2. capítulo trinta e três

ㅤㅤㅤSeu cérebro parecia ter se transformado em concreto, e o simples ato de mexer a cabeça era doloroso. Então, Alice permaneceu na mesma posição e apertou os olhos com força, tentando voltar a dormir. Não era o suficiente, é claro. Aos poucos, os sussurros retornaram e ela passou a lutar contra a sensação de estar sendo observada.

ㅤㅤㅤ― Você tá aí? ― Alice perguntou em um sussurro. A voz baixa e rouca arranhava sua garganta e ela não conseguia se lembrar quanto tempo fazia desde que falara pela última vez.

ㅤㅤㅤA voz específica que esperava não veio. Talvez aquilo significasse que os dias anteriores tenham ficado apenas em seus sonhos, e que ela finalmente havia acordado, de fato. Antes tarde do que nunca, pensou ao se arriscar a abrir um olho e analisar o quarto ao redor.

ㅤㅤㅤNão havia sinal dela.

ㅤㅤㅤDeixando um grunhido baixo escapar, Alice se sentou na beira da cama, sentindo a queimação no fundo de sua garganta. Estava na casa de Georgia, fez uma anotação mental. Não se lembrava de como havia chegado até ali. Aquele era seu antigo quarto, mas tudo estava diferente; como se no momento em que ela decidiu sair, eles também decidiram apagá-la.

ㅤㅤㅤFez uma careta, escondendo o rosto entre as mãos e deixando um suspiro pesado escapar. Deus do céu, era como se seu corpo tivesse sido dobrado e torcido enquanto dormia e não havia nada que não estava doendo.

ㅤㅤㅤFicou de pé e esticou as costas, ouvindo pequenos estalos que trouxeram um pouco de alívio. Esfregou os olhos. Sua roupa estava dobrada sobre a cômoda, limpa e com cheiro de amaciante, sem nenhuma mancha à vista. A chave do carro estava do lado. Valeu, G.

ㅤㅤㅤAo tocar o tecido, uma corrente estática percorreu seu corpo, e o cheiro de sangue preencheu o ar. O galpão retornou junto a flashes desconexos: os gritos, Amy, o rosto distorcido de Adam e o gosto de vômito na boca. Ela recuou, ofegante, olhando ao redor com os olhos assustados. Ainda estava no quarto, ela ainda estava segura.

ㅤㅤㅤIgnorando o tremor repentino em seu corpo, Alice se despiu lentamente, observada pelos rostos que flutuavam ao seu redor. Tudo estava bem, enquanto eles continuassem sendo caricatos. Parou nua, diante do espelho de corpo inteiro, ela estudou seu reflexo sem conseguir enxergar seu próprio rosto.

ㅤㅤㅤO que eu faço agora?, as palavras se repetiam várias e várias vezes, quase palpáveis diante de seus olhos. Observou a outra refletida virar o corpo de lado, ressaltando a protuberância em seu ventre, e acariciou a barriga inexistente. Isso é maluquice, pensou mal-humorada e vestiu a roupa limpa.

ㅤㅤㅤAlice afastou a cortina, comprimindo os olhos diante da claridade do dia e deixou um xingamento baixo escapar. Abriu a janela, passando uma das pernas para o lado de fora.

ㅤㅤㅤ― O que você está fazendo?

ㅤㅤㅤAlice congelou, a perna ainda pendurada para fora, quando a voz de Georgia chegou até ela. Lentamente, virou a cabeça para ver a irmã mais velha parada na porta do quarto, com as mãos plantadas nos quadris. Era uma cena quase cômica de tão familiar.

ㅤㅤㅤ― O que parece que tô fazendo? ― Alice retrucou em um tom quase entediado.

ㅤㅤㅤ― Fugindo pela janela? Feito uma adolescente?

ㅤㅤㅤAlice ergueu as mãos teatralmente, em redenção.

ㅤㅤㅤ― Você me pegou! ― Alice riu, mas a risada soou oca, sem vida. Ela se sentia sufocada pelo que tentava evitar. Se não saísse dali, temia que não conseguisse respirar.

ㅤㅤㅤGeorgia bufou, apontando para a perna ainda pendurada para o lado de fora.

ㅤㅤㅤ― Alice, pelo amor de Deus! Entre!

ㅤㅤㅤCom um suspiro exagerado, Alice puxou a perna de volta para o quarto, mas acomodando-se no parapeito da janela. Sentada, soprou uma mecha de cabelo que insistia em cair sobre seu rosto e apoiou a bochecha na palma da mão, como se estivesse prestes a assistir uma palestra de duas horas.

