28. Velatusta
A floresta tragou Lana para dentro de suas entranhas congeladas. O medo penetrou em sua pele juntamente com o ar gélido. Ela conhecia aquele lugar. Cada árvore coberta de gelo parecia ter o rosto de uma velha amiga e ela sabia quais terrores a espreitavam para além do limite das coníferas.
Tentou correr na direção contrária. Dedos de aço se fecharam ao redor de sua orelha antes que ela pudesse se mover. A mão obrigou-a se virar e fitar seu portador.
— Mãe?! — Lana estava surpresa.
— Criança tola. — Fenora repreendeu. — Ousa fugir depois de tudo que fiz por você? Será a grande rainha somente devido ao meu esforço. Você não tem o direito de me recusar e recusar esse posto!
A rainha envergava um longo penhoar tingido com o azul da realeza sobre uma túnica branca. O tecido estava debruado com um bordado dourado nas mangas e no peito. Lana sabia que a mãe estava representando a sua casa de casamento, mas o cabelo cacheado e escuro da rainha estava amassado no lugar onde outrora a coroa repousara.
Lana engoliu em seco e baixou a cabeça. Notou que seus pés eram muito pequenos, meio enfiados na neve.
— Mas, mãe... Eu tenho tanto medo!
Os dedos de Fenora estalaram contra a face de Lana.
— Você é fraca, tola ou só muito pequena? — a rainha questionou com a voz cheia de frieza. — O medo nada deveria ser diante do destino! Eu sujei minhas mãos de sangue por você. Eu fiz tudo que era preciso. E ainda sim você me renega. Não fuja do papel que eu escolhi para você!
— Mas...
— O tempo passa, menina. — uma voz grave soou em suas costas.
Quando Lana se virou, seu pai aguardava por ela. O rei vestia sua armadura comemorativa, com intrincados entalhes que contavam a história de seu país gravados diretamente no aço, sobre camadas e mais camadas de pele. Nas costas, a longa pele de ursa branca se estendia até quase tocar o chão. Estava vestido como um soberano devia se vestir, mas a coroa também se ausentava de sua cabeça.
— Eu murcho para que você floresça. — ele continuou. — E, toda vez que seu brilho aumenta um pouquinho, o meu diminui dez vezes mais.
Não havia ressentimento ou ódio em sua voz. Apesar disso, Lana estava assustada. Como Elbor poderia dizer algo assim? Ele ainda parecia tão jovem, até mais do que ela se lembrava.... Não havia nenhum fio prateado em sua longa barba e o cabelo crespo e escuro, atado em tranças de guerra, não trazia nenhuma marca do tempo.
— Mas, papai! — ela choramingou. — Você prometeu que ia viver mil anos!
— Mil anos e mil dias são a mesma coisa diante do fim de tudo que termina. — ele respondeu. — Por que você teme seu destino, criança?
— Se eu falhar, tudo estará perdido.
— O sol não se levanta e deita conosco, Lana. — o tom de voz do rei estava muito mais suave agora. — Falhar não te impede de cumprir seu destino. A única coisa que está no seu caminho é o medo. Se quiser suportar o poder, não pode temê-lo.
— Mas se eu falhar? — a pequena Lana tornou a insistir. — E se mesmo assim eu falhar?
— Isso é o medo falando por você. Se pretende ser uma grande rainha, deve aprender a falar por si mesma. O medo é o algoz da alma, Lana.
— O medo também é o algoz de todos os reis. — uma segunda voz disse.
Atrás dela, a floresta tinha se enchido de sacerdotisas. Embora não conseguisse determinar um número exato, Lana reconheceu imediatamente suas túnicas de couro de corsa tingido sob as peles que lhes protegiam do frio. Era difícil diferenciar suas faces, pois todas aquelas pareciam muito semelhantes entre si. Exceto por uma, que vinha na frente. Esta destacava-se por ser mais alta que as demais e pela postura imponente, típica de uma líder. A vestimenta também diferia: sobre uma túnica completamente branca, usava uma longa capa feita de pele de ursa branca, enfeitada nos ombros com as penas alvas e longas das corujas de inverno. Uma linha de tinta azul atravessava sua face de ponta a ponta, passando por cima do nariz, enquanto uma coroa sobressaía, cruzando a testa como um raio de prata pura encentrado com uma pedra da lua.
