2. capítulo trinta e um
ㅤㅤㅤA campainha tocou em plena madrugada de um dia de semana. Georgia se sentou na cama instintivamente, ainda com os olhos pesados de sono. Franziu as sobrancelhas ao olhar pela janela e notar que o céu ainda estava escuro, uma chuva forte caia. O relógio do celular marcava exatamente cinco e meia da manhã, seu despertador deveria tocar só daqui uma hora.
ㅤㅤㅤResmungou baixinho, irritada, e quando pensou em deitar novamente, a campainha soou mais uma vez, desta vez com uma urgência. A mulher se levantou, pegou a arma na gaveta e saiu do quarto. A campainha continuava a soar, acompanhada de socos fortes na madeira.
ㅤㅤㅤQuando parou diante da porta, os socos se tornaram violentos como se sentisse a sua presença. Georgia, com a pistola empunhada firmemente, se aproximou com cautela e olhou pelo olho mágico. Seu estômago gelou e ela sentiu um peso indescritível em seu coração.
ㅤㅤㅤAlice estava do outro lado, encharcada. O rosto carregado por uma expressão raivosa, enquanto esmurrava a porta incessantemente. Seu cabelo estava desgrenhado, molhado, e seus olhos estavam escuros. Georgia paralisou no primeiro momento ao vê-la daquela forma.
ㅤㅤㅤLargou a arma no chão e se atrapalhou com as chaves na hora, destrancando a porta o mais rapidamente que podia. Assim que abriu, Alice entrou como um furacão, sem olhar para os lados. Pisava pesadamente, andando em círculos no mesmo lugar e cobrindo as orelhas com as mãos, um gesto familiar de sua infância que fazia quando estava à beira de um colapso.
ㅤㅤㅤ― Ei ― ela exclamou, mas a irmã parecia alheia ao que acontecia ao seu redor, completamente perdida naquela agitação.
ㅤㅤㅤGeorgia acendeu a luz da sala e correu até ela, segurando-a firmemente pelos ombros. Foi preciso usar a força para obrigar a garota a parar e, finalmente, encarar a irmã mais velha. Os olhos de Alice se arregalaram, tendo a realização repentina de onde estava. Seus lábios tremiam e ela ofegava.
ㅤㅤㅤ― Ei ― Georgia repetiu, sua voz mais suave dessa vez.
ㅤㅤㅤEla estudou atentamente o rosto da outra, vendo o corte profundo em sua maçã do rosto e o desespero em seus olhos. Segurou as mãos de Alice com cuidado, tentando fazer com que as abaixasse. Mas foi então que sentiu uma textura pegajosa ao tocá-la, como uma lama viscosa e escura.
ㅤㅤㅤMas o quê...
ㅤㅤㅤSegurando as mãos trêmulas, Georgia arregalou os olhos ao perceber a tonalidade avermelhada que cobria suas palmas e encarou Alice, tentando juntar as peças de um quebra-cabeça. Os cabelos molhados que contornavam o rosto ficaram sujos quando ela os tocou, fazendo pequenos riscos avermelhados surgirem na pele pálida.
ㅤㅤㅤ― O que aconteceu, Aly? ― ela perguntou com a voz baixa, apertando suas mãos como se pudesse evitar o que já tinha acontecido.
ㅤㅤㅤAlice abriu a boca, mas apenas sons indistintos escaparam. As lágrimas se acumularam e começaram a cair sem que ela percebesse, a respiração irregular soava feito um choro engasgado. Ela tentou levar as mãos às orelhas novamente, mas Georgia a segurou com firmeza. Sem aviso, os joelhos de Alice cederam, e ela desabou sobre os braços da irmã.
ㅤㅤㅤAs mãos sujas se fecharam em torno da gola da blusa de Georgia em busca de apoio. O choro, antes contido, se transformou em soluços descontrolados - dando a impressão que ela não conseguia respirar direito -, não demorou muito até os gritos romperem viscerais pela garganta de Alice.
ㅤㅤㅤEra a primeira vez que via Alice chorar daquele jeito. E, no primeiro momento, Georgia sentiu o corpo paralisar ao notar a familiaridade daquele momento.
ㅤㅤㅤAinda sem saber o que estava acontecendo, a segurou com firmeza e, com cuidado, caiu junto a ela até o chão e envolveu o corpo trêmulo de Alice em um abraço protetor. Sussurrava repetidamente que tudo ficaria bem, que ela estava segura; mas, no fundo, ela sabia que havia coisas que ela não conseguiria protegê-la.
