestades, secas ou campos inférteis. Nem mesmo pela demora da irmã em trazer um novo Nile ao mundo, ainda que isso afetasse diretamente o futuro dele.
‒ Ninguém nos pode interromper.
‒ Você pode deixar comigo.
O recipiente de argila foi, por fim, retirado e levado pelos três homens, que respeitariam o voto de silêncio, sem que este tivesse de ter sido exigido.
‒ Econile. Harmil. ‒ A voz de Nilespri transbordou de segurança e Aexleil conseguiu ver um líder à frente dela. Era emocionante constatar que ele detinha tanto de seu pai na alma. ‒ Venham comigo. Temos um assunto a resolver.
Seria estranho todo o grupo do rio se dirigir à cabana de Zanile, mas outros dois pares de olhos poderiam dar jeito. Pri não hesitou na escolha óbvia daqueles dois elementos, que sempre constituíram um apoio para ele. Harmil não compartilhando do sangue Nile, era, ainda assim, como um irmão para os dois.
Aexleil ficou para trás, cruzando os braços ao peito numa reza murmurada ao Deus do Destino. A prece fora rápida, mas muito clara. Ela só pedia para que seu povo continuasse forte e unido perante a adversidade invisível que enfrentavam.
* Representa um louvor aos Deuses: "Louvados sejam os Deuses"
A cabana de Zanile situava-se no centro do acampamento. A acessibilidade era uma mensagem importante na liderança Nile. Apenas um pouco maior do que as que a cercavam, não seria fácil para um forasteiro perceber a diferença. Parecia só mais uma. Na verdade, era a cabana Comum, no extremo Norte daquela vasta área que lhes oferecia residência, a única que se destacava, conseguindo abrigar todo o povo, em caso de emergência.
Nilespri afastou os fiapos secos que caíam do topo da entrada, camuflando-a, mas nunca restringindo a passagem. Ele adentrou no espaço familiar, sem hesitação. Não havia assuntos que se considerassem confidenciais, a não ser naquele momento, claro, em que o próprio fizera questão de assumir como uma exceção. Todas as regras sempre têm uma.
As acomodações do líder eram tão simples como as de qualquer elemento da tribo. Para além da cama e do baú das vestes, algumas caixas se perfilavam no canto esquerdo do quarto. O passado mergulhava lá dentro, sem ninguém ter muito interesse nele. Respeitavam e guardavam os tesouros de seus antepassados, porém, não faziam questão de os resgatar para o presente.
No centro vazio, Zanile e Virsari, numa posição frente-a-frente, apoiados nas próprias pernas, com os joelhos dobrados, mantinham-se numa troca de ideias amistosa. O líder tinha em grande conta os conselhos do mais velho homem da tribo. Todos partilhavam essa visão e era inegável o papel de sábio que lhe atribuíam.
‒ Pai, trazemos novidades ‒ comunicou Nilespri, aproximando-se dos dois homens. Zanile levantou-se serenamente, uma perna depois da outra, e encarou o filho, esperando para que ele desenvolvesse o assunto. ‒ Nós vimos algo no rio.
‒ Do que se trata? ‒ O líder alternou o olhar entre os três jovens, tentando ver se identificava na expressão de algum a resposta.
‒ Alguns seres... ‒ Econile interveio perante o silêncio do irmão. Ele mostrava-se cauteloso na escolha das palavras. ‒ Eles estão construindo residência do outro lado do rio.
‒ Se é do outro lado do rio, não nos afeta. Não é nosso problema.
‒ Mas eles estão colados à margem. ‒ Nilespri falava com as mãos. ‒ Isto nunca aconteceu antes. O que os impedirá de tentarem passar o limite? ‒ A emoção já transbordava. Ele faria qualquer coisa para proteger os seus. ‒ As terras deste lado são mais férteis do que as das terras Sombrias. Eles podem perceber isso.
‒ Mas também podem não perceber.
A voz estável do pai contrastava claramente com a do seu filho mais velho. Era aquele o ponto que mais os diferenciava. Pri poderia mostrar uma segurança admirável em 90% dos casos, porém, havia aquela pequena margem em que ele se deixava abafar pelas emoções. Catástrofes naturais, ele poderia entender e tentar arranjar soluções para contornar seus efeitos, mas ninguém consegue decidir ou fazer algo se não souber com o que está lidando. Nilespri acabava de descobrir seu calcanhar de Aquiles. Ele simplesmente não sabia lidar com a imprevisibilidade, ao contrário de Nileya, que sempre procurava por ela. Um traço bem comum entre o povo. Ele era apenas mais um. Poucos eram aqueles que se adaptavam facilmente ao inesperado
‒ Tem outra coisa. ‒ Econile sabia estar prestes a lançar uma bomba, mas se havia alguém capaz de trazer frieza para um assunto tão delicado como aquele, esse alguém era, sem dúvida, ele. ‒ Eles pareciam humanos.