— Pequena criança da terra. — a papisa chamou com uma voz antiga e grave. — Até mesmo o cumprimento das obrigações familiares deve partir de uma escolha. Se recusar seu papel, pode morrer aqui e agora em anonimato e renascer como parte da natureza. Se aceitar o caminho proposto, poderá encontrar a benção de um destino glorioso ou o descanso de uma morte honrada. Para onde sua alma deseja rumar, pequena menina?
Lana tinha plena consciência de que aquelas palavras seriam pronunciadas antes mesmo delas serem ditas, pois ecoavam em sua memória como o fruto de uma experiência que transcendia o tempo. Era como se ela estivesse vivendo tanto no antes quanto no agora, enlaçando aquele momento no destino de todas as coisas.
Por causa disso, ela também sabia que as mulheres diante dela não eram sacerdotisas comuns, como que eram as encontradas nos templos lunares. Eram seres místicos, nascidos em corpos masculinos, mas agraciados com a feminilidade pela deusa. Tal dádiva lhes permitia representar no plano físico a verdadeira essência de suas almas, numa singularidade que as aproximava mais do Outro Mundo do que qualquer outro ser humano. Elas guardavam consigo os saberes indizíveis, mais antigos que o próprio conhecimento sobre a vida e a morte. Eram essas mulheres que forjavam os destinos dos reis, detentoras de um poder capaz de moldar o curso de tudo que respirava.
— Vou trilhar o mesmo caminho que o meu pai trilhou. — Lana respondeu com a voz trêmula, reunindo a última réstia de coragem que ainda habitava seu peito.
A papisa assentiu. Todas elas assentiram. A líder fez um gesto para que ela se aproximasse e, ao chegar mais perto, Lana percebeu que ela segurava um corno espiralado.
— Filha da Terra. — ela disse com uma voz mais profunda que o tempo. — Coma e cresça.
Lana notou que as mãos da sacerdotisa estavam cobertas por tatuagens azuis tanto na superfície quanto na parte interna, mas ela não teve tempo para descobrir quais eram os símbolos. Soltando o ar de seus pulmões, ela segurou o corno com as duas mãos e levou o corno aos lábios. A bebida tinha um sabor forte e inebriante, distinto de tudo que Lana já havia saboreado. Evitou fazer uma cara feia, mas sentia a cabeça pesada ao terminar.
O mundo ao seu redor começou a girar, transformando as árvores em um emaranhado de cores enquanto o ar se enchia de pontos cintilantes e vívidos.
As sacerdotisas começaram a cantar. Lana não conseguia identificar o idioma, mas sentia pelo peso das palavras que era algo ancestral, cheio de poder. A tontura pareceu piorar. Mil mãos a acudiram antes que ela caísse. Uma mulher tirou seus sapatos, mas seus pés estavam imunes a dor da friagem. A papisa se aproximou e a cobriu com um véu.
Alguém segurou sua mão direita. Outra pessoa segurou sua mão esquerda. Mãos fortes pousaram em seus ombros para mantê-la de pé. Começaram a andar. O canto aumentou cada vez mais, até preencher todo universo. Quando deu por si, Lana também cantava.
Caminhava em tal sincronia com as sacerdotisas que mal percebia seus próprios passos. Se alguém afirmasse que seus pés exploravam o vazio do universo e deixavam marcas sobre planetas distantes, Lana não duvidaria. A harmonia de seus movimentos estava tão entrelaçada com as mulheres ao seu redor que o senso de realidade parecia diluir-se, criando a sensação de uma jornada transcendental que ultrapassava os limites conhecidos.
Estou no transe mágico, ela se deu conta em dado momento. Porém, como todos os outros pensamentos, esse a perpassou sem fazer alarde. Nada no mundo era mais importante que a caminhada e a música. Mesmo o poder e o dever pareciam distantes agora.