ㅤㅤㅤ― Feliz? ― murmurou, revirando os olhos. ― Eu só precisava de ar.

ㅤㅤㅤ― E precisava sair pela janela pra isso? Temos portas nessa casa, caso tenha esquecido.

ㅤㅤㅤ― Se eu saísse sem você ver, não estaríamos tendo essa conversa. ― Alice a encarou com os olhos penetrantes. ― Entendeu agora?

ㅤㅤㅤ― Jesus, parece que a cada ano você fica pior. ― Georgia exclamou irritada, mas algo em sua expressão demonstrou o arrependimento imediato.

ㅤㅤㅤUm silêncio constrangedor se seguiu.

ㅤㅤㅤ― Ouch.

ㅤㅤㅤ― Você sabe que eu tô tentando te ajudar, né? ― Os olhos cor de céu se suavizaram e ela deixou os braços caírem ao lado do corpo.

ㅤㅤㅤ― Dá pra ver. ― Alice comprimiu os lábios, balançando a cabeça positivamente.

ㅤㅤㅤ― Me desculpe ― Georgia suspirou, sentando-se na cama e encarando a irmã. ― Mas você não pode sair assim. Não sem antes dar uma explicação.

ㅤㅤㅤAs sobrancelhas de Alice se franziram por um breve momento, tentando se lembrar do que realmente havia acontecido depois que saiu do galpão. Um calafrio percorreu seu corpo e ela tentou disfarçar o desconforto.

ㅤㅤㅤ― Você aparece na minha casa do nada, machucada, chorando coberta de sangue, e agora tá tentando fugir? Eu preciso entender o que aconteceu, Alice.

ㅤㅤㅤAlice desviou o olhar, sentindo a tensão se instalar. Não queria falar sobre aquilo, não naquele momento, e nem nunca mais em sua vida. Uma Pessoa de Sombra entrou em sua visão periférica e a garota a encarou diretamente, para que a mesma sumisse. Não é hora para gracinhas, pensou. Georgia inclinou a cabeça, olhando brevemente na direção que Alice olhou e, em seguida, a encarou.

ㅤㅤㅤ― Tem a ver com o Lucas? ― perguntou hesitante, sabia era como pisar em ovos. ― Foi ele que fez isso com você? Ele te machucou?

ㅤㅤㅤAlice congelou, os dedos apertando o suporte de madeira com força, e seus olhos se voltaram para a irmã, incrédulos e cansados.

ㅤㅤㅤ― Lucas? ― Ela soltou uma risada curta e sem humor.

ㅤㅤㅤ― Eu preciso perguntar. ― Georgia rebateu, a voz saindo mais alta do que pretendia. ― Os namorados são os primeiros suspeitos.

ㅤㅤㅤ― Não estamos mais juntos. ― Alice retorquiu.

ㅤㅤㅤ― Mais um motivo para eu achar ele suspeito.

ㅤㅤㅤAlice fechou os olhos brevemente, quase sem acreditar naquilo. Se o problema fosse Lucas, eu não teria um problema, pensou, sentindo uma onda de frustração dominá-la. Precisava pensar em algo que não levantasse muitas suspeitas, algo totalmente normal, algo que não envolvesse a morte de sua melhor amiga.

ㅤㅤㅤ― Não tem nada a ver com ele ― ela disse com a voz rouca, umedecendo os lábios. Se tivesse, eu resolvia. ― Eu tomei um pouco de ácido e... bem, deu no que deu.

ㅤㅤㅤGeorgia permaneceu em silêncio por um momento, sua expressão se tornou uma mistura de preocupação com descrença. Alice ficou desconfortável, os olhos da irmã estudavam seu rosto em busca de uma mentira como se fosse o suficiente para decifrar o enigma. E se eu contar para ela sobre Adam?, considerou a pequena oportunidade. Você acabou de matar uma pessoa, Alice, a outra avisou, entregue ele e vá de brinde.

ㅤㅤㅤ― Isso não é bom pra ninguém, Alice, especialmente pra você. ― Georgia a repreendeu. ― Você sabe, por...

ㅤㅤㅤA garota revirou os olhos dramaticamente e se levantou, tão rápido que Georgia interrompeu a própria fala, surpresa pelo movimento repentino.

