𝗖𝗮𝗽𝗶́𝘁𝘂𝗹𝗼 𝗜𝗩 - 𝖴𝗆 𝗇𝗈𝗏𝗈 𝖼𝗈𝗆𝖾𝖼̧𝗈.
O violino produzia uma música hipnotizante. Ele parecia o único a soar pelo bosque.
O sol brilhava alto no céu, e, de tempos em tempos, a sombras dos pássaros passavam pela rala grama no chão.
Eveline, na borda da clareira, observava uma jovem mulher tocar. Os cabelos dela iam até a cintura, numa mescla de platina na raiz e castanho claro nas pontas. Seus olhos estavam fechados. Um sorriso reluzia em sua boca.
Eveline estava congelada com as sensações encantadoras da música. Ela sentia seus pelinhos se eriçarem, e um misto de sensações tomaram seu estômago.
Os olhos da bela mulher se abriram, olhos verdes-acinzentados. A moça encarou Eveline e deu um sorriso, que ela tanto conhecia, brilhante.
Eveline sentiu a música se entrelaçar com algo dentro de si, numa maneira tão firme que, sabia, mesmo se ela parasse de tocar, jamais se separariam. As melodias continuariam soando como num eco eterno de uma orquestra.
— Leander?
Sua voz era tão gentil, tão afinada ao dizer o nome, mesmo num tom singelo.
Mas onde estava o Leander que ela chamava?
Ao sorrir para ela, um rugido distorcido e conflitante ressoou:
— Eveline Spring!
Num arregalar de olhos contra a claridade do ambiente, Eveline acordou, percebendo que estava em sua cama, ainda de camisola.
Sua mãe, uma alma penada, de vestido branco gelo com flores brancas-casca-de-ovo, estava ao lado da cama. Ela segurava o cobertor de Eveline, como se estivesse pronta para dar o bote.
— Novamente! Já é a quarta vez, nessa semana, que você perde o horário! — Helga jogou a coberta no chão, com os olhos faiscando. — São quase meio-dia!
Eveline tentava assimilar tudo o que sua mãe dizia, mas além de não estar captando as palavras, sentia como se sua mãe falasse outro idioma.
— EVELINE! Você não entende? Vive se atrasando, a vida não anda de acordo com o que você quer, querida, o dia começa às cinco da manhã!
Ela bocejou limpando os olhos. Só então voltou a encarar sua mãe que estava um tanto vermelha.
— Tive um dia... — Seu bocejo foi ruidoso — cansativo ontem.
— É sempre assim, ou porque você trabalhou "cansativamente", ou porque não dormiu bem... Pare de arrumar desculpa, Eveline! — Seus gritos rebatiam nas paredes com tanto volume que a deixava com os ouvidos zunindo.
— Eu passei o dia inteiro cuidando da mercearia, mãe...
— Uma ova, Tommy é muito frouxo, ele deve tê-la deixado no parque e passado o dia todo naquela venda escaldante! — ela bufou olhando ao redor.
Por um momento se fez um silêncio no quarto, cujo Helga usou exclusivamente para olhar cada pedacinho do cômodo.
— Mas que bagunça...
Eveline, ouvindo o resmungo entredentes da mãe, colocou os pés no chão ficando sentada na cama, preparando-se para levantar-se.
Helga avistou o alvo. O violino.
— Eveline, você está, determinantemente, proibida de tocar!
Dando-se por acordada, a garota pulou da cama, escondendo o violino, ainda no chão, atrás de si.
— Jamais, ele é minha vida, mãe!
— Sua vida não é um pedaço de árvore, Eveline! — A voz dela falhava por causa da raiva — Sua vida se quer começou ainda, vive fazendo barulho... E não procura um homem para sustentá-la, você é muito imatura!
— Homem, mãe? — Olhou-a indignada — Você quer que eu me preocupe com homem, quando estou tentando desenvolver minha arte?
— Você chama esse barulho de arte, está mais para imitação de um cachorro morrendo!
Os olhos de Eveline arderam. Foi como um soco no estômago. Sua própria mãe odiava vê-la tocando, isso não era novidade, mas dizer algo tão repudiante de sua música era uma ofensa, que jamais imaginaria sair da boca de sua mãe.
