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A tribo Tote apareceu ao final do terceiro dia de marcha acelerada. Yanka observou o céu. O tempo citado na profecia estava se esgotando rapidamente.
Eros estava mais irritadiço desde a notícia de Nicholas, então Yanka orbitava ao seu redor de forma silenciosa. Ela ainda se sentia hesitante sobre Eros, mas esse sentimento diminuía um pouquinho todos os dias, a cada toque e olhar que trocavam.
Mesmo com os últimos acontecimentos e o humor taciturno de Eros, ela se surpreendia com a calma e praticidade do grande guerreiro, enquanto se revezavam entre vigiar Ícaro e Alexander e treinar diariamente com seus colares.
Apesar dos homens acharem estranho que aqueles pequenos objetos pudessem causar tanto estrago, em poucos dias acostumaram-se a ideia, chegando a zombar uns dos outros quando algum deles tinha o azar de ser atingido pelos poderes dos colares.
Seus constantes esforços significaram alguma evolução, e Yanka tinha confiança que até chegarem à tribo Tote, conseguiriam dominar os colares o suficiente para enfrentar o que quer que estivesse esperando-os.
- Que tribo linda! - Tiro avançou, saltitando contente. Ele apontou um dedo – Aquilo é água?! - Kaiko riu com a animação do rapaz.
- A tribo Tote foi construída ao redor de um oásis
Tote parecia um paraíso azul e verde, aninhada no meio das dunas douradas do Continente. Em seu centro havia uma enorme piscina natural de água cristalina, com corredeiras e pequenas cascatas espelhadas. Palmeiras, rosas do deserto, cactos e vegetações deslumbrantemente belas se espalhavam pelas suas margens, guardadas por homens fortemente armados.
- Haha, hoje é dia de banho rapazes! - Catri comemorou, batendo na barriga ampla. Comemorações irromperam dos homens.
- Não podem. - Kaiko apertou a boca e os homens se calaram – A água é aquilo que mantém a tribo Tote viva. O acesso é tão restrito que qualquer pessoa estranha que tentar furar a guarda vai ser imediatamente morta.
Os homens ficaram deprimidos e Yanka desconfiava que se a tropa de Eros achasse mais uma fonte de água proibida, ficariam loucos. Mordeu os lábios analisando Tote. A tribo era dividida em quatro quadrantes, localizados ao redor do oásis: o primeiro era lotado de tendas residenciais, pontinhos coloridos se amontoando no espaço; o segundo era o que parecia um grande mercado, com fios e bandeirolas se ligando acima da cabeça dos transeuntes; o terceiro era um anfiteatro grande, feito de pedras e o quarto quadrante era uma enorme tenda clara. Camelos, antílopes e pessoas entravam e saiam da tenda.
Kaiko fez sinal para que todos se reunissem. Se agachou e começou a desenhar o mapa da tribo na areia.
- Como todos sabem, aqui se encerra a profecia. - Eros começou. Durante o caminho, havia conversado durante horas com Kaiko até terem um rascunho de um plano - Pelo que conseguimos conversar com Bruxo da Árvore, é aqui que devemos juntar os três colares, que contém os poderes das Mães desse Continente.
- Por que devemos juntar os colares? - Catri perguntou.
- Para poder acordar minha tribo – Yanka respondeu – E para acabarmos com o poder macabro que os Anciões conseguiram nos últimos anos.
- Aqui – Kaiko apontou para cada um dos quadrantes, e os homens se inclinaram para conseguir enxergar melhor – O primeiro quadrante da tribo é uma área residencial. O segundo, é onde o comércio acontece. A tribo Tote é a tribo regente, então é normal que ela seja a rota de muitos comerciantes, e que tenha de tudo para vender. O terceiro quadrante é o local de reuniões. Todos os anos os líderes das tribos são convocados para prestar conta, mas muitas outras reuniões acontecem ali. O quarto quadrante e talvez o mais importante, é onde todas as decisões são tomadas. Tudo que acontece no Continente é relatado no quarto quadrante, e é ali que as ordens são expedidas. Além disso, é a tribo Mãe que controla a produção e criação de animais, joias, armas, remédios e alimentos, feitas nas tribos responsáveis, e sua respectiva distribuição. E por fim, a tribo Tote é a única tribo do continente que não é regida apenas por um líder, mas por um conselho de líderes.