ㅤㅤㅤO som de passos apressados ecoaram pela casa silenciosa e Liam apareceu na porta da sala de estar, ele usava uma camiseta amassada e calças de pijama. O rosto preocupado ainda estava inchado pelo sono. Em um movimento rápido, Georgia cobriu as mãos da irmã mais nova, impedindo que ele tivesse qualquer visão do sangue.
ㅤㅤㅤ― Georgia! ― Ele chamou com urgência, parando de supetão na porta ao ver a cena.
ㅤㅤㅤSua mulher estava sentada de mau jeito no chão, aninhando Alice em seus braços enquanto a garota tremia incontrolavelmente. Os gritos de Alice causavam arrepios em sua coluna, exalando o tipo de dor que estabeleceu um incômodo em seu estômago.
ㅤㅤㅤ― Traga um cobertor e uma toalha, rápido ― Georgia pediu antes que ele falasse algo. ― Ela está congelando.
ㅤㅤㅤDesnorteado por conta do susto, o homem assentiu indo buscar o que foi pedido. E, quando voltou, ainda carregava a expressão de quem não tinha certeza do que fazer. Liam jogou o cobertor sobre os ombros de Alice, arrumando-o para garantir que ela se esquentasse, e entregou uma toalha para a mulher.
ㅤㅤㅤ― Está tudo bem, Aly ― Georgia sussurrou, acariciando os cabelos da irmã com uma mão. ― Você está segura. Ninguém vai te machucar. Eu prometo. Respire fundo, ok?
ㅤㅤㅤOs olhos claros se fixaram no marido por tempo suficiente para que ele identificasse o receio que carregavam. Georgia soltou um suspiro pesado e apoiou a bochecha sobre a cabeça de Alice, enquanto os dedos continuavam a desembaraçar os fios assanhados. Os lábios dela se moveram silenciosamente, formando palavras que não precisavam ser ditas em voz alta para que ele compreendesse o que elas realmente significavam: Igual à mamãe.
ㅤㅤㅤOs minutos se arrastaram e a mulher não ousou mexer um músculo sequer, apesar de começar a sentir cãibras incômodas em uma das pernas. Mas o choro finalmente havia diminuído, tornando-se apenas uma respiração irregular. Georgia aproveitou o momento e se afastou, apenas o suficiente para observar o rosto da irmã.
ㅤㅤㅤA pele estava pálida, e o corte na maçã do rosto continuava a sangrar lentamente por conta do atrito contra o tecido. Limpou o sangue com a ponta da toalha, tomando cuidado para não machucá-la, mas Alice não parecia se importar. Os olhos escuros estavam vagos e ela não parecia estar realmente ali.
ㅤㅤㅤ― Ei, Aly ― Georgia chamou, tentando despertá-la, mas com medo de provocar reações extremas. ― Preciso que você fique comigo, tá bom?
ㅤㅤㅤEla balançou a cabeça positivamente, mas não piscou; encarava um ponto vazio no chão como se estivesse presa em um pesadelo, vendo uma cena estranha se desenrolar diante dela e não pudesse fazer nada para mudar aquilo.
ㅤㅤㅤ― Você estava bebendo, Alice? ― Liam perguntou, aproximando-se ao retornar da cozinha, com uma caneca fumegante em mãos. ― Usou drogas?
ㅤㅤㅤAlice se encolheu instintivamente, seus olhos se arregalaram ao perceber o vulto de Liam crescendo em sua visão periférica. A urgência a dominou, e ela tentou se afastar, mas os braços firmes ao seu redor a mantiveram no lugar. A respiração da garota se acelerou, as unhas cravando-se nos braços de Georgia.
ㅤㅤㅤ― Liam, por favor... ― Georgia falou, gesticulando com a mão para que ele se retirasse.
ㅤㅤㅤSem entender, o homem se retirou para a cozinha, murmurando algo que soou como "qualquer coisa, me chama".
ㅤㅤㅤ― O que aconteceu, Aly? ― Ela perguntou novamente, ao ficarem sozinhas.
ㅤㅤㅤAlice virou o rosto em sua direção, sem conseguir enxergá-la diante de si.
