1.1 ― a primeira impressão
(capítulo revisado)
ㅤㅤㅤDe olhos fechados, ela ouvia o zumbido das moscas varejeiras voando ao redor de sua cabeça e as patinhas faziam cócegas em sua pele. Precisava avisar o síndico que os insetos estavam se multiplicando, talvez fosse a época do ano. Deveriam chamar o controle de pragas, embora ele provavelmente dissesse, em um tom irônico: "É melhor tomar seus remédios."
ㅤㅤㅤEla tinha a sensação familiar de que não estava completamente sozinha e, ao levantar uma pálpebra, a figura escura no canto do quarto se dissipou assim que foi olhada diretamente. Quase te peguei, filho da puta, pensou, rolando para o outro lado da cama, tateando o lençol frio em busca de um cigarro no maço perdido por ali.
ㅤㅤㅤO cansaço corroía seus ossos enquanto ela se sentava, bocejando profundamente. Não conseguia lembrar da última vez que havia conseguido fechar os olhos por uma noite inteira.
ㅤㅤㅤO quartinho era simples e parecia ainda menor devido à bagunça causado por semanas de dissociação. As paredes tinham um tom antigo de salmão, com uma mancha de umidade no canto do teto, resultado de um cano estourado no ano anterior. O guarda-roupa de madeira, uma vez branco, era acinzentado e descascado, marcado pelo tempo.
ㅤㅤㅤDo lado esquerdo da cama de casal, havia uma cômoda com um abajur, um relógio digital e um cinzeiro que transbordava pontas de cigarro. No chão, o lixeiro estava cheio de maços amassados e embalagens de fast-food. Amanhã eu arrumo, pensou, levantando com um lençol fino enrolado no corpo nu. Com um cigarro torto preso entre os dentes, foi até a janela e a abriu, permitindo que a brisa fria da manhã entrasse. Apoiou-se no parapeito e deu uma tragada profunda.
ㅤㅤㅤOs vestígios da noite ainda se misturavam com o novo dia, e a fumaça que saía de seus pulmões subia pelo ar poluído de Seattle. Seu vizinho no prédio da frente andava nu pela sala de estar, com o uniforme jogado sobre o ombro, como de costume.
ㅤㅤㅤApertou a ponte do nariz, sentindo a cabeça doer como se um inseto estivesse preso entre o cérebro e o crânio, batendo as asas de forma frenética, desesperado por liberdade. Assim como ele, ela também ansiava por isso, mas torcia que o inseto não resolvesse adotar métodos violentos e começasse a ferroá-la. A única forma de ambos se libertarem seria se ela se jogasse pela janela e sua cabeça se partisse contra a calçada, abraçando-a como uma mãe, em uma poça de sangue quente.
ㅤㅤㅤSoltou a ponta do cigarro, observando-a cair e caindo junto à ela. O mundo se movia em câmera lenta enquanto rodopiavam em direção à uma morte certa. Tentador, ironizou os próprios pensamentos. Aquela não seria uma boa maneira de saudar o dia.
ㅤㅤㅤEla precisava de um banho quente para começar com o pé esquerdo.
ㅤㅤㅤOs rostos se formavam no vapor que a cercava, sem que ela se lembrasse de tê-los desenhado, apareciam como se despertassem de um sono profundo. Eram rostos com traços grosseiros, feitos por uma criança raivosa, que flutuavam ao seu redor durante grande parte do dia, sempre a observando. Mesmo que não estivessem fisicamente ali, seus sussurros eram constantes.
ㅤㅤㅤMas estava tudo bem, mesmo quando seu próprio reflexo no espelho parecia distorcido, e ela não conseguia se recordar de sua verdadeira aparência.
ㅤㅤㅤOs cabelos castanhos estavam embaraçados, emoldurando seu rosto pálido demais depois de semanas sem ver a luz do sol. As olheiras imploravam por descanso, mas tudo o que ela conseguia ver era um borrão diante de si. A única característica que permanecia constante em suas memórias, depois de anos, eram seus olhos.
