2. capítulo vinte e um

ㅤㅤㅤCaminhava pelas ruas vazias da madrugada, cambaleando pela calçada molhada, tragando profundamente seu cigarro. A fumaça se misturava com as palavras ditas com a convicção de que alguém estava ao seu lado. Exagerou demais naquela noite, teve consciência disso quando percebeu que as memórias se mesclando com a realidade.

ㅤㅤㅤEm um momento estava cercada por desconhecidos no meio de algum clube noturno duvidoso, onde a música pulsava por seu corpo, alta o suficiente para abafar seus pensamentos. As luzes coloridas piscavam, deixando sua vista confusa, fazendo com que todos se mexessem em câmera lenta. Ao virar a cabeça, encontrava-se sozinha no galpão imenso, sendo consumida pelo silêncio profundo, dando a impressão de que os ouvidos estavam abafados pela pressão.

ㅤㅤㅤEntão, a música voltava com o menor movimento, e tudo tornava a se repetir fazendo-a se perguntar se a faca realmente estava em sua mão. Mas, não importava o que estava, Alice sentia a presença dele por todos os lugares. Adam era como uma das Pessoas de Sombra que acompanhavam constantemente, um pesadelo que tentava enterrar, mas, ao tentar fazer isso, só conseguia trazê-lo mais a superfície.

ㅤㅤㅤSe apoiou em um poste, tentando recuperar o equilíbrio e riu daquela situação deplorável por não saber mais o que fazer; Logo após Adam deixar seu apartamento, Alice telefonou para Lucas e quando ele perguntou se algo estava errado, ela permaneceu em silêncio na linha até conseguir anunciar que precisava ir embora.

ㅤㅤㅤ"Para onde?", Lucas perguntou.

ㅤㅤㅤAlice não respondeu.

ㅤㅤㅤ— Socorro — alguém gemeu a alguns metros de distância.

ㅤㅤㅤO sorriso largo que Alice exibia congelou e morreu gradualmente, enquanto olhava ao redor, procurando sinais de que ela não foi a única a ouvir aquilo - apenas para perceber novamente que estava sozinha. O álcool deveria abafar aquelas alucinações ou entorpece-la o suficiente para que ignorasse, mas quando o lamento ecoou novamente, soava mais real.

ㅤㅤㅤEla deu alguns passos cambaleantes e se apoiou na parede, diante de um beco escuro.

ㅤㅤㅤ— Olá? — Ela chamou.

ㅤㅤㅤ— Me ajude... — A voz soou lá do fundo.

ㅤㅤㅤTotalmente movida pela curiosidade e alheia ao senso de perigo, Alice deu alguns passos adiante sem pensar em consequências enquanto tateava os bolsos em busca de uma luz. No primeiro momento, não viu nada além das sombras que se formavam pela chama do isqueiro, mas o ruído de uma respiração fraca era constante.

ㅤㅤㅤEla continuou andando, chegando a pensar que nunca encontraria o fim daquele lugar, mas logo seus olhos se acostumaram com a iluminação precária e ela viu quem a chamava. Um homem estava caído no chão imundo, coberto por sujeira e roupas que mais pareciam trapos, a pele reluzia com o suor frio e o sangue escorria por sua boca.

ㅤㅤㅤEle estendeu a mão trêmula em sua direção.

ㅤㅤㅤ— Por favor, garota — implorou ele.

ㅤㅤㅤAlice se agachou ao lado do homem, aproximando o isqueiro da poça de sangue que o cercava e os olhos se arregalaram ao perceber que uma das mãos tentava segurar os próprios intestinos, que escorriam para fora como cobras, por um corte profundo em sua barriga. Os dedos apertavam as entranhas, mantendo-as em um lugar que elas já não estavam mais.

ㅤㅤㅤ— Por que está tão assustada? — Ele perguntou. — Você já fez coisa pior.

ㅤㅤㅤ— O quê?!

ㅤㅤㅤ— Eu sei quem você é, Alice... E sei sobre todos os litros de sangue inocente derramados — ele continuou com o sorriso se alargando.

ㅤㅤㅤ— Cala boca! Alguém pode ouvir! — Alice exclamou nervosa e olhou por cima do ombro, vendo as figuras de sombra se fechando em torno deles. — Do que diabos você está falando?

ㅤㅤㅤ— Todos nós sabemos quem você é. Alice Taylor, louca e assassina. — ele deu uma risada descontrolada e Alice sentiu o impulso de acompanhá-lo até que lágrimas escorressem por seus olhos.

ㅤㅤㅤ— Me ajuda... — Ele implorou, sua voz voltando aquele tom mórbido e fraco.