ㅤㅤㅤ― Eu não consigo acordar... ― Suas palavras eram trêmulas, hesitantes. Havia um medo em sua voz que fez o coração de Georgia palpitar mais rápido. ― Eu... Eu não consigo.
ㅤㅤㅤ― O que você quer dizer? ― Georgia a pressionou, com cuidado, evitando um deslize que trouxesse o choro à tona.
ㅤㅤㅤMas Alice não respondeu, ao invés disso, os olhos vagavam perdidos até se fixarem nas mãos trêmulas, sujas. Aquele olhar carregava algo que Georgia não conseguia identificar, mas conhecia muito bem.
ㅤㅤㅤA mulher comprimiu os lábios, levantando-se devagar ainda com o braço ao redor de Alice e a puxando junto a si, guiando-as até o banheiro. Os passos arrastados de Alice e seu corpo inerte faziam o peso crescer sobre os ombros de Georgia, trazendo à tona as memórias de uma época antiga.
ㅤㅤㅤAo entrar no banheiro, ela ligou a torneira da banheira deixando o som da água preencher o ambiente. Enquanto ajustava a temperatura, seus olhos caíram sobre Alice que permaneceu parada no centro do cômodo com o olhar perdido. A cena era assustadoramente familiar e, por um instante, foi como se tivesse voltado ao passado.
ㅤㅤㅤRespirando fundo, Georgia se aproximou da irmã. Seus movimentos eram cuidadosos, hesitantes, como se um toque mais grosseiro fosse despedaçar a garota. Ajudou a tirar o casaco impermeável, um modelo cinza escuro com um brilho sutil. Sobre a luz clara do banheiro, a mulher percebeu manchas escuras e respingos na superfície. Onde você se meteu?
ㅤㅤㅤEla o dobrou e colocou sobre a bancada, enquanto Alice permanecia imóvel; o olhar vago denunciava que ela não estava realmente ali. Ao levantar a blusa dela, Georgia notou um leve inchaço na parte inferior da barriga da irmã, quase imperceptível, mas não se permitiu tirar conclusões.
ㅤㅤㅤConforme Georgia retirava as roupas de Alice, inspecionava a pele da garota em busca de hematomas ou qualquer outro sinal de agressão, mas não havia nada evidente. Ela inclinou a cabeça de Alice para o lado, observando o corte fundo na maçã do rosto e um inchaço evidente em sua bochecha, que passou despercebido no primeiro momento.
ㅤㅤㅤ― Quem fez isso? ― indagou mais para si do que para a outra. ― Ou você fez sozinha?
ㅤㅤㅤCom cuidado, Georgia a ajudou a entrar na água morna, sentando-a na banheira. O vapor subiu suavemente, mas Alice permaneceu inerte, com os olhos fixos em um ponto distante como se nada daquilo a alcançasse. Ela começou a lavar os cabelos da garota com movimentos lentos, desembaraçando os fios com a água quente.
ㅤㅤㅤEnquanto a espuma escorria por suas costas, Georgia percebeu os ombros de Alice começarem a tremer levemente, quase imperceptíveis. Engoliu seco, observando a menina abraçar as próprias pernas e apoiar a cabeça no joelho. Ela não emitiu som algum, mas os tremores aumentaram.
ㅤㅤㅤGeorgia resistiu à vontade de dizer algo, todas as palavras que passavam por sua mente eram um acúmulo de questionamentos que deveriam ser evitados. É claro que estava preocupada, mas procurar respostas no estado que Alice se encontrava era impossível; tudo o que restava era ruminar as perguntas para depois. Em silêncio, continuou a banhá-la e, ao terminar, enrolou-a na toalha e fez com que se sentasse na tampa do vaso sanitário.
ㅤㅤㅤ― Vai arder um pouquinho ― avisou baixinho.
ㅤㅤㅤAlice parecia um pouco melhor após o banho, como se a água tivesse lavado boa parte das coisas ruins que carregava. Os olhos acompanhavam os movimentos de Georgia, assistindo-a embeber o algodão em antisséptico para limpar o corte devidamente. Alice apertou os olhos e franziu as sobrancelhas levemente, trazendo um certo alívio para a mulher ao demonstrar que estava sentindo algo. Após a limpeza, Georgia colou adesivos de pontos falsos sobre o corte.
