25. O Festim dos Mortos

Lana era como a chama de uma fogueira bravia, cujas chamas subiam alto e as fagulhas tentavam beijar o céu. Quando queria, sabia agir de forma impetuosa e autoritária e, mesmo que não dissesse nenhuma palavra, obrigava todos ao seu redor a fazerem exatamente o que ela queria.

Toda vez que Heng se dava conta daquele comportamento incomum, que contradizia seu status de criada, uma sensação estranha o invadia. Enquanto a acompanhava em direção ao interior da estalagem, seus pensamentos eram dominados pela certeza de que Lana jamais havia experimentado a submissão de maneira rígida. Ela sequer pareceu se importar quando ele argumentou sobre a imprudência de regressar à estalagem, especialmente tendo-se em vista a estranha estalajadeira. Com a cabeça erguida, ela avançava decidida, não concedendo a menor possibilidade de não ser seguida.

— Se ela for uma fada ou uma espiã, como o senhor disse que é, não temos escapatória. — ela tinha dito. — Uma vez que caímos em sua teia, que ela nos dê pelo menos um copo de cerveja.

E a cerveja era tão negra e amarga quanto os pecados de um homem, embora fosse igualmente deliciosa. Porém, a cerveja não era a primeira coisa que Heng experimentaria naquele lugar. Primeiro, Lana pretendia subir as escadas e se enfiar nas vestimentas que Luna Serena providenciara para eles.

Heng não esperava encontrar tanta serenidade ao cruzar a porta, mas, surpreendentemente, a tranquilidade era exatamente o que o aguardava. Além de dois homens, o salão estava vazio. Exceto por ela, ele pensou com desgosto quando se deu conta de que Luna Serena estava polindo copos atrás do balcão. Com certo horror, ele se deu conta que não sabia dizer se ela já estava lá esperando por eles ou se tinha surgido de repente. Quando se tratava daquela mulher, Heng sempre se sentia um tanto confuso, quase como se tentasse enxergá-la através de uma lente opaca.

Quando se dirigiram para a escada, Luna Serena os encarou diretamente. Lana respondeu com um aceno constrangido, retribuindo o sorriso enigmático da mulher. Heng, por outro lado, desviou o olhar, fixando suas pupilas em um dos homens que estavam sentados. Era um homem alto, que envergava uma armadura desgastada pela batalha. Seu equipamento possuía uma aparência antiga, como a dos modelos reminiscentes de tempos que antecediam (e muito!) o reinado do atual imperador. O manto que escorria por suas costas exibia um emblema que pertencia a uma casa há muito esquecida, daquelas que só existem na memória dos historiadores. Apesar disso, nenhuma dessas coisas constituía um aspecto tão impressionante quanto a flecha cravada em seu pescoço, que atravessava completamente a carne e emergia do outro lado. O homem, entretanto, agia como isso não o perturbasse e bebia de modo normal, ignorando completamente as penas que roçavam seu queixo enquanto ele falava.

Lana tinha parado ao pé da escada, esperando por ele. Havia uma certa ansiedade em seus modos, evidenciada por um leve ar de inquietação. Teria ela notado o mesmo que ele Heng tratou de alcançá-la e ambos subiram em silêncio, guardando suas palavras para o andar superior.

Heng tomou a dianteira. Quando pararam diante de uma porta no fim do corredor, a chave já estava em sua mão. Além da estranha sensação de não a ter sacado, ele notou que também não se lembrava de ter recebido qualquer instrução acerca da localidade do aposento designado para eles. Apesar disso, a chave encaixou na fechadura com facilidade e, com um simples giro, a porta rangeu e se abriu.

Mesmo que ainda houvesse luz na fora, o quarto estava iluminado de modo pouco satisfatório. Visando melhorar a visibilidade, Heng acendeu o candeeiro que repousava sobre um móvel muito antigo. O quarto em si não era espaçoso, mas continha uma cama adequada para duas pessoas. Conforme Luna Serena prometera, havia um par de trajes simples dispostos sobre o leito, feitos de um tecido rudimentar e sem tingimento. Sob as cortinas encardidas, uma janela se abria para o exterior e, no canto mais interno, havia uma abertura côncava que abrigava uma tina de água fumegante.