Mesmo assim, Lana percebeu quando a textura do mundo se transformou sob seus pés. Seus dedos deixaram de tocar a relva congelada e pararam de afundar na neve macia. Agora, podia sentir um gelo sólido e infinitamente mais frio sob suas solas, embora a intensidade da temperatura se mantivesse à margem de sua percepção imediata.
A música tinha parado. A voz grave da sacerdotisa soava, como um eco distante que tentava despertá-la. Mas esse era um despertar suave, desprovido de potência. Vozes desconhecidas saudaram e concordaram na escuridão.
Um tremor percorrer a pele de Lana quando a desvelaram de uma vez só.
A intensidade da luz das tochas a cegou instantaneamente. Lana desviou o olhar para baixo e piscou várias vezes, lutando para restaurar sua visão. Foi então que percebeu estar envolta por uma fina túnica branca, com os braços e as pernas desnudos cobertos por símbolos azuis.
Diante dela, um grupo aguardava, mas Lana não conseguia distinguir quantas e quais eram as pessoas que o formavam. Apesar disso, ela conseguiu identificar o semblante de seu pai, flutuando de maneira quase etérea sob a luz da tocha que ele portava. Ao notar o olhar da filha sobre si, Elbor respondeu com um sutil aceno de aprovação, num estímulo silencioso. Ao fazer isso, a coroa do Rei do Inverno em sua cabeça cintilou e Lana se deu conta de que ela brilhava mais que todas as chamas que ali vibravam.
Lana estava de pé sobre um rio congelado. Embora não pudesse visualizar as montanhas que a cercavam, ela sabia que aquelas águas congeladas tinham sido testemunhas silenciosas da ascensão e queda de todos os reis do Norte. Era conhecido pelos homens como Val Andrarian, um nome que traduzia-se como "sob o passo de todos os homens" em vshikka, a língua materna do norte.
Tudo naquele momento estava impregnado de história e significado, ressoando o destino inescapável que a aguardava.
A papisa tomou a frente e a apontou com a tocha para um orificio aberto no gelo. As águas em seu interior pareciam tão escuras quanto o firmamento sobre a cabeça de Lana.
— Filha da Terra. — a maior entre as sacerdotisas disse. — Mergulhe e encontre seu destino. Nade até que as águas a reclamem para si ou que você retorne como velatusta.
Aquela palavra havia permeado os piores pesadelos de Lana até então, assim como seus sonhos mais auspiciosos. Em vshikka, Velatusta traduzia-se como "digno de reinar", mas seu significado não se esvaziava naquela mera definição. O Velatusta continha em si a plenitude de uma alma abençoada pela deusa, marcado pelo merecimento de uma existência elevada que transbordava na regência de outros destinos além do seu próprio. Assim, o rei ou rainha do Norte não era alguém que podia ser simplesmente escolhido pelos homens, mas que precisava receber o aval divino para governar.
Assim, diante de Lana, não havia sido colocada apenas a abertura para as águas de um rio, mas a entrada para uma provação ancestral e desafiadora. Sobreviver significava ser digna, enquanto o fracasso a condenaria a uma morte em desonra. Naquele momento crucial, Lana não apenas faria uma travessia física, mas um rito de passagem onde a validação da deusa estava intrinsecamente ligada à sua capacidade de triunfar.
Seus pequenos pés infantis a guiaram até a beirada. Um silêncio profundo dominou o ambiente. Lana tinha plena consciência de que todos ao seu redor, de uma forma ou de outra, mantinham a respiração suspensa. Uma tensão tangível impregnava o ar, carregando consigo a expectativa coletiva. O medo pulsava em seu coração, no entanto, Lana sabia que precisava resistir a essa emoção. Qualquer sinal de hesitação seria interpretado como fraqueza, comprometendo o respeito que ela esperava conquistar ao sobreviver.