ㅤㅤㅤDepois disso, a mulher buscou um pijama confortável e a vestiu como se fosse uma boneca. Com o secador em mãos, sentou a irmã na cama do quarto de hóspedes e começou a secar os fios escuros. A luz do dia começava a espiar pelas frestas da cortina e o canto dos passarinhos se misturavam com o barulho do aparelho.
ㅤㅤㅤQuando terminou, ela trançou os fios em uma trança única.
ㅤㅤㅤ― Pronto ― anunciou, quase orgulhosa ao deitar a irmã na cama. ― Agora tente descansar um pouco.
ㅤㅤㅤEla se afastou, se preparando para sair, porém a voz baixa e hesitante chegou em seus ouvidos.
ㅤㅤㅤ― Claro, Aly. ― Sentou-se na cama, aproximando-se dela e afastando o cabelo escuro do rosto.
ㅤㅤㅤGeorgia começava a ouvir os passos de Liam do lado de fora, subindo e descendo as escadas e a voz de Audrey soou antes da porta abrir cerca de três dedos. A criança espiou curiosa para dentro do quarto, trocando olhares com a mãe, que deu um sorriso mínimo e gesticulou para que ela esperasse. Audrey adorava Alice, mas Georgia não queria que a visse naquele estado.
ㅤㅤㅤ― Eu preciso acordar, mana ― Alice murmurou depois de um longo silêncio, o olhar vazio se fixando em um ponto no canto do quarto. ― Não quero mais ver ela.
ㅤㅤㅤ― Quem? ― Georgia indagou.
ㅤㅤㅤ― Amy.
ㅤㅤㅤAs sobrancelhas claras se franziram, confusas.
ㅤㅤㅤ― Quem é Amy?
ㅤㅤㅤAlice piscou lentamente, os olhos vidrados estavam desfocados e enxergavam algo que Georgia não podia ver.
ㅤㅤㅤ― Não é real. ― ela concluiu, mas seu tom se assemelhava muito a um questionamento.
ㅤㅤㅤGeorgia permaneceu em silêncio, contendo o tsunami de perguntas que não paravam de surgir enquanto acariciava os cabelos castanhos. Os olhos claros pousaram na direção que Alice estava olhando e, mesmo sem ver nada, ela sentiu um calafrio percorrer sua coluna.
ㅤㅤㅤPouco a pouco, a respiração de Alice se tornou profunda e o corpo, antes tenso, relaxou à medida que o cansaço se espalhava. Mesmo depois de ter certeza que a irmã havia dormido, os dedos de Georgia continuaram a percorrer seus cabelos.
ㅤㅤEla sentiu um nó se formar em sua garganta. Alice era tão parecida com a mãe delas que era assustador perceber aquilo. O mesmo perfil delicado, o mesmo cabelo castanho... e talvez até os mesmos fantasmas. Naquela noite, Georgia viu o mesmo olhar perdido que Clarisse carregava e aquilo acabou com ela. As frases sem sentido, totalmente desconexas da realidade, no fim, se tornaram pedidos de socorro camuflados.
Se lembrava bem de quando a mãe foi consumida por aquele torpor, e foi arrastada para um lugar que ninguém conseguiu alcançá-la. Alice estaria caminhando na mesma direção?
A culpa pesou sobre seus ombros. Georgia nunca deveria ter deixado Alice ir embora, deveria ter mantido o pulso firme, mas era uma convivência tão complicada. Foi egoísmo de sua parte, ela sabia. Talvez se as coisas tivessem sido diferentes, se Georgia tivesse sido mais firme, aquela situação não tivesse ocorrido porque ela não deixaria Alice sozinha.
Sentiu os olhos esquentarem, a preocupação corroendo seu interior, mas ela se impediu de chorar. Ao invés disso, se deitou ao lado de Alice e a aninhou cuidadosamente, como fazia quando eram mais novas. Naquela época, Alice tinha medo do bicho-papão que se escondia na escuridão e Georgia dizia que monstros não eram reais, mas a abraçava até adormecer.
O brilho dourado da manhã quebrava suavemente as sombras do quarto, e o barulho de vozes do lado de fora a trouxe para a realidade. Ela observou o rosto da irmã mais uma vez; mesmo adormecida, sua expressão continuava inquieta e pequenos espasmos eram visíveis. E Georgia finalmente percebeu que os monstros eram reais, ela apenas não conseguia vê-los.
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