ㅤㅤㅤO choque retornou ao rosto de Alice e ela olhou ao redor, até encontrar uma pedra grande no chão. Segurou-a entre as mãos, sentindo seu peso e, sem hesitação alguma, arremessou contra o rosto do homem repetidamente, movida por uma súbita carga de adrenalina. O som grotesco e úmido dos ossos sendo esmagados preenchia sua audição, mas ela não parou até sua cabeça não passasse de uma massa gosmenta.

ㅤㅤㅤSem olhar para trás, ela correu até sentir suas pernas queimarem e seus músculos protestarem a cada passo. O coração martelava forte contra o peito, ecoando abafado em seus ouvidos como se conseguisse silenciar as vozes que a perseguiam, e a respiração se tornava difícil.

ㅤㅤㅤQuando finalmente suas pernas cederam, Alice desabou sobre o cimento da calçada e percebeu que já não fazia mais ideia de onde estava. Olhando ao redor, percebeu que as ruas distorcidas estavam do avesso, como se ela tivesse atravessado o espelho em algum momento.

ㅤㅤㅤIgnorando os joelhos sangrentos, pegou o celular com as mãos trêmulas e tentou manter o foco. As letras dançavam diante dela e o nome dos contatos se embaralhavam na tela de uma forma que ela não conseguia entender, mas pareciam tentar passar uma mensagem para ela. No fundo sabia que ninguém conseguiria entendê-la naquele momento, e apenas ele entenderia o sangue em suas mãos.

ㅤㅤㅤ— Eu preciso...

ㅤㅤㅤLucas...

ㅤㅤㅤO telefone chamou, chamou e chamou.

ㅤㅤㅤA mensagem em sua caixa postal foi o silêncio.

ㅤㅤㅤEle nunca entenderia.

ㅤㅤㅤAmy...

ㅤㅤㅤChamou, chamou, chamou... Até que a voz fininha atendeu.

ㅤㅤㅤ— Alice?

ㅤㅤㅤEla nunca entenderia.

ㅤㅤㅤ— Amy... — Alice pronunciou seu nome com a voz embargada— Nós ainda somos amigas, certo?

ㅤㅤㅤ— Você está bebendo? — A garota indagou com desconfiança.

ㅤㅤㅤ— Eu preciso que você me faça um favor.

ㅤㅤㅤ— O que tá acontecendo? — A preocupação no tom de Amy se tornou mais evidente. — Você tá bem?

ㅤㅤㅤ— Diz pro Adam que eu me meti em confusão.

ㅤㅤㅤ— Do que você tá falando, Al? — Perguntou confusa. — Quem é Adam?

ㅤㅤㅤ— Eu me meti em confusão — repetiu como se aquelas palavras fizessem algum sentido real para a outra.

ㅤㅤㅤ— Onde você tá? Amy indagou com urgência. — Eu tô, er... acompanhada... — A vergonha era audível. — Podemos ir buscar você.

ㅤㅤㅤ— Eu não sei — Alice respondeu com um sussurro. — Amy, por favor, não confie nele.

ㅤㅤㅤUm silêncio pairou na ligação.

ㅤㅤㅤ— Onde você está? — A voz de Adam soou suave do outro lado da linha, carregada de uma preocupação que os mais velhos possuem, mas algo no seu tom era uma ameaça camuflada.

ㅤㅤㅤAlice deixou o celular escorregar de suas mãos com o inesperado, o som seco do aparelho caindo contra o chão era como um tiro. A linha ainda estava aberta, a voz estática de Amy soava longe, mas ela não teve coragem de pegar o aparelho novamente. Engatinhou até um banco de cimento, encostando a cabeça em seu assento e permitindo fechar os olhos.

ㅤㅤㅤA imagem do rosto daquele homem estava gravada em suas retinas e os flashbacks daquele momento rastejavam por sua memória como as larvas dos insetos. A voz queria seu mal e te transformou em um animal, as vozes cantavam. Cada piscada a trazia de volta ao beco e sempre a cena parecia minimamente diferente, até o momento em que Alice sentiu a faca pesando em sua mão e a presença do diabo às suas costas. O homem louco clamou e a viúva gritou.

•••

ㅤㅤㅤAlice acordou no susto, sentando-se abruptamente na cama. A claridade do dia invadia o quarto pelas frestas da cortina, o suficiente para fazer os olhos de ressaca lacrimejarem. Piscou repetidamente e os esfregou, em uma tentativa de se livrar do incômodo.

ㅤㅤㅤOnde eu estou?, pensou sem sentir urgência ou medo.

