2. capítulo vinte e dois

ㅤㅤㅤO silêncio que pesava na cozinha já beirava um nível constrangedor, e as duas eram esmagadas por um desconforto trazido pelas Pessoas de Sombra que acompanhavam Alice.

ㅤㅤㅤAmy estava de costas para ela. Com as mãos apoiadas na bancada, os dedos apertavam as bordas de pedra do balcão e a cabeça estava baixa, fitando a torradeira diante de si. Alice estava sentada na cadeira com os joelhos contra o peito. Usava um blusão colorido que mais parecia um vestido e a caneca quente de achocolatado esquentava suas mãos, mas o calor não trazia conforto algum.

ㅤㅤㅤOs vultos ao redor se moviam de forma sutil, como se tivessem medo de serem olhados diretamente, mas carregavam o ar com suas respirações asmáticas. Alice se perguntava em que momento se distraiu o suficiente para que se acumulassem tantos ali, e tentava descobrir se Amy também conseguia senti-los, mas a garota continuava imóvel, alheia ao rosto que se apoiava em seus ombros

ㅤㅤㅤAnalisava atentamente os cabelos pintados de castanho, e percebeu que ainda era possível ver algumas mechas avermelhadas onde a tinta não ficou tempo suficiente. Como se falassem que a antiga Amy ainda estava ali em algum canto. O barulho alto da torradeira assustou ambas, tirando-as de seus devaneios pessoais. Balançando a cabeça, a garota que estava em pé pegou as torradas e as serviu em um prato. Amy hesitou por alguns segundos, antes de se virar e largar o prato na mesa.

ㅤㅤㅤ— Por que nos afastamos? — Alice perguntou com a voz rouca, e um pigarro preso na garganta.

ㅤㅤㅤA outra a encarou com os olhos escuros, livres das lentes de contato coloridas de azul, e comprimiu os lábios ao dar de ombros. A resposta pairava no ar como um eco da pergunta, causando um zumbido desconfortável em seus ouvidos.

ㅤㅤㅤ— Desculpa ter batido em você — Amélia disse, tão baixo que foi quase inaudível.

ㅤㅤㅤEla puxou a cadeira de madeira, fazendo um barulho alto soar ao arrastá-la pelo piso, e sentou-se à sua frente. Seus olhos se fixaram em todos os cantos, menos nos de Alice. Com os dedos trêmulos, pegou um cigarro do maço diante delas e o acendeu com o isqueiro. Na primeira tragada, engasgou-se ao tentar prender a fumaça e seus olhos ficaram vermelhos.

ㅤㅤㅤAlice deu um sorrisinho tão discreto que mal transpareceu em seus lábios ao lembrar do primeiro dia juntas, e observou Amy tentar dar mais algumas tragadas, antes de desistir e apagar o cigarro pela metade no prato. O desconforto parecia crescer, alimentando as Pessoas de Sombra e fazendo com que elas dobrassem de tamanho, deixando a cozinha minúscula.

ㅤㅤㅤ— Você não tava legal, não é? — Amy perguntou, partindo um pedaço da torrada com os dedos. — Naquele dia na sala...

ㅤㅤㅤAlice ainda se lembrava dos lábios colados em sua orelha, as mãos fechadas em torno de seus braços e toda a sensação de perigo que corroía seu corpo em sua presença. "Porque eu posso", sua voz era carregada com uma ameaça fria enrolada em seda negra e o medo dominou seu corpo.

ㅤㅤㅤ— Você não tava falando nada com nada, mas... — Amy continuou de forma hesitante e se interrompeu, como se pensasse melhor no que dizer. — O que falou sobre o Klaus... Você não tava legal, né?

ㅤㅤㅤAlice sentiu as palavras se acumularem em sua garganta, pesadas. Ela queria gritar, contar tudo o que Adam havia feito, mas sabia que Amy escolheria tapar os ouvidos para aquilo. A devoção dela com o professor era evidente em seu olhar assustado e na forma que pronunciava o nome dele, era como se ela estivesse presa a ele de uma forma tão profunda que era impossível resgatá-la. Mas não custava nada tentar.

ㅤㅤㅤ— Quando li seu diário... — Amy fez uma pausa, mordiscando um pedaço de torrada e o mastigando com dificuldade, deixando suas palavras pesarem no ar como uma fumaça negra e densa. — Eu vi como é dentro da sua cabeça e eu... Não entendi no primeiro momento, sabe? — Engoliu seco ao encarar os frios olhos azuis. — Mas eu pesquisei sobre, e agora entendo que você pode ter sentido medo por algo... fora da realidade naquele dia, entende? É assim que a esquizofrenia funciona, não é? — Ela seguia falando em um ritmo controlado, porém o tremor em sua voz traía sua confiança. — O que quer que você tenha dito ou temido, não é real.

ㅤㅤㅤCom cada palavra de Amy, o eco da voz de Adam crescia como se ele estivesse ali, em pé ao lado dela, com as mãos grandes em seu ombro enquanto sussurrava o doce veneno em seus ouvidos. Tanto que, quando a última frase foi dita, Alice já não ouvia mais a voz de Amy; era apenas Adam falando por trás de seus lábios. E aquilo apavorou Alice bem mais do que ela estava disposta a admitir.