A dormência causada pelo transe abandonou seu corpo assim que a água a tocou. A temperatura extrema penetrou em sua pele como as garras de um monstro, mais afiadas que mil adagas de aço puro. Sentiu o impulso de gritar, mas a friagem tinha selado sua garganta. Por um momento, Lana nada fez além de se debater, tentando se recuperar da dor e do susto. Tentava impulsionar o corpo para cima, mas cada movimento fazia com que ela afundasse cada vez mais.
Seus movimentos foram se tornando mais lentos. A desordem inicial tinha sugado suas energias sem impedir que seus membros congelassem. O entorpecimento rapidamente se espalhou, envolvendo seus músculos numa camada de gelo. Lana estava claramente sendo derrotada e seu corpo começava a falhar diante do desafio do frio intenso.
Lana se deu conta que não podia mais lutar. Arder no gelo era pior que queimar no fogo. A dor imobilizante bloqueava todos os seus impulsos mentais e seus membros não se moveriam mesmo diante do maior desejo. A água exercia uma força inexorável, arrastando-a para baixo, enquanto a luz que marcava a superfície se afastava cada vez mais, transformando-se em uma visão distante e fugidia.
Eu falhei, meu pai.
Mil luzes coloridas irromperam no mundo, despertando-a. Primeiro, Lana imaginou que fossem estrelas, mas então ela se deu conta que eram peixes. Um milhão de peixes dourados, feitos de luz e nadando em perfeita sincronia. Desprovidos de matéria, eles atravessaram seu corpo de uma vez só num infinito horizontal, trazendo o calor vital que ela tanto necessitava. Lana sentiu que cada pequena parte de si vivificava.
A deusa se lembrou de mim!, ela comemorou. Seus dedos voltaram a se mover. Ela quase podia sentir seus outros membros respondendo ao chamado de sua alma.
Subitamente, uma baleia gigantesca apareceu diante de seus olhos. Era feita da mesma luz dourada que criara os peixes, mas não era nem de longe tão amigável. Seu também era digno de um monstro épico de fábula infantil. O corpo resplandecente da baleia irradiava uma intensidade que transcendia a mera luminosidade, enquanto suas formas gigantescas pareciam dançar na fronteira entre o real e o extraordinário. Era como se uma entidade lendária tivesse ganhado vida diante de seus olhos, impondo-se com uma presença que transcendia as dimensões conhecidas.
O colosso marítimo abriu sua bocarra e a engoliu de uma vez só.
A mente de Lana se encheu com as imagens do tempo. Viu uma coroa de ouro manchada de sangue. Viu dois cavaleiros cruzando espadas na Noite Sem Fim. As ruínas de um palácio ardiam em fogo e as bestas do infinito urravam seu preço. A cidade azul reluziu no horizonte. Um castelo de neve se afundou em desilusão. Os homens morriam para que deles uma mulher pudesse nascer.
Uma mão agarrou seu pulso e começou a puxá-la para cima, arrancando-a da ilusão. Percebeu que tinha sido devolvida as águas escuras, mas reconhecer o rosto de seu salvador lhe deu algum conforto. A capa azul flutuava ao redor dos ombros dele de modo diáfano, quase como uma luz na escuridão. Lana quase conseguiu sorrir. Essa sempre tinha sido a memória que ela havia guardado de seu irmão.
Emergiu de uma vez só, despontando de uma poça no meio de uma floresta que não compartilhava nenhuma característica com o inverno. Rolou sobre si mesma e deitou de costas sobre o tapete de folhas macias. Os pulmões doíam tanto que ela mal podiam respirar. Sentiu uma mão pousando levemente em seu peito e expeliu toda a água de uma vez só. Tossiu com suas últimas forças, tentando expulsar a morte e tragar a vida.
Com esforço, colocou-se de pé. Aquela não era mais a floresta de sua infância, onde havia sido testada, mas as árvores a chamavam exatamente como o grupo que a recebera no dia em que se provou digna.
Ve-la-tus-ta! Ve-la-tus-ta!
Ao apertar os olhos, Lana quase conseguia ver os homens liderados por seu pai agachados diante dela, com as tochas brilhando e saudando-a como a verdadeira herdeira de seu reino.
Ela não era mais a criança que havia sido, embora sentisse que acabara de renascer.