As suspeitas de Heng só faziam aumentar. Tudo parecia ter sido arrumado recentemente, como se alguém soubesse que eles entrariam no quarto naquele momento específico. A palha da cama parecia ter sido substituída há pouco tempo, e não havia o que falar da tina. Por outro lado, Lana estava notavelmente calma. Animada com a perspectiva de um banho, ela ignorou os avisos do general. Fez com que ele a ajudasse a afrouxar as fivelas de sua armadura e então se desfez do aço rapidamente. Mergulhou, então, na tina até o pescoço, permitindo que a calor penetrasse em sua pele e dissipasse o cansaço de sua alma. De maneira cavalheiresca, Heng sentou-se na cama de costas para ela, focando sua atenção na chama do candeeiro e evitando refletir sobre o desconforto que a situação lhe causava. Em sua alma, havia um aspecto conservador que achava inadequado permanecer no mesmo recinto que uma senhorita nua sem nutrir qualquer tipo de relação com ela. A honra, entretanto, impedia que ele deixasse Lana sozinha. Sentia que um grande mal podia recair sobre ela se o fizesse.

— Eu não acho boa ideia abandonar nossas armaduras. — ele disse, tentando espantar o incômodo.

— Não acredito que tenhamos escolha. — Lana disse. — Não quando ela recusa sua prata e lhe diz tão enfaticamente o que devemos fazer.

— Dizer que não vamos mais precisar de nosso aço parece um argumento tão frágil. Como ela poderia saber? A única explicação que encontro é que ela deseja facilitar nosso assassinato.

— Talvez.

— Talvez?

Heng não podia vê-la, mas Lana deu de ombros mesmo assim.

— Não temos como saber, meu senhor. — ela disse. — Nossa situação é estranha e há mais coisas sob o céu do que somos capazes de supor.

Ainda mergulhada e sem fitar o homem com quem dividia o quarto, Lana degustava o sabor amargo da pergunta que ia fazer.

— Por acaso já esteve em um lugar como esse antes, meu senhor?

Heng moveu-se desconfortavelmente.

— Já estive em muitas estalagens, mas nenhuma como essa.

O silêncio pairou entre eles por tanto tempo que Lana começou a acreditar que Heng havia desistido de conversar com ela. O general, por sua vez, tinha parado para sentir o peso do que ia dizer.

— Eu e você. — ele disse. — Não acho que deveríamos estar aqui.

— Sim, meu senhor. — ela concordou. — Ainda sim, não acho que podemos simplesmente partir.

Outro longo silêncio se seguiu, entrecortado apenas pelos suaves sons que Lana fazia enquanto esfregava a própria pele.

Heng encheu os pulmões de ar, para tentar reconquistar o fôlego, e expirou. Aguardou mais um momento inteiro antes de voltar a tocar no assunto. Uma parte dele acreditava que os dois estavam sendo espionados e outra parte duvidava dos próprios sentidos.

— Você viu aquilo? — ele finalmente perguntou.

Lana sabia exatamente o que ele queria dizer.

— Fala daqueles dois homens sentados?

— Sim. — ele disse. — Por um segundo, pensei que não tivesse notado...

Pensei que fosse coisa da minha cabeça, era o que ele queria dizer, mas não disse.

— Acho que ninguém no mundo, homem ou mulher, poderia ignorar tamanha aberração. — Lana disse.

Lembrar daquela estranha visão causada um desconforto profundo em seu ser. De repente, o banho não parecia mais tão agradável. Sentindo-se enjoada, Lana saiu da tina e agarrou o estofo de lã destinado a secagem do corpo. Até mesmo ele estava perfeitamente limpo e macio.

— Eu mesma nunca vi nada igual em toda a minha vida, nem pensei que veria. — ela continuou. — Um homem com chifres de bode...

Sobressaltado, Heng virou-se para ela. Num breve lapso, a surpresa tinha suplantado o decoro, e o susto se tornou ainda mais potente quando ele se deu conta do que tinha acabado de fazer. Todo raciocínio havia desfalecido diante do esbelto corpo nu que se avultava diante de sua visão. Sua boca permaneceu aberta, mas todas as palavras tinham se perdido.

Ao contrário do que era esperado, Heng não desviou seus olhos imediatamente. Primeiro, deixou que eles percorresem a figura de Lana. Notou seus seios, perfeitamente redondos e ainda úmidos, e a cintura fina sobre o quadril delgado. Recobrou a consciência antes que pudesse esquadrinhar mais e virou-se rapidamente para o lado oposto.