ㅤㅤㅤTia Jenna, que Deus a tenha, tinha o mesmo par de olhos com respingos cor de âmbar que se espalhavam pelas íris azul-escuro, os quais ela usava como referência no espelho. Eram olhos grandes e desconfortáveis, como se escondessem segredos, fazendo as pessoas evitassem encará-la por muito tempo.
ㅤㅤㅤ"Olhos de lápis-lazúli", Jenna dizia. "Nós somos tão especiais, Aly..." Com o tempo, Alice percebeu que o 'especial' que ela tanto falava não era tão bom assim, já que a pobre coitada endoidou e desapareceu sob circunstâncias misteriosas. Alice tentava ao máximo não seguir os passos dela, mas nunca teve contato suficiente para saber se realmente estava no caminho oposto.
ㅤㅤㅤSem se preocupar com o horário, ela fez as palavras cruzadas do jornal da semana anterior enquanto esperava o café ficar pronto. Comeu torradas e traçou um trajeto imaginário entre as queimaduras espalhadas pelas mãos e pulsos, como se aquilo fizesse algum sentido.
ㅤㅤㅤNo trajeto de seu apartamento até o estacionamento do mercadinho 24 horas onde deixava seu carro, fumou um cigarro e, antes de entrar no veículo, fumou outro na tentativa de controlar um tremor que não transparecia em seus membros. Sua lata velha azul estalava estranhamente ao atingir seus potentes cinquenta quilômetros por hora, que ela ignorava. O rosto no banco do passageiro cantarolava a música que tocava no rádio, mas era tão desafinado que ela teve pena de avisar que estava horrível.
ㅤㅤㅤEla não se sentia preparada, mesmo que fosse boa em fingir que estava. Colégios novos sempre a deixavam desconfortável, e ela tentava se convencer de que dessa vez seria diferente: ela iria para as aulas, aprenderia coisas que provavelmente nunca usaria na vida e terminaria o ensino médio sem ter a menor ideia do que o futuro lhe reservava.
ㅤㅤㅤVeja bem, Alice Taylor sempre acabava se metendo em confusão de alguma forma: algumas brigas que ela não sabia como começavam, aulas matadas, e houve uma vez em que alguém dedurou ao professor que ela estava carregando bebida alcoólica na garrafa d'água. Por coincidência, ela realmente estava, mas isso não vem ao caso.
ㅤㅤㅤAlice fez alguns amigos ao longo dos anos, mas suas amizades não duravam muito depois que ela começava a falar sobre as aranhas que subiam pelas calças deles. Às vezes, a culpa era dos próprios pais, que ficavam desconfortáveis ao saber do que aconteceu. Sentiam pena, é claro, mas o medo sempre falava mais alto - como se o que aconteceu tivesse sido culpa de Alice.
ㅤㅤㅤEra final da primavera de 2000, quando Ethan Taylor decidiu matar sua mulher na frente da filha de treze anos e, logo em seguida, tentou matá-la também. Cinco anos se passaram desde esse dia, mas Alice ainda se lembrava perfeitamente da calmaria antes da tempestade. O aperto em seu pescoço nunca desapareceu; ela nunca esqueceria, mas aprendeu a parar de pensar sobre isso.
ㅤㅤㅤE, antes que você pergunte, foi uma noite confusa, os detalhes estão borrados. Então, por favor, não insista.
ㅤㅤㅤAs aulas na Northfield P. High School, lar dos castores, começaram uma semana antes e ela passou esse tempo em companhia dos vultos e de seus próprios pensamentos, que estavam tão altos que parecia não haver espaço para todo mundo dentro do apartamento, e todos ao seu redor precisavam andar curvados, com as cabeças pendendo para baixo e torcicolos.