ㅤㅤㅤO cigarro apagado no prato ainda soltava um fio de fumaça entre elas e as Pessoas de Sombra continuavam crescendo, fazendo o coração de Alice palpitar rapidamente. Tentando não demonstrar seu incômodo, ela se esticou para pegar um cigarro para si e o acendeu. Deu uma tragada profunda.

ㅤㅤㅤ— Então é isso que você acha que é isso que tá acontecendo? — Alice indagou com a voz rouca, sentindo a bile queimar em sua garganta. — Que pode justificar tudo como "coisa da minha cabeça"?

ㅤㅤㅤAmy hesitou, esfarelando ainda mais a torrada em suas mãos, mas algo em sua expressão denunciava que ela estava prestes a vomitar de nervosismo.

ㅤㅤㅤ— Eu só... — Amy começou a falar, mas sua voz falhou e a próxima frase saiu em meio a hesitações. — Só acho que você deveria levar em consideração que nem tudo seja como você pensa.

ㅤㅤㅤ— Foi isso que ele te disse sobre mim? — Alice perguntou com aquele sorriso secreto em seus lábios, sua voz era tão ríspida que viu o rosto Amy se tingir de vermelho.

ㅤㅤㅤ— Não — Ela gaguejou, arregalando os olhos, mas logo um lampejo de irritação cruzou seu rosto, os lábios repuxaram de forma arisca. — Não foi ele! Por que você é tão obcecada por ele? — Amy fez uma pausa e respirou fundo, tentando se manter controlada. —Klaus não é esse cara que você pensa ser.

ㅤㅤㅤAlice manteve o olhar frio fixo em Amélia, observando cada detalhe carregado em suas expressões que oscilavam entre a raiva e o desconforto. Talvez estivesse começando a perceber que foi uma péssima ideia tocar naquele assunto.

ㅤㅤㅤ— Por que você pintou o cabelo, Amys? — Alice indagou sem respondê-la, seu tom era afiado quando tragou profundamente. — E por que das lentes de contato? Ele te disse que você ficaria melhor assim? — A fumaça se embolou com as palavras, transformando-as em cobras que serpenteavam em direção a garota. — Ele disse que gosta de cabelos escuros. E que olhos azuis são lindos. E, de alguma forma, você acreditou que, se fosse assim, ele te olharia de um jeito diferente... Acho que funcionou, não é?

ㅤㅤㅤAmy mordeu o lábio inferior com força e seus olhos ficaram mais brilhantes, fazendo-a piscar várias vezes em uma tentativa de se livrar das lágrimas.

ㅤㅤㅤ— Não, não é isso... — Amy finalmente conseguiu falar, mas era possível sentir em sua voz o nó formado em sua garganta. — Mas eu percebi a forma que ele olhou pra você no primeiro dia e todos os dias depois...

ㅤㅤㅤAlice soltou uma risada áspera e sem humor que morreu tão rápido quanto começou. Deu uma tragada profunda antes de bater as cinzas em cima da torrada e soltou a fumaça em direção ao rosto de Amélia. Apesar da postura quase agressiva que mantinha, Alice sentiu o corpo vacilar por um momento enquanto a pergunta ecoava em sua mente: Ele me olhava?

ㅤㅤㅤNo período que passavam no colégio, Klaus nunca demonstrou qualquer interesse e constantemente a ignorava, o único momento em que demonstrava breve reconhecimento de sua presença era durante a chamada: os dois segundos em que ele pronunciava seu nome, se arrastavam em agonia, mas, após isso, ela não existia mais.

ㅤㅤㅤ—Klaus e eu temos muito em comum — Amélia continuou falando com um tom embargado. — Mas, de alguma forma, eu ainda estava vivendo na sombra de Alice Taylor. — Ela deu uma risadinha sem humor. — Pode ter sido tudo inconsciente, você sabe como os homens são diante de uma garota bonita. Quando você passava por ele no corredor algumas vezes, dentro da sala de aula... Droga, Alice. Ele sempre te olhava de alguma forma.

ㅤㅤㅤA sensação de ser invisível para ele incomodava a outra em sua cabeça, mas Alice sentia alívio por não ter que lidar com ele de perto. Agora, Amy revelava uma verdade incômoda, mostrando que a sensação de estar sendo sempre observada, era real. Ele a observava. Todos os dias.

ㅤㅤㅤA cabeça de Alice balançava inconscientemente e ela fitava o rosto da garota com os olhos vazios. O cigarro pendia em seus dedos, esquecido, enquanto os pensamentos transbordavam. Ela ainda processava aquela informação, perguntando-se como poderia deixar a guarda tão baixa em sua presença; se demonstrando uma presa fraca para ele.

ㅤㅤㅤ— Klaus me viu como eu era, então ofereci pra ele uma Amy que pareceria mais atraente para ele — Amy deu de ombros. — Nós nos damos muito bem e...