Sua face tinha corado tanto que mesmo de costas Lana conseguia ver suas orelhas vermelhas. Ela também conseguia notar o esforço que ele estava fazendo para manter os olhos longe de seu corpo. Era difícil não reparar no desejo que havia se apossado dele, tanto que ela sentia a própria pele queimar. Deixando-se nutrir pela onda de poder, Lana caminhou até a cama e começou a se vestir lentamente. Orgulhosa como era, não se deixou envergonhar pelo fato de que ele a havia visto nua. Pelo contrário, ela sabia que também o desejava e torcia, enquanto se vestia, para que ele olhasse novamente para ela, mas que não se limitasse apenas a olhá-la daquela vez.

— Eu não acho uma boa ideia abandonarmos nossas armaduras. — ele disse, tentando dissipar o desconforto.

— Não acredito que tenhamos escolha. — Lana respondeu. — Não quando ela recusou a prata que o senhor ofereceu e o orientou tão enfaticamente a respeito do que devemos fazer.

— Dizer que não precisaremos mais de nosso aço parece um argumento frágil. Como ela poderia saber? A única explicação que encontro é que ela deseja facilitar nosso assassinato.

— Talvez.

— Talvez?

Heng não podia vê-la, mas Lana deu de ombros mesmo assim.

— Não temos como saber, meu senhor. — ela afirmou. — Nossa situação é estranha, e há mais mistérios neste lugar do que somos capazes de compreender.

Ainda imersa na água e sem olhar para o homem com quem dividia o quarto, Lana degustava o sabor amargo da pergunta que ia fazer.

— Por acaso já esteve em um lugar como este antes, meu senhor?

Heng se remexeu desconfortavelmente.

— Estive em muitas estalagens, mas nenhuma como esta.

O silêncio pairou entre eles por tanto tempo que Lana quase julgou que Heng não tinha a intenção de continuar a conversa.

— Eu e você. — ele finalmente disse. — Não acho que deveríamos estar aqui.

— Sim. — ela concordou. — Mas, mesmo assim, não acho que podemos simplesmente partir.

Outro longo silêncio se seguiu, interrompido apenas pelos som suave da pele de Lana sendo esfregada. Heng encheu os pulmões de ar para recuperar o fôlego e expirou. Aguardou mais um momento antes de voltar ao tópico. Parte dele acreditava que estavam sendo observados, enquanto outra parte duvidava de seus próprios sentidos.

— Você viu aquilo? — ele finalmente perguntou.

Lana sabia exatamente o que ele queria dizer, mesmo assim achou melhor certificar-se.

— Está falando daqueles dois homens sentados no salão?

— Sim. — ele confirmou. — Por um momento, pensei que você não tivesse notado...

Pensei que fosse apenas minha imaginação, era o que ele queria dizer, mas não disse em voz alta.

— Acredito que ninguém no mundo, seja homem ou mulher, poderia ignorar algo tão... extraordinário. — Lana respondeu.

Aquela visão comprovava todos os receios de Lana. Se os ditos antigos estivessem corretos, ela e o general se tornariam eternamente reféns daquele lugar. Seus sentidos se embotariam gradativamente até que não restasse mais nenhuma compressão ou memória de seu estado e, no mundo real, tudo que eles conheciam definharia e seria suplantado pelo tempo.

De repente, o banho já não parecia mais tão agradável. Sentindo-se enjoada, Lana saiu da banheira e agarrou o estofo de lã destinado a secagem do corpo. Notou, com certa comiseração, que até mesmo ele estava em perfeito estado, tão macio como se tivesse sido recém fabricado, e levemente perfumado.

— Senhor, aquele homem com chifres de bode...

Sobressaltado, Heng se virou para olhá-la. Num lapso, a surpresa tinha superado o decoro, e o susto se tornou ainda mais potente quando ele se deu conta do que tinha acabado de fazer. Toda sua capacidade de raciocínio desvaneceu diante daquele esbelto corpo nu que ali estava. Sua boca permaneceu aberta, mas todas as palavras tinham se perdido.