O líder abriu a boca para tecer algum comentário, mas logo se arrependeu. A impulsividade não o beneficiaria naquele caso. Claro que Zanile tinha as suas suspeitas de quem eles eram, mas guardá-las-ia para si, por enquanto.
‒ Sentem-se aqui, rapazes ‒ pediu Virsari, palpando o chão à sua frente. ‒ Deixem-me ver isso.
Nilespri, Harmil e Econile posicionaram-se ao lado uns dos outros, com as pernas cruzadas. Os ombros raspavam numa tendência ligeiramente decrescente, com o mais baixo por último.
O sábio endireitou as costas curvadas para estar alinhado com os jovens. A imensidão do branco no seu olhar sempre fazia os outros se arrepiarem com a profundidade que transmitiam. Eles não duvidavam que aquelas duas enormes esferas, no rosto rugoso, enxergavam mais além.
Virsari estendeu as duas mãos e procurou pelas feições das duas primeiras vítimas. Os nervos salientavam-se entre os finos ossos, com a pele pálida a conseguir ocultar muito pouco. Ao sentir os dois narizes, ele rapidamente se orientou e posicionou o interior das palmas nos dois pares de olhos abertos. Nilespri e Harmil ficaram imóveis, sabendo que teriam de suster as pálpebras para que o dom do mais velho se pudesse manifestar.
As películas brancas que envolviam os olhos do mais velho tremelicaram. Ainda que na ausência de iris e pupilas, Econile e Zanile poderiam jurar ter visto as esferas revirarem, uma e outra vez, num movimento incessante. Não era algo incomum, ocorria sempre que Virsari esforçava suas capacidades ao limite. Ele parecia perdido num transe. O corpo estava entre eles, mas o espírito viajava até à margem do rio.
A cabeça de Virsari caiu para a frente, num suspiro profundo. O homem recolheu os braços, voltando a estar sob total controle do próprio corpo.
‒ Eles são humanos, mas não são como nós ‒ proferiu o sábio, enfrentando a ansiedade dos observadores de frente. Seus olhos fixavam-se num ponto vazio. ‒ Vejo sangue no trilho de suas pegadas. Eles trazem uma missão que arrasta uma nuvem negra sobre esta floresta.
‒ Temos de os parar ‒ decidiu Nilespri, indignado com o que ouvia. Suas feições contorciam-se de desprezo ao ver-lhes os rostos sombrios. As memórias recentes transformavam-se. Naquele momento, ele só os conseguia relembrar como bestas sugadoras de sangue. ‒ Se os matarmos, eles não poderão fazer mal a mais nenhum ser.
‒ Os Deuses ficarão do nosso lado ‒ concordou Harmil, já preparado para batalhar ao lado do amigo. ‒ E eles não pareciam ser muitos. Estaremos em vantagem.
‒ Não é assim que agimos. ‒ Zanile mantinha-se impávido. As novidades haviam chocado a todos os presentes, porém, o líder não se deixava arrastar pelos impulsos humanos que lhe ferviam sob a pele. ‒ Não é esse o costume do nosso povo.
‒ Mas se não fizermos nada...
‒ Virsari ‒ Econile interrompeu o irmão. Ele tentava agarrar-se ao pragmatismo, enquanto o outro se afogava nas emoções. ‒ O Destino está a nosso favor?
O velho homem estendeu a mão esquerda e tapou os olhos da única testemunha que faltava. Quantas mais perspetivas ele recolhia, mais precisas se tornavam suas visões. Os detalhes tornavam-se mais vincados, ainda que não passassem de grossas linhas disformes. Em outros tempos, aquele homem teria sido designado de profeta. Não segundo as crenças daquele povo, que preferiam vê-lo como um indivíduo com dons de clarividência. Apenas mais uma mutação, no meio de tantas.
O corpo de Virsari foi lançado para a frente, quase fazendo-o colidir com a dura cabeça de Harmil.
‒ Não importa que sejam poucos, o poder deles é grande ‒ anunciou. ‒ Nas mãos carregam armas mais velozes e destruidoras que relâmpagos. Os corações se consomem pelo poder e se incendeiam com a raiva. Eles consomem tudo pelo caminho.
‒ Eles vão chegar a nós, Virsari? ‒ O líder quis saber. As palavras devastadoras do sábio repercutiam com força em todos os presentes.
‒ Tudo está nas nossas mãos, por enquanto.
‒ Então, não iremos procurar por um Destino que nos poderá levar para a ruína.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top