ㅤㅤㅤ― Eu sei, eu sei. Drogas são ruins, policial. ― Alice fez um gesto com a mão, como se espantasse a preocupação da outra e acrescentou com sarcasmo: ― Além do mais, por que eu iria precisar delas quando as alucinações são de graça na família, né?

ㅤㅤㅤGeorgia não achou graça na brincadeira, ao invés disso, seu olhar se tornou duro. Uma coceira no rosto incomodou Alice e, em movimento automático, ela esfregou o local. O arrependimento veio de imediato quando ela sentiu a dor e a pressão em sua maçã do rosto, e a umidade por baixo dos adesivos.

ㅤㅤㅤ― Merda! ― Exclamou, observando o sangue que sujou seus dedos.

Não era muito, mas foi o suficiente. Alice recuou instintivamente, agarrando o próprio pulso, com o coração acelerado e a respiração curta. Ela olhou para os dedos manchados, de repente suas mãos estavam vermelhas. Procurou Georgia, mas tudo o que via diante de si era a escuridão.

ㅤㅤㅤ― Alice ― ela chamou, puxando-a para a realidade.

ㅤㅤㅤGeorgia havia se levantado e dado um passo à frente, mas parou no lugar ao ver que a irmã fez o mesmo movimento para trás, mantendo a distância entre elas.

ㅤㅤㅤ― É melhor eu ir ― Alice anunciou, engolindo seco.

ㅤㅤㅤ― Não precisa ir agora, pode ficar mais um pouco. ― Georgia disse, levantando a mão brevemente para tocar seu rosto, mas abaixou quando a irmã recuou. ― Pode ficar aqui até se sentir melhor.

ㅤㅤㅤ― Eu estou bem! ― Alice rebateu, irritada. ― Merda, eu tenho aula.

ㅤㅤㅤ― Já liguei para o colégio ― disse com calma. ― Justifiquei suas faltas, disse que você estava doente. Espero que não se importe.

ㅤㅤㅤ― Faltas?

ㅤㅤㅤA mulher suspirou.

ㅤㅤㅤ― Hoje é sábado, Alice.

ㅤㅤㅤ― Sábado? ― murmurou.

ㅤㅤㅤAlice ficou estática, tentava se lembrar de algo, mas apenas memórias fragmentadas flutuavam em sua mente. Tudo estava errado: os sussurros, os vultos, até ela própria. Merda, merda, merda. Sem dizer uma única palavra, ela passou pela mulher e disparou pela porta do quarto.

ㅤㅤㅤ― Alice! ― Georgia chamou, mas a voz foi abafada pelo som da porta da frente se fechando.

ㅤㅤㅤDo lado de fora, Alice sentiu a brisa da primavera contra o rosto e comprimiu os olhos por conta da claridade. Risadas infantis soavam pela rua, mas se tornavam ecos distorcidos de uma realidade que ela não pertencia. Sentia dificuldade para respirar, o coração palpitando em sua garganta não permitia que o ar entrasse em seu corpo.

ㅤㅤㅤAtrapalhou-se com as chaves, lembrou do homem tomando-as de sua mão. Olhou ao redor antes de entrar no carro, para ter certeza de que não estava sendo observada. Não importa onde esteja, a voz dele ressoou em sua cabeça, eu sempre estarei por perto. Alice apertou as laterais da cabeça.

ㅤㅤㅤ― Adam não estava falando apenas fisicamente ― Alice soltou um xingamento alto ao ouvi-la, e virou a cabeça na direção do banco do passageiro.

ㅤㅤㅤAmy estava sentada ali com um olhar baixo. Vestia a mesma roupa que usava na última vez: o casaco militar manchado de sangue seco, os tons de marrom escuro contrastando com a regata branca por baixo, que parecia um pano encharcado, rasgado e tingido com o vermelho escuro.

ㅤㅤㅤSua pele estava acinzentada, e os cabelos desgrenhados escondiam seu rosto. Mas quando ela ergueu a cabeça, Alice sentiu um arrepio gelado. Os olhos sem vida estavam cinzentos, opacos. Seu pescoço estava aberto, resultado de três perfurações tão próximas que acabaram se tornando um único buraco, exibindo sua traqueia partida. Uma de suas bochechas estava aberta, permitindo que Alice tivesse uma visão de seus dentes.

ㅤㅤㅤ― Ele já está na sua cabeça, não é? ― Amy indagou, um pouco de terra molhada escorrendo pelo canto dos lábios brancos. ― Você consegue escutá-lo.