Ainda sim, Heng não desviou imediatamente o olhar, como deveria fazer. Um instinto primitivo fez com que ele fitasse Lana por um segundo a mais, avaliando suas curvas. Notou os seios pequenos, mas perfeitamente arredondados e os mamilos escuros e rijos. A cintura era fina e delicada, impondo-se sobre um quadril largo. Ele recuperou sua compostura antes que seus olhos pudessem descer um pouco mais e rapidamente se virou na direção oposta. Percebendo que suas mãos tremiam um pouco, ele cerrou os punhos com força e os pousou sobre o colo. Além da vergonha, outra coisa ardia dentro dele. Era aquela típica necessidade provocada pela paixão, que em situações como essa precisava ser suprimida ou levaria a desgraça.

O rosto de Heng estava tão corado que, mesmo de costas, Lana conseguia notar o rubor em suas orelhas. Enquanto ele observava, ela permaneceu orgulhosa e ereta, sem demonstrar intenção o esconder seu próprio corpo. Ao contrário do general, Lana compreendia os próprios desejos e não via motivo para reprimi-los. Permaneceu, então, que ele tomasse alguma iniciativa, mas isso nunca chegou a acontecer.

Sentindo seu próprio corpo ainda quente e deixando-se envolver por uma breve onda de confiança, Lana se dirigiu à cama, mas hesitou antes de tocá-lo. Com resignação, começou a se vestir lentamente, secretamente torcendo para que ele se voltasse para ela e não ficasse apenas olhando dessa vez. Heng, por sua vez, permaneceu distante, e sequer teria retornado o assunto se ela não tivesse dado o primeiro passo.

— O que o senhor viu, general? — havia um certo tom aveludado em sua voz. — Não foi um homem com chifres de bode?

— Não. — ele respondeu. — Vi um homem com uma flecha fincada no pescoço, usando uma armadura como aquelas que os homens usavam em um passado distante.

Lana tentou ficar muito magoada ao perceber o quanto Heng estava ansioso para fingir que nada tinha acontecido.

— Eu não vi nada assim.

— Juro que estava lá, diante dos meus olhos!

Ela sentou-se na cama, de costas para ele. Cruzou as pernas e apoiou as palmas da mão na beirada.

— Sei que estava, assim como sei que o que eu vi também era real. Acredito que nossos sentidos ficarão cada vez mais confusos.

— Como assim? — ele perguntou.

— Senhor, acho difícil que possa negar que coisas muito estranhas nos tem acontecido.

— De novo aquele assunto das fadas?

Lana suspirou.

— Assim como eu, o senhor viu o sol se erguer no oeste e deitar no leste. Nós dois conseguimos ler a placa na entrada, mesmo que ela estivesse em um idioma desconhecido. Você disse que a estalajadeira sabia exatamente quem nós éramos, mesmo que não tenha dito nada...

— Lana.

Ela ignorou a tentativa de interrupção.

— E houve aquele músico que encontramos na estrada, que desapareceu subitamente. Sem falar que, enquanto caminhávamos, fica cada vez mais difícil encontrar o caminho certo, como se houvesse um sortilégio...

— Lana!

— Heng! — ela retrucou.

Finalmente estavam se olhando. Lana percebeu que finalmente tinha capturado a atenção dele.

— Senhor. — ela disse. — Por favor. Eu não quero morrer e nem falhar na nossa missão. Acredito que o caminho para isso, seja justamente... acreditar.

— Eu não tenho como acreditar em toda mitologia do seu país.

— Então acredite nos seus olhos! — corajosamente, Lana pousou a mão sobre a dele. — Eu não estou pedindo que acredite na magia, mas acredite no que estamos vendo. Talvez não estejamos no país da fada, mas definitivamente não estamos no nosso mundo. Cada lugar tem suas próprias regras e devemos dançar conforme a música se quisermos viver mais um dia.

Heng não a olhava nos olhos, mas Lana sabia que ele compreendia. Ela podia perceber a réstia de dúvida que havia surgido em suas convicções.

— Como tem certeza que não vamos morrer assim que pisarmos para fora desse aposento?

— Eu não tenho. Se tivermos que morrer, morremos. Mas se há uma chance de viver é justamente dando o que Luna Serena quer de nós. Nesse momento, ela quer nossas armaduras. Ela sabe tudo sobre nós e nós não sabemos nada sobre ela. Se queremos descobrir, teremos que ser bons meninos.

Heng a engoliu em seco. Libertou suas mãos do aperto dela e virou o rosto. Aquilo era demais para ele.

