9. Medicina Imperial

Soldado ferido! — a senhora Tiana gritou. Seus cabelos negros estavam desgrenhados e despenteados, e a luz das tochas enrubescia suas faces, dando-lhe a aparência de alguém que tinha acabado de trocar carícias com um amante. — Lana, você precisa descer imediatamente! — sua última palavra ressoou nas vigas e pareceu preencher todo pequeno quarto de empregada.

Lana havia sido arrancada de seu sono com um supetão. Assustada, ela saltou da cama e arrancou a camisola com um gesto rápido. Entrou depressa em suas roupas de criada e mais depressa ainda desceu as escadas. O consultório estava completamente escuro, mas ela conseguia ouvir os gritos de dor do ferido vindos do cômodo adjacente. Afobadamente, Lana empurrou as pesadas portas duplas e penetrou na balbúrdia. 

Os archotes acesos na parede do fundo alargavam as sombras dos leitos de metal até a metade do caminho até as portas. A extremidade mais distante do longo cômodo estava perdida em sombras, e Lana não pode evitar imaginar que mil olhos estavam escondidos no escuro. No leito mais próximo havia um soldado sentado, segurando um pedaço de tecido contra o olho direito enquanto filetes de sangue lhe desciam pelas bochechas. A parte mais difícil, entretanto, parecia estar se desenrolando mais ao fundo, onde dois outros soldados tentavam amarrar em uma cama um homem que gritava freneticamente. Ao se aproximar, Lana sentiu o odor do sangue invadir suas narinas, e o estômago deu uma revirada brusca quando ela olhou para o ferido. A perna esquerda dele tinha sido esmagada, e longos pedaços de carne despedaçada dividiam espaço com fragmentos pontiagudos de osso.

— Lana. — o doutor parecia profundamente aliviado em vê-la. — Eu preciso que me ajude. A Tiana é sensível para coisas como essa, então essa noite seremos só nós dois. — e atirou um par de luvas de couro para ela.

— Certo, doutor. — Lana assentiu, calçando as mãos rapidamente. — Vou preparar a infusão de ervas para adormecer o paciente.

— Não temos tempo para isso, querida. Esse daqui já perdeu muito sangue. Traga a minha serra e prepare os ferros quentes e os panos limpos. Precisamos fazer agora.

A urgência trouxe um jorro de energia necessário, pois Lana não parou um momento sequer. Primeiro, tratou de trazer a longa serra de amputação para seu mestre. Enquanto ele iniciava a operação, ela reavivou as chamas do braseiro e meteu duas tenazes entre as brasas ardentes. O som do fogo crepitando ao redor do metal se misturou ao de osso sendo cerrado e se perdeu no ar em meio aos ruídos de dor emitidos pelo paciente. Em uma bacia de metal, Lana imiscuiu algumas ervas numa mistura de partes iguais de água e vinho, e depois desfez um pedaço de linho em tiras, mergulhando uma por uma no líquido avermelhado. Quando chegou a hora de cauterizar a ferida aberta, Lana percebeu que a face do homem estava vermelha e coberta de lágrimas. Assim que o metal quente tocou a sua pele, ele desmaiou. Ela detestava profundamente o odor de pele queimada, mas ficou aliviada de poderem terminar o procedimento em paz. O doutor Lewie a encarregou de finalizar os curativos e procedeu para a extração do olho do outro soldado ferido, que a essa hora já estava mais do que anestesiado. 

As noites não costumavam ser tão agitadas.  Grande parte dos pacientes possuía origem nobre e se apresentava para tratar desordens mais costumeiras, geralmente durante o dia. No decurso do treinamento de Lana, o acontecimento mais emocionante foi a descoberta da gravidez de uma das nobres consortes. Apesar disso, seu mestre não descuidava. Desde o primeiro dia, ensinou-a tudo que era necessário para que ela pudesse auxiliá-lo no tratamento das grandes e das pequenas feridas. Naquela altura do campeonato, Lana já sabia melhor do que ninguém como colocar ossos quebrados no lugar e realizar a sangria. Mas, mesmo depois de ter dissecado cadáveres, algumas visões ainda a estarreciam. Nada na vida havia lhe preparado para presenciar uma amputação ou a retirada de um globo ocular, por exemplo. Ainda sim, Lana não se sentia mais particularmente enojada ou aturdida quando tudo terminou. Talvez ela tivesse finalmente obtido a famigerada frieza médica. 