Seu irmão também estava ali, parado diante dela. Oslo jamais havia vivido para ver sua ascensão, mas agora era ele quem a aguardava. Conservava a mesma aparência que as memórias de Lana tinham preservado: a pele era azeitonada como a dela, mas os cabelos eram muito escuros e rebeldes, como os de seu pai. O gibão e a calça tinham a mesma cor que o céu noturno, mas a capa que caía sobre seus ombros era lisa e tingida no perfeito tom de azul que os Altharian se orgulhavam de ostentar em seu brasão.
Somente uma coisa estava diferente: ele era pequeno, muito menor que Lana se lembrava. Como irmão mais velho, ele sempre tinha sido maior do que ela. Agora, parecia uma criança como qualquer outra.
— Velatusta. — ele saudou com um sorriso no rosto.
A voz dele aqueceu todos os sentimentos que estavam guardados no fundo do coração de Lana. Ela não conseguiu conter as lágrimas.
— Devia ter sido você! — ela protestou com a voz embargada.
Ele estendeu a pequena mão para ela, tentando consolá-la. Lana queria abraçá-lo, mas sentia que não era correto. Aceitou o gesto do garoto e sentiu o peito doer ainda mais quando notou que agora sua mão era grande o suficiente para esconder as deles entre seus dedos.
— Nunca fui eu, minha irmã. — Oslo disse gentilmente. — Esse destino sempre pertenceu a você.
— Só porque eu tomei o seu lugar...
— Não vivi o bastante para ter um lugar que fosse meu. — um sorriso triste pairou em seus lábios.
— Mas isso porque a senhora minha mãe...
— Sim. — ele assentiu. — Não se aflige. No fim, tudo acabou sendo como deveria ter sido.
Mesmo assim, Lana não conseguia aceitar. Oslo tinha acabado de completar dez anos de idade quando morreu, a mesma idade em que o herdeiro potencial era submetido ao teste do velatusta. Se não fosse a interferência de Fenora, ele teria sido o rei e ela jamais teria seguido o caminho da herdeira.
Oslo se colocou ao lado dela, e começou carinhosamente a caminhar com ela.
— Vejo que guarda ressentimento por muitas coisas, minha querida irmã. — o menino disse. — Há ódio em seu coração. Você está tomada por uma vontade genuína de destruir o mundo com suas próprias mãos.
— Isso não é verdade. — Lana fungou. — Não desejo destruir nada. Quero apenas evitar que tudo torne a ser como foi um dia.
— Existe caminhos que devemos percorrer mesmo quando queremos muito os evitar. O príncipe cruel será sempre cruel e você sempre será a herdeira. Talvez Ivan mereça o seu ressentimento, mas você não deveria guardá-lo para sua mãe. Nem para você mesma. Ou para mim.
— Não estou ressentida com a minha mãe! — Lana protestou. — Muito menos com você.
Oslo sacudiu brevemente a cabeça, apontando uma negação.
— Claro que está. — rebateu. — Se ressente com a sua mãe porque ela forjou seu destino. Se ressente comigo porque eu a abandonei.
Lana comprimiu os lábios numa tentativa de sobrepujar uma nova leva de lágrimas. Seu coração estava em pedaços.
— Sabe, minha irmã... Você está muito crescida agora. Não precisa mais de mim para ler os livros que você gosta ou te ensinar a escalar árvores. Você pode construir seus próprios castelos e, dessa vez, eles não serão de areia.
Lana abriu e fechou os lábios, mas as palavras continuaram presas em sua garganta. Naquela altura, seu peito doía como se tivesse sendo esmagado. Oslo segurou sua mão com mais força, prestando um apoio silencioso. Ela não queria olhar para ele, mas não conseguiu evitar. Quando seus olhos se encontraram, Lana finalmente cedeu.
Todas as lágrimas que estavam aprisionadas em seu peito jorraram de uma vez só em um brado silencioso, mas cheio de angústia. Lana agachou, desabando sob o peso da dor, e pousou as mãos na cabeça. Os cabelos molhados caíram sobre seu rosto numa cortina úmida. Chorava por todos os motivos óbvios e por todas as coisas que não tinha coragem de declarar. Chorou de ódio, de amor e de compaixão. Chorou porque tinha plena.