— Por favor, Heng. — dessa vez, a voz de Lana suavizou seu tom de voz. — O que é verdade continuará sendo verdadeiro independentemente da nossa crença. Mas, se meu pressentimento estiver correto, teremos que confiar um no outro.

Heng duvidava, mas era difícil reproduzir sua dúvida em palavras. Como poderia ele, tão acostumado à racionalidade, ceder e confiar em circunstâncias mágicas quando os problemas eram tão palpáveis?

Apesar disso, Lana tinha atingindo um ponto vital em sua argumentação. Não havia como negar a imprescindibilidade da confiança.

Contra a sua vontade, ele se ergueu. Colocou-se na frente de Lana e pousou suas mãos sobre os ombros dela.

— Você é quem nos guiará a partir daqui.

• ஜ • ❈ • ஜ •

A primeira conclusão óbvia era que o tempo passava de maneira diferente naquele mundo. A noite já tinha se estabelecido quando os dois desceram as escadas e o salão estava em plena efervescência, repleto de uma multidão ruidosa e faminta. As pessoas tinham ocupado todos os lugares disponíveis, fosse nas mesas ou no intervalo entre elas. Não parecia mais haver espaço disponível, mas a possibilidade de ter que se sentar com estranhos não era o mais inquietante daquela situação. Lana notou que não conseguia enxergar ninguém com muita clareza, pois todas as pessoas que a cercavam tinha uma aparência etérea e tremeluzente. Pareciam ser tão materiais quanto qualquer outra coisa no mundo quando Lana esbarrava nelas, mas seu aspecto era fugidio como a fumaça que emanava da lareira.

Além disso, ela se deu conta que não conseguia determinar o tamanho real do salão. As mesas se estendiam até onde os olhos podiam alcançar e as sombras se esticavam para além do horizonte de visão. Lana percebeu que vozes abafadas emanavam das trevas, como se viessem de um mundo submerso, mas não era possível identificar quem eram seus emissores.

— Senhor, esse lugar era assim tão vasto quando entramos por aquela porta? — Lana perguntou.

Quando ela se virou, Heng não estava lá. Lana girou nos calcanhares, buscando-o, mas não havia nenhum sinal dele.

— Lorde Heng? — ela chamou. Andou alguns passos para frente e esquadrinhou as mesas com os olhos, procurando por ele. — Lorde Heng? — tornou a chamar.

Uma mão pousou em seu ombro, mas ela não pertencia ao general. Ao invés disso, Lana se deparou com o grande sorriso da estalajadeira, que trajava um avental imaculadamente limpo e portava uma jarra de prata cheia de vinho.

— Lana, querida! — a mulher disse.

Antes que Lana pudesse retribuir o cumprimento, um homem chamou sua anfitriã. A estalajadeira se voltou para ele com carinho e, graciosamente, reabasteceu sua caneca enquanto ele lhe cobria de elogios em um idioma estranho e a chamava de Camila.

— Perdoe-me, querida. — a mulher disse quando se reaproximou. — Por essas bandas essa noite é bem intensa e eu acabo tendo muito trabalho para fazer.

— Por acaso você viu...

— O Lorde Heng? — a estalajadeira completou. — Sim, eu vejo que se perdeu de seu acompanhante. Sei onde ele está. Minhas meninas podem te levar até lá.

— Sim. — duas vozes infantis concordaram em uníssono.

Lana se virou para ver uma dupla de meninas que antes não estavam ali. Eram crianças, com não mais que dez anos de idade, e eram idênticas. Os cabelos negros estavam trançados em tranças volumosas que desciam pelas costas e ambas usavam os mesmos vestidos escuros. Compartilhavam o mesmo tom cinzento de pele, bem como todas as feições. Estavam de mão dadas e encaravam Lana com tanta intensidade que ela se sentiu desconfortável.

— Essas são Clara e Odeta. Basta acompanhá-las, senhorita Lana.

— Eu agradeço... — Lana interrompeu-se. — Ahn... Como eu devo lhe chamar?

Lana tinha a vaga memória do nome da estalajadeira saindo dos lábios do general. Na verdade, tinha sensação de ela mesmo o ter dito algumas vezes. Ainda sim, sua mente parecia turva quando ela tentava lembrar.