Ela pigarreou.
— Eu passo a vida cuidando de você, para no final você desperdiçar seu tempo livre!
— Eu...! — Sua voz saiu reprimida pelo choro — E-eu não desperdiço meu te-tempo... — ela soluçou.
Helga já a viu chorar, várias vezes, na verdade. Mas pela primeira vez algo a deslocou.
— Desperdiça todo o cuidado que tive!
— Que cuidado, mãe?! Que cuidado é esse que você só dá ordens e regras a serem seguidas? — As lágrimas começaram a escorrer e tudo que Eveline via era borrões e formas deformadas.
— Você não sabe o que é cuidado!
— Não sei? — Ela riu ironicamente — Não devo saber mesmo já que ninguém nunca cuidou de mim.
— O que?!
— É, mamãe, você nunca cuidou verdadeiramente de mim! — Ela sentia sua garganta queimar.
— Eu não... — Helga calou-se ao franzir o cenho indignada — Eu não cuidei de você? — Ela fuzilou Eveline com o olhar. — Pois bem, você tem trinta minutos para pegar esses seus lixos e sair da minha casa!
Novamente observou ao redor e virou de costas. Seu silêncio, ao caminhar até a porta, deixou Eveline angustiada. Antes de sair resmungou algo baixo:
— Nunca mais — ela pausou, para bufar — Nunca mais fale assim comigo!
A porta foi batida.
Eveline se arrependeu brevemente ao perceber que sua mãe havia se desestabilizado.
Seus olhos se concentraram num ponto fixo no outro lado do quarto.
Ainda ouvia os gritos ecoando por sua cabeça.
...Um cachorro morrendo.
Ela piscou com força para desembaçar os olhos, e correu para seu armário pegando algumas roupas que ela sabia que faria falta caso não levasse.
Eveline estava cansada de ouvir muitos desaforos de sua mãe e ficar quieta. Naquele dia, ela não conseguiu manter a cabeça baixa, e mesmo se arrependendo de ter tocado na ferida da mãe, ela não se arrependera de ser expulsa. Não morar com Helga, provavelmente, seria um sonho...
Ela terminou de amarrar seu vestido ao corpo, fechou sua mala, pôs a bolsa do violino no ombro, por fim, saiu do quarto sem olhar para trás, pois sabia que, o que quer que visse, com certo azar, a faria tentar ficar.
— Aonde você...
A voz de Helga soou tão comum, mas, também, surpresa. Eveline a olhou de relance apenas.
Sem despedidas, ou se quer conversas, Eveline partiu para a aldeia, sabendo que seu refúgio seria Thomas, cujo sempre fora como um esconderijo.
♫
A garota chegou um tanto tarde na aldeia. Como sempre, todos que passaram por Eveline não deixaram de sorrir a cumprimentando, ignorando o fato de ela carregar uma mala.
Todavia, Dona Rose, nunca deixou de falar o que vinha na cabeça, e não tardou em sorrir para Eveline, ao sair da mercearia.
— Minha jovem Eveline, vejo que veio com uma grande mala para cá! — Ela sorria largamente — Suponho que encontrou um homem com qual vai se casar! Não gosto da ideia de vocês dividirem a casa antes do casamento, mas morando com Helga, com certeza você prefere à aldeia...
Eveline sentiu um desconforto ao ouvir Rose falar mal de sua mãe. Sem contar que a suposição de ela estar indo morar com um homem... Não que Thomas não fosse, mas era como ir morar com seu padrasto... Ou o próprio pai.
Ela não conseguiu retribuir o sorriso.
— Não estou em um bom dia... — Seus olhos miraram a porta de vidro — Vou entrar agora, senhora, nos vemos mais tarde.
Antes de Dona Rose protestar, Eveline entrou fechando as portas do estabelecimento atrás de si.
Thomas estava contando algumas moedas, quando notou que alguém havia entrado. Ele abrira um sorriso antes de olhar para as malas e arregalar os olhos.
— Eve! — Seu cenho franziu — Essa mala...