— Você se portou bem hoje. — o doutor Lewie comentou enquanto ela o ajudava a retirar o avental. — Apesar de ser sua primeira experiência desse tipo, você não ficou sensibilizada e me ajudou no que foi preciso. Estou muito orgulhoso de você. — quando ele se virou, havia um sorriso gentil em seus lábios. Lana retribuiu.

— É uma honra poder servi-lo, senhor.

Lewie Yohan era bem mais novo do que os médicos costumavam ser e quem o via não se atrevia a dizer que ele era muito mais velho do que Lana. Apesar disso, ele já era o Médico Imperial e acumulava muitas honras concedidas pelo próprio Imperador. Havia demonstrado uma aptidão natural para o exercício da medicina quando ainda era muito jovem e seus pais nunca pararam de estimulá-lo. Se casou com Tiana logo após a sua formatura na cátedra, e juntos moravam na capital desde então. Havia servido como médico particular da frágil Princesa Zulla durante alguns anos antes de salvar a vida do Oitavo Príncipe de uma infecção fatal. Foi recompensado sendo alçado ao mais alto posto que um médico poderia ter na corte, e desde então levava uma vida livre de reclamações. Antes de conhecê-lo melhor, Lana esperava não gostar dele. Não tinha como se afeiçoar a alguém que se recusava a cuidar dos mais necessitados, tinha? 

Parece que tinha. 

Lewie e Tiana se mostraram muito gentis e solícitos desde o primeiro momento e nunca a destrataram. Pareciam desconhecer verdadeiramente o receio dos criados de nível inferior de visitarem o Curatório e passaram a incentivar essas pessoas depois que Lana lhes revelou esse fato. Outrossim, Lana gostava bastante de ser tratada como uma verdadeira amiga pelos seus mestres, que dividiam sua própria comida com ela e haviam até lhe dado um quarto particular. Existiam, ainda, outras vantagens: Lana era muito mais respeitada agora que era assistente do doutor e a natureza do seu trabalho a levava a visitar o Palácio Central constantemente. Estar tão próxima da família real não era algo especialmente deleitoso, mas era extremamente útil para seus planos.

Ao amanhecer, Lana tornou a descer as escadas para verificar os feridos. O que perdera o olho continuava dormindo profundamente, mas o amputado estava acordado devido a febre. Lana colocou um pano úmido em sua testa e lhe deu chá frio de freixo com valeriana, mas ele estava tendo muitas dificuldades para engolir. Quando Lana fez menção de se afastar da cama, ele a agarrou pelo pulso e a encarou profundamente com seus olhos febris.

— Estou diante de um anjo, senhora? — ele perguntou roucamente. — Você veio me levar para junto de minha mãe e terminar esse sofrimento?

Lana segurou as mãos calejadas do homem com gentileza e lhe deu um sorriso terno.

— Não, senhor. Creio que viverá muitos anos ainda. Logo mais, ficará tudo bem. Eu te juro.

— Que espécie de vida terei eu sendo um amputado?

Com amabilidade, ela acariciou os longos dedos de sua mão.

— O senhor tem belas mãos e aposto que possui um intelecto a altura. Agora por causa de sua ferida, o senhor deve se aposentar da arte guerra e se ocupar de coisas melhores. Seus dedos são perfeitos para a música e para a escrita e aposto que podem dar muitos usos para um homem como o senhor no Salão de Cultivo Mental.

— Fui um guerreiro a minha vida inteira, senhora, como poderia aprender o trabalho de um eunuco?

— É trabalho de homens dignos, senhor, assim como você. Mas se está descontente, use a pensão do Imperador para ver seus filhos crescendo e, quem sabe, viajar para ver os lugares bonitos desse mundo.

O homem tencionou uma resposta, mas o sono começou a pesar seus olhos e ele rapidamente adormeceu. Ele não parecia ser uma pessoa ruim e vê-lo naquela situação deixava Lana triste, mas não havia nada que pudesse ser feito. Tudo que cabia agora era lhe dar a melhor recuperação possível e, se fosse executável, ajudá-lo na adaptação em sua nova vida. 