- Certo... e o que precisamos fazer? - Tiro perguntou, espelhando a confusão que estava no rosto de todos eles. Eros ergueu o colar azul.
- Aparentemente, os Anciões têm o terceiro colar. Devemos achá-lo e descobrir quais são os seus planos.
- E como iremos achar?! - Gleitor coçou a cabeça.
Yanka folheou o livrinho.
- Aqui diz que o colar preto é capaz de controlar todo tipo de vida. Também diz que podemos nos conectar com os colares, desde que o ele esteja em seu elemento natural...
- O elemento natural do colar preto seria o que? - Tetrum perguntou.
- Vida. - Eros lançou um olhar significativo a Kaiko. Ele segurou a mão de Yanka – Acreditamos que Velho Urso usou o colar preto combinado com os símbolos para enfeitiçar tribo Cati. Portanto, achamos que talvez...
- Talvez o que, Eros?
- Baseado naquilo que Velho Urso falava para sua tribo, desconfiamos que talvez o objetivo dos Anciões seja dominar o Continente.
- Sim, isso eu sei, mas porque...
- Fazendo um exército, Yanka – Yanka franziu a testa, processando o que ele falara. Não fazia sentido aquilo... mas no fundo ela sabia que fazia. O modo como Velho Urso encantara sua tribo, como eles pareciam completamente servis, o suficiente para quererem jogá-la no vulcão, os discursos exaltados de Velho Urso sobre querer dominar as outras tribos...
Yanka tapou a boca, olhando de Kaiko para Eros. Então era isso que eles tanto sussurravam nos últimos dias.
- Quer dizer... que...
- É apenas nossa teoria – Kaiko explicou - Não há como saber com certeza, mas juntando o poder do colar com o que vem acontecendo nos últimos anos, é natural que a gente pense que tudo faz parte de um plano, e não fruto de coincidência.
Yanka tinha os olhos arregalados. Inconscientemente, Eros deslizou o braço pela sua cintura, apoiando o peso dela. Mesmo que todos tivessem concentrado sua atenção nele, ela sentiu que era a única que tinha o foco total de Eros.
E isso fez toda a diferença.
- E como iremos achar o colar? - Nicholas perguntou. Eros sorriu, olhando para cada um de seus soldados.
- Alguém aí está a fim de dançar?
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Yanka se sentia meio letárgica enquanto se vestiam.
Estavam esperando a noite cair próximos à cidade, escondidos em uma reentrância natural. Ela havia se esquecido completamente do festival anual de casais, e a cidade já estava em polvorosa, o quadrante do comércio acendendo suas luzes e se preparando para a festa.
Eles haviam se vestido de forma que chamassem menos atenção possível, os homens de Eros escondendo os braços, com roupas que Yanka e Kaiko haviam conseguido mais cedo. Seus rostos foram pintando e enfeitados para disfarçar sua brancura.
- Acha mesmo que eles estarão aqui? - Ela ouviu Tiro perguntar a Kaiko enquanto lutava desajeitadamente com um turbante de cor marfim.
- Se nossa teoria de que Velho Urso está criando um exército estiver certa, então sim. O festival reúne milhares de pessoas todos os anos, então seria quase impossível alguém sumir e ser notado imediatamente.
- E se não estivermos certos?
- Então teremos que criar outro plano.
Ela apoiou a cabeça nas mãos. A ideia da sua tribo ter sido enfeitiçada pelo colar que fora feito para protegê-los... sua mente foi tomada pela imagem do olho estraçalhado de Kaiko... todas as pessoas mortas na tribo Saqua, as crianças da tribo Yeta, sua própria tribo, nem viva, nem morta, as Mães do continente, a mãe de Eros...
Parecia que tudo iria simplesmente lançá-la numa torrente de desespero.
Ela não sabia o que fazer, ou o que pensar. Eles haviam chegado tão longe, descoberto tanta coisa... mas ainda pareciam não saber de nada. Como iriam combater um mal desse tamanho, se nem sabiam onde encontrá-lo?