— Chamou muita atenção! — Ela exclamou cansada — Tom, perdoe-me chegar assim sem aviso, mas eu só pensei em você...
— Minha princesa, você sabe que jamais precisa ficar enrolando — Ele saiu de trás do balcão para abraçá-la, seu breve silêncio foi aproveitado para os pensamentos extravasarem — Helga te expulsou, ou você fugiu?
Depois de suspirar longamente, Eveline contou tudo o que aconteceu. Seu comportamento cabisbaixo fez Thomas fechar a mercearia mais cedo para ajudá-la a se instalar no quartinho, minúsculo, no fundo da casa.
Ela sabia que não haveria muito o que fazer a respeito de seu conforto, sua nova cama era velha e o colchão bem fino. Eveline teve que insistir muito que estava feliz, para Thomas não a fazer ficar em seu quarto em vez daquele minúsculo cômodo. Ela não tirou as roupas da mala, pois não havia armário, mas, acima de tudo, uma serenidade se fazia presente em seu coração.
Então sem saber exatamente como agir, agradeceu e abraçou Thomas.
— Não se preocupe em esperar por mim para sair, pode fazer isso sozinha, só peço para que não volte muito tarde, de noite, os bêbados saem das tavernas e hospedarias, eles podem mexer com você. — Ele a olhava atenciosamente — Os dias que não consigo cozinhar eu como fora, então fique à vontade para fazer algo para comer ou ir ao Leão Rubro, semana que vem eu te dou o salário do mês.
Seu rosto enrubesceu.
— Muito obrigada, Tom, vou me dedicar mais a mercearia agora, quem sabe torná-la, mais aconchegante — Ela tentou sorrir, mas algo ainda faltava.
Talvez saber que não teria mais restrições, como sempre teve, a deixasse receosa. Saber que sua mãe não brigaria mais com ela era novidade e ainda por cima, receberia um salário.
Tantas mudanças, mas tantas coisas que a deixavam preocupada.
— Certeza que não irei atrapalhar?
— Eve, você é quase minha filha, no que atrapalharia?! — Seu sorriso foi gentil, mas seus olhos miraram o relógio na parede. — Hum... tenho que ir agora, marquei de rever os preços do arroz que vendo para Senhora Cora, vamos nos encontrar no Leão Rubro, então caso precise de algo...
— Eu vou até lá, fique tranquilo! — Depois de horas ela finalmente dera um sorriso verdadeiro.
Thomas pegou o casaco, e Eveline seu violino. Ambos desceram para a mercearia e quando saíram, o mais velho deixou um beijo na cabeça de Eveline pedindo que se cuidasse.
Meio atordoada com o dia. Ela se sentou num banco, na praça, que era virado para a fonte e começou a tocar seu instrumento, como sempre fazia na clareira. Desta vez as melodias complexas não circulavam Eveline, afinal meros aldeões estavam lá, e não seus amigos secretos.
Aproveitando o som do violino, ela se desligou do mundo, e focou apenas na música. Sua sensibilidade varria a praça.
Algumas pessoas que passavam estavam alheias a música, fazendo com que suas melodias não se encaixassem com a de Eveline, isso por ela não querer ser os centros das atenções, naquele momento. Até Armand passou como se ela estivesse invisível.
Entretanto, uma melodia soou claramente. Eveline olhou ao redor, procurando quem era o único admirador da música. Ela sentiu as notas se entrelaçarem como duas cordas de aço, inquebráveis.
Ao olhar além da fonte ornamentada, Eveline, sentiu algo preencher seu corpo, como um calor aconchegante. Seus olhos haviam encontrado os de Leander.
— Procurei você em todos os lugares, hoje cedo.
Eveline parou de tocar tirando o violino do ombro.
— Por que continua me seguindo, seu maluco?! — Ela se virou para voltar a mercearia.
— Pois só você pode me ajudar, Eveline!
Ele agarrou seu pulso. Eveline se assustou quase derrubando o violino no chão. Ele estava do outro lado da fonte a poucos segundos.
— Pelo amor, Eveline!
— Pelo amor digo eu, me esquece!
Seuspés avançaram e ela se soltou dele, seguindo seu caminho.
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