ㅤㅤㅤTalvez fosse melhor se ela não tivesse fumado tanto antes da aula; o cheiro estava impregnado nos cabelos e nas roupas - nada ideal para causar uma boa primeira impressão.
ㅤㅤㅤO que você sabe sobre boas primeiras impressões, Alice?
ㅤㅤㅤCaminhando pelos corredores, ela não sabia dizer se a sensação de estar sendo observada era real ou fruto de sua mente. Um aluno novo sempre atraía olhares, mas tinha certeza de que todos estavam conseguindo enxergar os rostos que flutuavam ao seu redor, e isso a deixava totalmente exposta.
ㅤㅤㅤVocê foi medicada hoje?
ㅤㅤㅤ― Qual é seu nome? ― A secretária de cabelos curtos e arrepiados perguntou.
ㅤㅤㅤ― Taylor, Alice.
ㅤㅤㅤA mulher estudou seu rosto por trás dos óculos tortos e começou a procurar algo numa pilha de papéis ao seu lado. Assinou o protocolo e lhe entregou sua grade de matérias.
ㅤㅤㅤ― Você está atrasada.
ㅤㅤㅤClaro que ela não estava atrasada naquele dia, mas apenas assentiu, agradecendo antes de sair da secretaria. Grupos de alunos estavam espalhados pelos corredores, encostados nos armários, cochichando e apontando discretamente para alguém. Ela desviou de um grupo que sorria em sua direção, parecendo querer cumprimentá-la.
ㅤㅤㅤ― Estou atrasada ― disse ao se afastar.
ㅤㅤㅤSentou em uma das carteiras do meio da sala, tirou o livro da mochila e uma caneta antes de olhar para o lado por impulso. Não deveria ter feito isso porque nunca sabia o que poderia encontrar, mas a sensação de estar sendo observada de perto a perturbava. Uma garota de rosto infantil, olhos escuros contornados por lápis preto e cabelos tingidos de vermelho berrante a encarava, sustentando seu olhar por alguns longos segundos até que Alice deu um sorrisinho, fazendo-a virar rapidamente e abaixar a cabeça.
ㅤㅤㅤEla fez anotações durante as aulas que nem sempre eram sobre o que estava sendo passado e rabiscou a borda dos livros quando a caneta parava de derreter em sua mão. Constantemente, precisava se lembrar de que aquele seria um bom ano.
ㅤㅤㅤO sinal do almoço tocou e ela seguiu o fluxo de alunos que caminhavam até o refeitório. Pegou uma porção de batatas-fritas, uma laranja e uma garrafa de água mineral. Encontrou uma mesa vazia e, enquanto beliscava seu prato, observava os arredores. Acabou encontrando a garota que havia sentado ao seu lado durante a primeira aula: ela estava de pé, procurando um lugar, com uma expressão perdida o suficiente para Alice se perguntar se carregava aquela mesma expressão.
ㅤㅤㅤEmbora soubesse exatamente onde estava e quem supostamente deveria ser, sentia em seu peito que não estava onde deveria, nem era quem dizia ser.
ㅤㅤㅤMuito prazer, Alice Taylor.
ㅤㅤㅤNovamente, fizeram contato visual.
ㅤㅤㅤO rosto da ruiva enrubesceu como se tivesse levado uma bolada na cara durante a Educação Física, em uma tentativa de ser amigável, Alice achou que havia sorrido em um convite para se sentar ali. Sem sucesso. Os cabelos curtos da garota caíram sobre o rosto quando ela encarou a bandeja e seguiu pelo refeitório em direção ao lado de fora.
ㅤㅤㅤAlice deu de ombros, descascando a laranja com os dedos, molhando-os com o sumo da fruta antes de levá-la aos lábios. Sua primeira tentativa de contato com o mundo não deu muito certo. Os olhos continuavam a percorrer o ambiente em uma tentativa de entender aquele universo adolescente que sempre parecia distante, como se ela não pertencesse ali.
ㅤㅤㅤPerguntou-se onde a garota estranha se sentaria.