ㅤㅤㅤ― Isso não é real ― Alice murmurou, dando a partida no carro. ― Você não está aqui.

ㅤㅤㅤAmy inclinou a cabeça para o lado, fazendo o sangue escorrer pelo buraco em sua bochecha, e abriu um sorriso tristonho.

ㅤㅤㅤ― É claro que não estou. Eu estou morta. ― disse com a voz baixinha. ― Você me matou, lembra?

ㅤㅤㅤAlice balançou a cabeça, sentindo um nó se fechar em sua garganta e os olhos ficarem quentes. Os dedos apertaram o volante com força enquanto ela tentava não gritar de frustração. Eu não fiz isso, repetia-se para si mesma, tudo isso foi um sonho e agora estou acordada.

ㅤㅤㅤ― Não foi um sonho, Alice ― Amy falou com um suspiro, apoiando os All Star sujos de lama no painel do carro. ― Foi bem real... Talvez tenha sido mais para mim do que para você, mas...

ㅤㅤㅤ― Quer calar a boca? ― exclamou, sua voz tremendo com uma mistura de raiva e desespero.

ㅤㅤㅤ― Gritar comigo não vai mudar o que aconteceu, não vai desfazer o que você fez.

ㅤㅤㅤAlice mantinha os olhos fixos na rua enquanto dirigia. Não queria encará-la, não queria mais uma lembrança. Suas mãos estavam vermelhas, pegajosas, grudando-se no volante.

ㅤㅤㅤAmy inclinou-se levemente, aproximando o rosto pálido do perfil de Alice. Um cheiro de decomposição invadiu seu olfato, fazendo o estômago dela revirar e a bile quente queimar.

ㅤㅤㅤ― Vai embora ― murmurou, a voz saiu entrecortada enquanto ela prendia a respiração, tentando não vomitar no próprio colo. ― Vai embora, Amys, por favor.

ㅤㅤㅤ― Sabe que o problema não sou eu, não é? ― Amy indagou, afastando-se e apoiando o queixo na mão, enquanto olhava para a paisagem urbana do lado de fora. ― Adam é o problema. Você deixou com que ele envenenasse tudo, e olhe para nós agora... Eu sou apenas uma consequência da bagunça de vocês.

ㅤㅤㅤAlice sentiu a raiva borbulhar em seu peito e freou bruscamente no estacionamento do mercadinho onde deixava o carro. Sua respiração era pesada e as lágrimas escorriam por suas bochechas quando se virou para encarar Amy.

ㅤㅤㅤ― Você acha que isso é culpa minha? ― Alice gritou, a voz embargada enquanto encarava o cadáver. ― Você acha que eu escolhi isso? Que eu queria que acabasse assim?

ㅤㅤㅤAmy permaneceu silêncio.

ㅤㅤㅤ― Quer me culpar por toda essa merda? Então, me culpe! ― Alice ergueu as mãos. ― Mas, porra, não me diga que eu não te avisei. Se você tivesse me ouvido... 

ㅤㅤㅤA voz de Alice se extinguiu em um soluço.

ㅤㅤㅤ― Do que adiantou me avisar e permitir acontecer com você? ― Amy disse com a voz calma, os olhos tornando a se fixar na outra. O buraco em seu pescoço expôs um movimento grotesco quando engoliu seco. ― Você teve uma chance, Alice, poderia ter acabado com isso naquela noite... Eu estaria viva. E, mesmo assim, você escolheu ele.

ㅤㅤㅤAlice apoiou os cotovelos nas coxas e colocou a cabeça entre as mãos, sentindo a textura pegajosa do sangue contra seu rosto. Ela tentava controlar a respiração e o tremor em seu corpo.

ㅤㅤㅤ― O que acha que vai acontecer da próxima vez que ele te encontrar, Alice? ― Amy perguntou, aproximando-se dela novamente. ― Você sumiu por dias.

ㅤㅤㅤEla estava certa.

ㅤㅤㅤAlice sentia que estava prestes a sufocar, como se Amy respirasse todo o ar dentro do carro. Me deixe em paz. As lágrimas pingavam em seu jeans, criando manchas que se assemelhavam a rostos agressivos. O silêncio se estendeu, quebrado apenas pelos sons de seus soluços. Fechou os olhos com força, e ao abri-los novamente, Amy não estava mais lá. O banco do passageiro estava vazio e tudo o que restava era o cheiro de terra molhada e pútrido pairando no ar.

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