Mãos deslizaram por baixo de seus joelhos e por trás de suas costas, e de repente ela estava pressionada contra um peito familiar e caloroso.
- Não preciso que me conforte – Ela protestou.
- Eu sei – Eros suspirou, se recontando na parede da reentrância. - Não estou te confortando.
- E o que está fazendo? - Eros apertou a bochecha contra o cabelo dela, e Yanka não resistiu a vontade de deslizar as mãos pelo seu pescoço.
- Estou entrando no personagem.
- Que personagem?
- Seu marido.
Yanka descobriu que não sabia mais falar. Ela se empertigou e o olhou nos olhos. Ele tinha se vestido com um turbante azul e uma capa preta, os olhos azuis ressaltados pela cor vívida. Tinha um sorriso pacífico no rosto, apesar da expressão ainda estar pesada pelos últimos dias. Yanka poderia morrer ali mesmo nos braços daquele homem, e mesmo assim ela não conseguiria desviar o olhar dele.
- Não vai falar nada, panemorfi?
Ela piscou os olhos aturdidos. O safado à sua frente tinha uma expressão perspicaz e ela bateu em seu peito, se esticando para pegar a tinta que Kaiko havia conseguido naquela tarde.
- Eu...
- Eu sei. Você está hesitante sobre mim – Ele disse quando Yanka começou a pintar seu rosto. Ela mordeu a língua, pensando no que dizer.
- Aqui no Continente, parceiros são tratados como algo passageiro. - Ele fechou os olhos e ela passou o pincel suavemente em suas sobrancelhas, contornando-as. Ficou grata por ter algo com que se ocupar, ou não conseguiria ter aquela conversa – O fruto do amor de duas pessoas é permanente. Eu... eu cresci vendo minha mãe sendo tratada assim. Mesmo que meu pai fosse louco por ela... ele ainda era um líder. Líderes devem dar exemplo, e meu pai fez isso.
- Então... você cresceu achando que o amor deve ser passageiro. - As mãos dele apertaram a cintura de Yanka. Ela riu, desgostosa.
- Eu cresci admirando Kira. Ela lutou com todas as forças para se tornar a líder, para não ser obrigada a ter alguém que não amasse. Sabe por que ela não queria?
- Não faço a menor ideia.
- Porque Kira não queria viver sem amor o resto da vida com alguém desconhecido. Ela não é assim. Kira queria achar o amor quando quisesse, do jeito que fosse melhor.
- Mas ela se tornou uma líder.
- Líder ou não, ela quebraria qualquer regra se achasse a pessoa certa.
- E você, Yanka? O que quebraria para ficar com o amor?
Ele abriu os olhos, e ela prendeu a respiração. Arabescos dourados e pretos cruzavam em seu rosto, ressaltando suas maçãs, sua boca carnuda, o nariz reto e a mandíbula forte.
Ela pensou por algum tempo. De fato, o que ela estava disposta a quebrar para estar com Eros?
Ela estaria disposta a quebrar as regras? A tratá-lo como algo permanente?
- Uau! - Tiro se abaixou, encarando o rosto de Eros - Devíamos ter deixado Yanka nos pintar! Kaiko me fez parecer mais feio do que já sou!
- Você é feio sem precisar se esforçar! - Kaiko gritou de volta, e Catri o pegou pelo pescoço, bagunçando seus cabelos. Os homens se amontoaram, rindo e bagunçando. Nicholas permaneceu orbitando ao redor de Ícaro e Alexander, que permaneciam afastados do grupo.
Eros riu, olhando com satisfação seus homens.
- O que você pintou para ter ficado tão bom? - Ela lhe beijou a testa.
- Pintei suas conquistas. - Eros baixou os olhos, parecendo triste.
- Na minha história só tem sangue e morte, Yanka. Como pode sair algo bonito disso?
- Se sua história só tivesse isso, Eros – Ela se levantou, puxando-o. Segurou sua mão, sentindo sua energia ser renovada - Você não teria começado essa jornada. Um assassino não entraria nessa loucura. Não se sacrificaria. Não seguiria em frente, mesmo com todas as dificuldades que encontrou. Você, Eros, é esse tipo de pessoa, e se não conseguir falar isso, deixe que suas tatuagens falem.
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