ㅤㅤㅤComo eu cheguei até aqui?

ㅤㅤㅤOs lençóis onde estava enrolada eram confortáveis e macios demais para serem os seus, os bichinhos de pelúcia se acumulavam como montanhas ao seu lado e ela sentia um cheiro familiar de arco-íris. Antes que tivesse tempo para formular qualquer pensamento concreto, a porta do quarto se abriu de repente.

ㅤㅤㅤAmy entrou com um sorriso largo no rosto, distraída pela música que tocava tão alto em seus fones de ouvido que Alice conseguia escutá-la sem esforço. O corpo parecia leve, descontraído, se movimentando de acordo com os ritmos das batidas e, enquanto tirava os sapatos, ela até ousava cantar alguns trechos.

ㅤㅤㅤLargou a bolsa na cadeira próximo a janela entreaberta e parou de supetão ao perceber a brisa fria que entrava por ali, sendo que se lembrava de tê-la fechado na noite anterior. Amy deu de ombros e, balançando a cabeça de forma ritmada, fechou a janela e todo esse tempo Alice permaneceu em silêncio, observando-a. Poderia ter usado aquele momento de distração para sair de fininho, o problema é que não conseguia lembrar onde estavam suas roupas.

ㅤㅤㅤQuando Amélia finalmente se virou, encarando-a diretamente, um grito agudo cortou a atmosfera tranquila e Alice deu um sorrisinho amarelo sem saber como explicar a situação. Amélia arrancou os fones de ouvido e a respiração estava ofegante.

ㅤㅤㅤ— O que você está fazendo aqui? — Amy exclamou com um pânico evidente em sua voz.

ㅤㅤㅤ— Pra falar a verdade, eu não faço ideia. — Respondeu com a voz rouca.

ㅤㅤㅤIncrédula, Amy piscou atordoada, olhando ao redor para ver se algo mais estava fora do lugar e ela não havia percebido.

ㅤㅤㅤ— Como assim?! — Perguntou, indignada. — Como você entrou aqui?

ㅤㅤㅤAlice deu de ombros, sem conseguir respondê-la já que também buscava uma resposta para aquela pergunta. Quase instintivamente, Amy olhou para a janela e um lampejo de compreensão passou por seu rosto.

ㅤㅤㅤ— Você não pode fazer isso! — Amy gritou — Não pode simplesmente entrar na casa dos outros desse jeito, entrar como se fosse bem-vinda.

ㅤㅤㅤ— Tenho péssimas influências. — Alice respondeu com um toque de humor que a outra não poderia entender.

ㅤㅤㅤ— Isso não é brincadeira, droga! — Sua voz tremia e seu rosto estava vermelho como um fantasma de seus antigos cabelos. — E se tivesse alguém em casa? E se chamassem a polícia?

ㅤㅤㅤ— Onde tá todo mundo?

ㅤㅤㅤ— Papai está numa viagem de negócios e a Marta foi visitar os pais com os meninos. — Amélia respondeu em um tom mais calmo, depois balançou a cabeça como se estivesse perdendo o foco. — Por que você está aqui?

ㅤㅤㅤ— Não sei, Amys... — Respondeu com sinceridade, puxando os lençóis mais para perto. — Eu sai pra beber ontem e... As coisas saíram do controle, sabe? Até falei pra você... Não faria isso sóbria.

ㅤㅤㅤ— Não nos falamos. — Amy a encarou com uma expressão ainda mais confusa.

ㅤㅤㅤ— Claro que falamos. Te liguei, mas depois daquilo eu apaguei.

ㅤㅤㅤ— Alice, você não me ligou. — Sua voz uma hora insegura, soava firme. — Eu estava... Ocupada ontem a noite. — Hesitou por meio segundo. — Eu não falei contigo ontem.

ㅤㅤㅤAlice abriu a boca para falar algo, mas tornou a fechar e franziu a sobrancelha. A voz de Amy em suas lembranças soavam longe, mas eram reais aos seus ouvidos. Sentiu uma inquietação em seu peito ao perceber que aquilo foi apenas uma alucinação. A garota a observava com os olhos azuis falsos em silêncio, demonstrando uma preocupação que não conseguia esconder em suas feições.

ㅤㅤㅤ— Você está bem? — Amy indagou, sentando-se na beira da cama.

ㅤㅤㅤFoi um silêncio longo após aquilo, onde Alice analisou todas as coisas que poderia falar para ela naquele momento. A troca de olhares entre as duas era carregada com uma incerteza pesada e arrependimentos não falados em voz alta.

ㅤㅤㅤ— Eu preciso achar minhas roupas — Alice anunciou.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top