— Eu sou seu maior desejo, senhorita Lana. — a estalajadeira disse de modo misterioso. Seu sorriso parecia ter ficado ainda maior. — Para você, meu nome é Vendetta.

— Vendetta. — Lana repetiu devagar.

Seu corpo tinha ficado mais leve, mas os ombros estavam mais pesados. Senia-se presa em um estado onde flutuar e ficar presa ao chão era a mesma coisa. O sorriso da estalajadeira exercia um efeito hipnótico, e Lana conseguia desviar seus olhos. Ela não podia se mover ou apenas não queria se mover?

— Senhora, você deve vir conosco. — uma das gêmeas disse, quebrando o transe.

Lana tinha a sensação de ter sido tocada por uma mão bem pequena, mas nenhuma das meninas parecia ter se movido.

— Assim como disse a Mãe. — a outra gêmea insistiu.

Lana abriu e fechou os dedos, retomando os sentidos. Quando se virou, a estalajadeira não estava mais lá.

As duas meninas tinham começado a caminhar por entre as mesas. Permaneciam de mãos dadas e davam seus passos em perfeita sincronia. Lana precisou apressar o passo para acompanhá-las.

— Vocês são filhas da senhora Vendetta? — ela perguntou.

Odeta e Clara viraram suas cabeças para olhá-las por sobre o ombro. Continuaram caminhando como se enxergar o caminho à frente não fosse uma necessidade.

— Não. — elas responderam em sincronia.

— Não temos mãe. — uma das gêmeas disse.

— Na verdade, temos.

— Estamos aguardando por ela.

— Mas ela não vem.

— Mãe foi o nome que demos à hospedeira.

— Filhas foi o nome que ela nos deu.

— Ela é tudo.

— Ninguém mais é nada.

O jeito com que as duas meninas conversavam, sempre completando as frases uma das outra, deixava Lana se sentindo meio tonta.

— Você pode ser nossa mãe? — uma das gêmeas perguntou.

— Não seja tola. — a outra ralhou. — Não somos filhas de uma princesa.

— Somos filhas de uma senhora qualquer.

— Pera, o que você disse? — Lana interrompeu.

Dessa vez, nenhuma delas respondeu. Suas faces se voltaram para frente.

Lana decidiu tentar uma nova abordagem.

— Essa estalagem é o lar ao qual vocês pertencem? — perguntou.

Os rostos se voltaram novamente para trás.

— Não. — as duas responderam ao mesmo tempo.

— Ninguém mora aqui.

— Exceto a Mãe.

— Mas ela é mãe da estalagem.

— Ela é a própria estalagem.

Lana estava se sentindo cada vez mais confusa.

— Então vocês podem partir? — ela arriscou.

— Nosso trabalho é aguardar. — novamente, as gêmeas responderam em uníssono.

— Até o fim dos tempos.

— Até nossa mãe vir nos buscar.

Por um breve segundo, Lana teve a sensação que as gêmeas tremeluziram em pleno ar, desaparecendo e voltando a se condensar. Ela piscou rapidamente, tentando evitar que sua visão ficasse novamente turva.

— Senhora, aqui está seu lugar. — as gêmeas disseram. Tinham erguido suas mãos livres e seus indicadores apontavam para um canto onde Heng estava sentado sozinho.

— Ah, eu agradeço. — ela disse. — Odeta. Clara. — Lana pontuou os nomes com meneios de cabeça dirigidos à gêmea para quem ela acreditava estar se dirigindo.

— Eu não sou Clara. — a gêmea da direita disse.

— E eu não sou Odeta. — a gêmea da esquerda completou.

Lana chegou a abrir a boca, mas as gêmeas agarraram seus pulsos antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

— Lana, da Casa Altharian. A ti oferecemos um conselho. — elas disseram sempre juntinhas. — Parta.

— Esse é o nosso lugar.

— Nosso porque dormimos com os que partiram.

— Nosso porque dormimos com os esquecidos.

— Nosso porque dormimos com os que feneceram.

— Mas não é seu.

— Parta, Lana da Casa Altharian.

— Antes que seja tarde.

— Antes que o bardo toque sua última nota.

— Antes que o sol não nasça.

— Adivinhe a mãe que não deveria ter sido.

— E encontre a floresta.