Novamente, Alice tinha a impressão de que todos estavam a olhando, mas ninguém estava. Ela era apenas mais uma no meio da multidão, oculta e quieta. Esperava que as coisas continuassem assim, que pudesse sobreviver mais um ano.
ㅤㅤㅤUm bom ano?
ㅤㅤㅤFoi para a sala de biologia antes mesmo do sinal tocar, aproveitando para tirar um cochilo enquanto os outros alunos se acomodavam em duplas nas mesas de tampo de granito. Com a cabeça apoiada na mochila e os olhos fechados, sentiu alguém se aproximar. Real ou imaginário? Algo roçou em seu cabelo, mas continuou imóvel até que uma vozinha delicada perguntou se ela podia sentar ali.
ㅤㅤㅤ― Você é inteligente? ― Indagou, sem se virar ou abrir os olhos.
ㅤㅤㅤ― Bom... Acho que sim. ― A garota respondeu e era possível sentir um leve desconforto em sua voz.
ㅤㅤㅤAlice levantou a cabeça e surpreendeu-se ao ver a ruivinha da aula de história parada ao seu lado. Uma proposta de sorriso surgiu em seus lábios enquanto ela afastava a mochila, abrindo espaço para que a garota se sentasse. Sem muito jeito, a garota retribuiu com um sorriso amarelo e ocupou o lugar ao lado dela.
ㅤㅤㅤ― Então... ― Alice a olhou. ― Qual seu nome?
ㅤㅤㅤ― A-Amy. Amy Greene. ― respondeu desviando o olhar.
ㅤㅤㅤ― Alice Taylor, muito prazer.
ㅤㅤㅤApós aquele horário, tiveram uma palestra de teologia que durou por volta de uma hora. Por coincidência, acabaram seguindo juntas para o auditório e Amy perguntou tímida se poderia se sentar ao seu lado. Alice passou a maior parte do tempo rabiscando os rostos que flutuavam ao seu redor - carinhosamente apelidados de Lock, Shock e Barrel - que a criticavam, alegando que os desenhos não se pareciam nada com eles; e o que era ainda mais irritante: ela os criou, então eles poderiam se parecer com qualquer coisa!
ㅤㅤㅤEntre uma piada e outra sobre a aula, conseguia fazer Amy rir baixinho.
ㅤㅤㅤ― Você fuma? ― Alice perguntou e Amy deu de ombros como resposta.
ㅤㅤㅤLogo estavam sentadas no capô de seu carro com os cigarros entre os dedos, pouco haviam se falado depois que saíram da aula. Alice estava deitada sobre o carro, encarando o céu nublado e se perguntando se choveria aquela noite, já Amy tentava disfarçar as tosses provocadas pelo possível primeiro cigarro de sua vida. Era a primeira vez que estavam assim, mas o silêncio era confortável para Alice.
ㅤㅤㅤA verdade sobre Amy Greene? Ela era uma cleptomaníaca assumida, e ao olhar para aquele rostinho meigo, ninguém jamais imaginaria que aquela garota pudesse roubar a bonequinha havaiana que dançava no painel do seu carro. Foi uma revelação bem inesperada, tanto que Alice considerou falar baixinho sobre os rostos que as observavam, mas deixou a ideia de lado.
ㅤㅤㅤElas se despediram com um aperto de mão hesitante, sem saber se no dia seguinte poderiam sentar juntas no almoço ou só se cumprimentariam com um aceno de cabeça. Ao abrir a porta do carro, Alice ouviu um ruído de metal raspando e viu um arranhão na pintura brilhante do Porsche estacionado ao seu lado. Ela olhou ao redor, certificando-se que ninguém tinha visto e entrou rapidamente no carro, indo embora sem olhar para trás.
não esqueçam de favoritar os capítulos que leram e, caso queiram, deixar comentários. gosto de receber o feedback de vocês, significa muito pra mim <3
att, vdek
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