Oslo se provou ser também um bom companheiro para os momentos de dor. Permaneceu em silêncio, pois não precisava dizer nada, mas não se afastou da irmã nem mesmo por um momento, mantendo a mão pousada em suas costas.
O tempo passou por eles como uma brisa fria.
— Acho que estou sozinha agora. — Lana murmurou depois de ter se acalmado um pouco.
— Eu prometi que seria seu melhor amigo para sempre, portanto sempre serei. Partir não significa ir embora.
Lana ergueu os olhos para ele. Estavam vermelhos, mas pareciam ter se limpado da dor. Tudo que havia era uma resignação fria.
— Ainda sim, o que preciso fazer terei que fazer sozinha.
Oslo entendeu.
— Se sua alma anseia a vingança, vingue-se. Porém, saiba que algumas chamas consomem tudo em seu caminho. Talvez não reste nada para se regozijar depois.
— Não busco felicidade. — Lana disse. — Apenas a satisfação do meu propósito.
— Mentirosa!
Oslo tinha soado tão espontâneo que Lana se surpreendeu. Pela primeira vez, ele se parecera com a criança de que de fato era e não como um pequeno rei. Um sorriso incontido tomou os lábios dela.
— Não sou não! — ela retrucou de modo meio infantil.
— É claro que é! — Oslo redarguiu. —A tristeza criou o ódio que hoje é o motor da sua vingança. Para resolver as questões da superfície, precisa resolver primeiro a tristeza.
— Tudo será resolvido quando Ivan morrer.
Lana comprimiu os lábios, reprimindo uma emoção que estava entre a risada e a tristeza. Oslo suspirou.
— Você acredita mesmo nisso, não é?
— Todos devemos acreditar em alguma coisa.
O menino estendeu a mão. Lana a agarrou e juntos voltaram a caminhar. A floresta parecia um mar de infinitos semelhantes, perdida em um eterno outono que tornava todas as árvores iguais. As copas eram densas, mas deixavam antever pequenos fios luminosos que proporcionavam uma visão parcial sobre tudo.
Não haviam animais. Não haviam nenhum outro som no mundo além das folhas secas se quebrando sob seus pés e do leve farfalhar dos galhos. Lana se deu conta que isso a deixava angustiada.
— Onde estamos? — ela perguntou.
— Onde tudo que morreu espera.
— Para renascer?
Oslo fez um sinal negativo com a cabeça.
— Para partir.
Então, subitamente, ela se lembrou de algo importante.
— Oslo, a senhora sua mãe está esperando por você em um salão no fim do mundo. Ela não sabia que você havia partido e, agora que sabe, anseia que você possa seguir com ela.
— Eu sei. — Oslo disse, visivelmente triste. — Mas ainda não podemos estar juntos. Há muito a ser feito antes de podermos descansar.
Lana entendia sem entender. Era uma resposta misteriosa, mas que não deixava espaço para novas dúvidas.
— Prometi a ela que devolveria vocês dois para o povo dela. — Lana contou. — Ao invés de descansarem numa cripta fria, vocês merecem dormir eternamente sob uma árvore frondosa, com o céu azul sobre suas lápides.
— Eu gostaria muito, minha irmã. — ele disse simplesmente.
Lana notou que o sorriso dele ainda detonava tristeza. Havia algo naquela situação que ela não compreendia.
— Nós vamos nos ver novamente? — Lana perguntou subitamente.
Oslo estancou subitamente, no limite das árvores. Ele respirou fundo antes voltar a olhar para ela. As palavras hesitaram antes de finalmente deixar seus lábios.
— O tempo de tudo passa, querida irmã. Temos que nos despedir agora.
— Por quê? — Lana estava chocada.
— Porque você precisa voltar para o outro lado. — Oslo disse. — Terá outro guia para te conduzir até lá.
— Quem?
Oslo apontou com o queixo.