ㅤㅤㅤ— Ele não te enxerga — Alice interrompeu e jogou a ponta do cigarro dentro do prato. Seu estômago estava embrulhado. — Não importa a cor do seus olhos ou o cabelo que você escolher usar. Tudo o que ele vê é alguém fácil de manipular.

ㅤㅤㅤ— Klaus não é assim! — Amy retorquiu, exaltada. — Ele me escuta, me entende, ele me ajudou quando precisei...

ㅤㅤㅤ— Você está se ouvindo? — Alice indagou, séria.

ㅤㅤㅤ— Eu o conheço melhor do que você! — A garota se levantou irritada e passou as mãos pelos cabelos, linhas brilhosas eram visíveis em suas bochechas.

ㅤㅤㅤ— Sabe, Amy — Alice começou a dizer com a voz exausta, carregada de pena. — Você deveria agradecer por ele não te olhar da mesma forma que ele me olha. E é melhor você cair fora enquanto isso não acontece.

ㅤㅤㅤAntes que Amy pudesse retrucar, Alice abaixou a gola do blusão que usava e revelou a pele avermelhada acima do seio, com uma marca circular escura e bolhas amareladas ao redor da mesma. A queimadura que Adam fez na noite anterior. Os olhos grandes se arregalaram e Amy absorveu aquilo em silêncio, mas a desconfiança transpareceu em seu rosto.

ㅤㅤㅤ— Dê uma boa olhada — Alice disse. — Está uma beleza, não é? Esse foi o presentinho que ele me deixou antes de ir te encontrar ontem.

ㅤㅤㅤ— Como... — começou, mas engoliu as palavras.

ㅤㅤㅤ— Eu preciso que acredite em mim — Alice arrumou a gola da camisa e pegou outro cigarro apenas para ocupar suas mãos. — Esse Klaus que você acha que conhece, não é real. O nome dele é Adam Johnson e ele não tem boas intenções.

ㅤㅤㅤ— Do que você está falando? — Amy balançou a cabeça negativamente, sem entender.

ㅤㅤㅤ— Tudo o que falei naquele dia é a verdade — Continuou. — Eu o conheci ano passado no bar onde trabalho e, desde sei lá quando, ele vem me perseguindo sem que eu soubesse. Pode parecer que estou delirando, eu sei...

ㅤㅤㅤAmélia continuou a encarando.

ㅤㅤㅤ— Adam me encontrou depois da festa de dia das bruxas da escola e... — Alice fez uma pausa, debatendo se deveria comentar sobre a morte da garota que ela participou ou das outras. — Não importa. Mas, depois daquilo, ele começou a aparecer no meu apartamento e deixar bilhetes para me assustar.

ㅤㅤㅤ— Bilhetes? — Amy parecia apreensiva, imersa em sua história ao mesmo tempo que estava cética.

ㅤㅤㅤ— Não tenho certeza — mentiu — mas acho que ele tem algo a ver com a morte do Sr. Dulvan.

ㅤㅤㅤ— Você tá viajando.

ㅤㅤㅤ— Estou? — Ergueu uma sobrancelha, acendendo o cigarro que girava em mãos. — Não acha muita coincidência que ele tenha começado a dar aula justamente no colégio que eu estudo? Considerando o que eu te contei até agora?

ㅤㅤㅤAmy mordeu o lábio inferior com força.

ㅤㅤㅤ— Adam está jogando um jogo comigo onde eu não tenho chances — Ele está brincando com a comida no prato, completou em pensamento. — Eu não quero jogar, Amys, mas ele ameaçou machucar Lucas. — Alice ouviu sua própria voz quebrar ao se lembrar.

ㅤㅤㅤ— Isso... — Amy fez uma pausa demorada e balançou a cabeça, chegando a uma conclusão. — Isso simplesmente não faz o menor sentido, Alice.

ㅤㅤㅤAlice soltou um suspiro pesado, a fumaça em seu hálito dançando entre elas. A única coisa que poderia usar de prova era aquilo: sua palavra contra a de Adam, e ao que tudo indicava, Amélia já havia escolhido seu lado.

ㅤㅤㅤ— Que seja. — Alice disse e se levantou, arrastando a cadeira.

ㅤㅤㅤAs roupas que usava na noite anterior, haviam sido encontradas e estavam abarrotadas de qualquer jeito sobre a cadeira ao seu lado. Ela as juntou e as abraçou contra o corpo, enquanto enfiava os pés descalços dentro do coturno de cano alto que estava aos pés da mesa.

ㅤㅤㅤSeu olhar encontrou com o de Amy e elas se encararam por um longo período de silêncio, antes que Alice tornasse a falar.

ㅤㅤㅤ— Eu espero que você descubra a verdade do jeito difícil, Amys. — Apesar da voz calma, seu tom carregava a certeza de quem estava perdendo o jogo. — Mas fique sabendo que quando isso acontecer, não vai sobrar nada de você.

Alice em seu dia mais simpática: "Espero que você se foda"


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