A última frase foi dita em perfeita harmonia de suas vozes. Odeta e Clara libertaram Lana de seu aperto ao mesmo tempo e ela sentiu seu corpo cambaleando para trás. Teria caído se suas pernas não tivessem encontrado a quina de uma mesa e, consequentemente, o apoio que ela precisava para se manter de pé.

— Lana! — Heng disse. — Você já voltou?

Como ela tinha chegado tão rápido à mesa do general? Sentindo-se muito tonta, Lana achou melhor puxar a cadeira e se sentar.

— Eu não fui a lugar nenhum. — ela disse, rouca.

— Você levantou dizendo que ia... — ele franziu o cenho. — Onde é mesmo que você ia?

— Lugar nenhum. — ela ecoou.

— Tenho certeza que...

— Aqui estão as bebidas que vocês pediram! — uma voz interrompeu.

Era a estalajadeira, que tinha surgido do lado da mesa. Portava um caneco de madeira em cada uma de suas mãos. Cerveja preta, Lana constatou quando um deles foi colocado na sua frente.

Não era sua bebida favorita, mas ela sentia que deveria beber. Bastou um gole para que sua mente entrasse em foco. O sabor era extremamente amargo, mas igualmente delicioso.

— Senhor. — Lana disse, pousando o caneco. — Temos que partir.

Heng suspirou aliviado.

— É isso que eu estou dizendo desde que chegamos aqui!

— Não. Precisamos...

Foi a vez de Lana ser interrompida.

— Comida! — a estalajadeira cantarolou.

Lana fitou a face da mulher enquanto ela pousava um largo e bem abastecido prato no meio da mesa. Qual era mesmo o nome dela? Luna Serena? Camila... Não. Era algo mais visceral. E aquelas feições... Por que ela parecia tanto com uma ovelha?

— Encontre a floresta. — a mulher recomendou com uma piscadela antes de tornar a desaparecer.

Havia chouriço, ovos e pão. Lana não se lembrava de ter visto carneiro, mas era o odor de carneiro que ela sentia. Não se lembrava de ter provado carne de vitela, mas era esse sabor que enchia sua boca.

Ela engoliu tudo de uma vez. Tomou um gole de cerveja para ajudar. Notou que seus dedos estavam tão engordurados quanto os do general.

— Heng. — Lana chamou. — Precisamos partir.

— Sim, precisamos. — ele parecia tão alterado quanto ela.

— Precisamos partir. — ela insistiu. — Antes que o bardo toque sua última nota.

— Precisamos encontrar a floresta. — ele complementou.

— Sim. — Lana concordou.

Nenhum dos dois tinha força para se erguer.

O ambiente parecia ter ficado mais escuro. Toda luz do mundo estava dirigida para um palco no centro do salão, num feixe linear.

Sentado em uma banqueta estava um bardo vestido de azul, que sorria para a plateia com dentes muito brancos. Lana esperava encontrar um alaúde em suas mãos, mas ele portava uma pipa.

Quando ele deslizou os dedos pelas cordas do instrumento, o mundo pareceu parar com os seus acordes.

— Boa noite, senhoras e senhores de todos os estatutos. — ele saudou. Sua voz era tão bela quanto suas feições. — Boa noite aos que sorriem e aos que pranteiam. Boa noite aos que sonham e aos que se desiludem. Boa noite aos que esperam. Boa noite aqueles que devem partir.

Lana teve a sensação de que ele olhava diretamente para ela ao dizer as últimas palavras.

Ele parecia tão familiar... De onde eles se conheciam?

— Meus caros ouvintes. — o bardo continuou. — Como deveria ser, nossa primeira canção fala sobre a morte.

Lana sentiu um arrepio profundo percorrer seu corpo.

— Heng!

O mundo inteiro estancou seu movimento, quase como se o próprio planeta tivesse desistido de girar em seu eixo.

Os dedos do bardo deslizavam pelas cordas, dando vida à canção mais melancólica que Lana já tinha escutado. Cada nota tornava a escuridão mais densa, fazendo que o aperto na garganta de Lana piorasse e começasse a beirar o terror. Seu coração pesava mais de uma tonelada, enquanto o mundo todo parecia pesar menos que uma pena.

A gravidade tinha abandonado o universo.

Pouco a pouco, todas as coisas começaram a flutuar.

Os pés de Lana deixaram de tocar o chão e o vazio a consumiu.

Tudo tinha deixado de existir.

Havia somente o vácuo e a escuridão.

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