A estalajadeira estava de pé no limite das árvores. Ao vê-la desprovida de qualquer vestimenta, Lana finalmente entendeu porque anteriormente a tinha achado tão semelhante a uma ovelha – ela, de fato, era uma. A cabeça terrivelmente humana, assim como suas mãos, contrastavam com o restante do corpo roliço, coberto por uma lã alva e espessa. Haviam dois cascos no lugar de seus pés e orelhas amendoadas vazavam das laterais do cabelo louro como trigo.
Embora a mulher-ovelha pudesse perceber claramente a surpresa no rosto de Lana, não pareceu ficar ofendida. Ao invés disso, simplesmente sorriu e fez um gesto para que ela se aproximasse.
— Vendetta. — Lana lembrou-se.
A mulher-ovelha assentiu.
— Isso é o que eu era e nem sempre somos a mesma coisa. Nesse momento, para você eu sou o Limite.
— Entre o meu mundo e o seu?
— Entre aquilo que morre e aquilo que vive.
— Nunca pensei que a Morte tivesse um rosto tão amigável. — Lana comentou surpresa.
— É porque não tem! — a mulher-ovelha retrucou com um sorriso gentil. — Eu e a Morte não somos a mesma coisa. Para você, a morte é um espadachim com quem será necessário duelar. Eu sou aquilo que espera em uma taverna no fim do mundo, para acolher todos aqueles que partiram, mas que desejavam ficar.
— Oh. — Lana entendeu. — Então você é uma fada, como diziam as lendas.
— Um dia, você também virá se sentar no meu salão, Lana da Casa Altharian. Nesse dia, então, você compreenderá.
Lana assentiu, embora não gostasse da ideia.
— Agora, no entanto, você deve ir em direção ao destino que a espera e encontrar aquilo que você perdeu, bem ali no meio daquelas árvores.
A mulher-ovelha estendeu o indicador e Lana seguiu com os olhos o lugar para onde ele apontava. Ao contrário da floresta outonal que a cercava, Lana se deu conta que precisaria seguir por um caminho escuro, sem luz e repleto de névoa.
Isso não a agradava, mas ela sentia a urgência de um propósito crescendo em seu peito. Algo que ela não conseguia se lembrar, mas que era importante assim mesmo.
— Se eu seguir por ali voltarei para casa?
— Sim. — a mulher-ovelha concordou. — Mas precisa tomar cuidado. Existe uma canção antiga sobre um rapaz apaixonado que, ao perder sua amada, decide ir ao mundo dos mortos resgatá-la. O rei dos mortos permite que eles retornem, mas para isso ele deve seguir sempre para frente e jamais olhar para trás até terem alcançado a superfície.
— Acho que me lembro de ter ouvido algo assim. — Lana disse.
— Seu caminho, Lana, deve ser feito da mesma forma. Siga sempre em frente, sem olhar para trás até ter saído dessa floresta. Seu único empecilho será você mesma, então precisa subjugar sua vontade e fazer aquilo que é certo. Não olhe para trás.
— Não vou olhar. — Lana garantiu.
— O caminho da vida é sempre para frente, pois a morte simboliza o passado. Embora seja o destino final, ela simboliza que a vida ficou para trás, junto ao que existiu e não existe mais agora. Voltar para trás é morrer.
Lana tinha mil perguntas que não sabia formular. A mulher-ovelha conhecia cada uma delas.
— Um dia, meu salão estará pronto para você e você estará pronta para ele. Nesse dia, responderei tudo. — ela garantiu.
— Espero ainda ter muito tempo de vida antes de voltar a encontrá-la, senhora.
A mulher-ovelha riu.
— O tempo não é nada, criança. O tempo sequer existe.
As palavras dela pareceram incorporar a própria essência da floresta. Quando Lana levantou seus olhos, as copas das árvores ecoavam a voz da mulher-ovelha. O vento soprou em suas costas e as folhas caíram em espiral, sendo levadas até a vanguarda.
Lana estava sozinha agora. A floresta escura a aguardava e ela deveria olhar sempre para frente.
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