O general Heng Maldravos veio ver o médico logo depois que Lana terminou de servir o café da manhã. A face avermelhada e coberta por uma fina película de suor do lorde já antecipavam que havia algo errado, então o doutor não pareceu ficar surpreso quando descobriu que havia uma ponteira de seta alojada em seu antebraço. Apesar da dor que a feriada poderia estar lhe causando, Heng manteve uma expressão plácida enquanto o corpo estranho era removido de sua carne. Sua face permaneceu inalterada mesmo quando a ferida foi desinfetada com água e sal, mas ele esboçou um leve sorriso quando o doutor Lewie encarregou Lana da sutura. 

— Você tem mãos gentis, Lana. — Heng comentou. — É muito boa nesse trabalho.

— É uma honra poder atendê-lo, senhor. — Lana perpassava uma boa agulha de osso pela carne ferida, costurando-a com tripas de ovelha. — A última noite foi bastante agitada. O que houve?

— Tivemos que lidar com alguns bandidos nas proximidades do Palácio Imperial. Os malfeitores foram pegos, mas não antes de matar e ferir alguns dos nossos. — ele suspirou profundamente. — Na confusão, derrubaram uma banca de artífice sobre o Laios e ele acabou ficando preso sob seu cavalo e soterrado nos escombros. Fiquei sabendo que ele perdeu a perna.

— Sim, senhor. — Lana disse tristemente. — Faremos por ele tudo que estiver ao nosso alcance. — apenas mais um ponto e estava pronto. Lana arrematou a linha e cortou o fio com proficiência. Cuidadosamente, cobriu o ferimento com uma atadura para evitar infecções. — Não deveria ter esperado tanto para vir até nós, senhor. Não gostaria que a sua ferida infeccionasse.

O General Heng deu de ombros.

— Meus homens precisam de cuidados.

— Assim como o senhor.

Heng parecia aliviado em finalmente poder se levantar e esticar as pernas. Lana o ajudou a vestir a pesada capa de pele.

— Daqui a alguns dias, será preciso que o senhor retorne para que possamos avaliar a cicatrização do ferimento.

— Eu não estarei aqui daqui alguns dias, Lana. — uma leve sombra de cansaço percorreu seu rosto. — O vilarejo de Noqua foi atacado e o Imperador pretende enviar suas tropas para restabelecer a paz. Pode ser uma habitação pequena, mas fica nos limites do nosso reino e não deve ser abandonada. 

— Sendo assim, eu espero que a paz possa ser feita. — a tensão por trás do sorriso de Lana era bem visível. — Estarei rezando pelo seu retorno.

Heng a olhou com tanta intensidade que ela sentiu suas faces arderem.

— Amanhã, venha jantar comigo. — Heng pigarreou, como que para se corrigir. — Conosco. Nina sempre fala de você e será uma honra desfrutar de sua companhia. 

Ele não precisou de mais palavras para convencê-la. Com um aperto de mão eles se despediram, e então o compromisso estava selado.

Depois da agitação noturna, a tarde transcorreu de forma estranhamente pacífica. Além de ajudar no cuidado aos pacientes que já estavam internados no Curatório, Lana precisou sair apenas para entregar alguns medicamentos. Ajudou Tiana a colher e secar as ervas que eram utilizadas nos tratamentos, e depois acompanhou o doutor Lewie na verificação obstétrica da Consorte Zimma. Ao entardecer já estavam de volta e prontos para jantar.

O sono envolveu seu corpo assim que ela se deitou na cama. Naquela noite, Lana sonhou com um bebê que chorava a plenos pulmões. O odor da morte exalava implacavelmente dos corpos que cobriam o chão e haviam moscas por toda a parte. Por mais que procurasse, ela não sabia de onde vinha o choro, então teve que olhar morto por morto até descobrir sua origem. Rostos conhecidos a fitavam com seus olhos sem vida, e faces anônimas pareciam julgá-la com seus lábios retorcidos. Quando ela finalmente localizou a criança, sentiu seu coração arrefecer. O bebê se contorcia, envolto nos braços de um homem que havia morrido com um chifre enfiado no peito. O defunto já estava em um nível avançado de decomposição e larvas percorriam sua estrutura, debruçando-se sobre ele e sobre o bebê.

A parte mais terrível era sua face, que permanecera estranhamente intacta.

O homem tinha o rosto do Príncipe Herdeiro.

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