22. A Estalagem no Fim do Mundo
A noite caía e uma chuva grossa obscurecia a estrada. Lana estava molhada e com frio, e começava a se sentir um pouco irritada. Aquele clima era tão incomum naquela época do ano quanto o caminho que se desenrolava a sua frente.
— Você tem certeza de que estamos no caminho certo, senhor?
Lana podia contar nos dedos os minutos que havia ficado desmontada desde sua partida. Apesar de a fuga ter sido facilitada por causa da Ordem de Partida (uma espécie de autorização emitida pelo próprio Imperador) que Heng trazia consigo (o que era bastante estranho!), a estrada se mostrou muito menos clemente do que os guardas do portão. A dupla tinha cavalgado a noite inteira e uma boa tarde da manhã, almejando ultrapassar a cidade de Proteia antes que alguém desse falta deles. Chegaram a fazer uma pequena pausa no meio da tarde, mas ela nem sequer foi o bastante para que pudessem descansar os ossos. Agora havia aquela terrível chuva, que só deixava tudo pior. Não havia nada no mundo que Lana não estaria disposta a trocar por uma cama, especialmente quando os dois pareciam estar tão perdidos.
— Devo admitir que não reconheço nenhuma dessas estradas. — o general respondeu. — Ainda sim, suponho que devemos estar muito próximos de Ariko quando considero a distância que percorremos... A não ser que, de algum modo, tenhamos nos perdido na neblina e dado a volta.
Considerando que estavam no começo da primavera, a neblina não deveria estar tão densa. Era impossível enxergar mais do que um palmo diante dos olhos e Lana e Heng tinham que ficar muito próximos para evitar se perder. Consternado, o general manobrou o cavalo, girando-o em seu próprio eixo, enquanto perscrutava o ambiente ao seu redor. Estava bastante frustrado devido à ausência de visão.
— Eu já fiz essa viagem mais vezes do que eu me recordo e mesmo assim...
— Talvez seria bom ter trazido um mapa. — Lana tentava omitir toda a sua irritação e cansaço. Não era culpa de Heng ter se perdido no meio de toda aquela neblina.
— Talvez. — Heng assentiu. Ele também parecia cansado. — Não parecia ser muito adequado. Quer dizer, todos os mapas do palácio têm aquele símbolo gigantesco do poder imperial gravado neles. Não acho que valeria a pena abrir algo assim em um lugar comum e ameaçar que descobrissem a nossa identidade. Preferi obter um em uma cidade próxima.
— Com razão, senhor. Ainda sim, estamos perdidos.
— Ainda sim.
— Talvez devêssemos dar a volta e tentar achar um caminho fiável do outro lado. — Lana sugeriu de modo acanhado.
Heng apenas concordou.
Retroceder parecia ser a única opção viável, mas já estava escurecendo. Lana puxou o capuz do seu manto puído de soldado sobre o rosto e atiçou a égua em direção ao sol minguante. Mesmo com toda aquela cerração, era esperado que houvesse pelo menos mais uma hora de luz. Apesar disso, tudo que restava do sol era um brilho tênue na linha do horizonte. Depois de algum tempo de caminhada, Heng parou e apontou.
— Lana, veja. Aquela rocha meio inclinada... Topei com ela nas vezes anteriores em que fiz esse caminho. Da última vez que passei por ela, o mundo ainda estava gelado e havia um monte de neve em seu entorno. A estrada imperial deve estar próxima.
Coisa nenhuma.
Não havia sinal da estrada imperial e nem de qualquer outra. Por mais que eles andassem, permaneciam presos sempre no mesmo descampado, sem nenhum sinal de uma cidade próxima ou de outras pessoas.
— Talvez seja melhor voltar. — Heng disse.
Lana preferiu não retrucar. Se ela fosse obedecer a seus próprios desejos, teria que se lançar do cavalo e começar a chorar. O corpo todo doía sob o peso da armadura e seus olhos pesavam. Ainda havia toda aquela chuva, que continuava a cair como tinha caído no início do mundo e continuaria a cair, ao que tudo indicava, até o fim dos tempos.
— Você deve estar me achando um imbecil. — o general se voltou para ela com um sorriso tímido. — Até mesmo posso ouvir seus pensamentos. Que raios de general é esse que nem sequer consegue encontrar uma maldita estrada?
— Bobagem! — Lana retorquiu. — Esses devem ser seus próprios pensamentos, meu senhor. A única coisa que toma minha cabeça nesse momento são as lembranças da minha cama, toda quentinha e forrada com palha nova. — se permitiu dar uma breve risadinha. — Diabos! Até aquele maldito catre que eu me deitava quando cheguei no Palácio serviria e eu não gostava de me deitar nele nem mesmo quando era a única cama que eu tinha!
— Se não fosse por toda essa neblina, poderíamos estar numa taverna agora. Haveria cidra borbulhante e uma ótima cama para nos deitarmos.
— Não me tente ou eu posso começar a chorar!
— Essa jamais seria a minha intenção. — Heng tinha um sorriso gentil nos lábios. — Não quero que sofra mais que o necessário por causa do meu senso de direção ter sido substituído por uma bússola quebrada.
— Não seja tolo. — Lana disse. — Não é culpa sua. — ela suspirou. — É de Alina.
Um silêncio incômodo se seguiu. Talvez os dois estivessem apenas cansados demais para lidar com aquilo. No entanto, não era preciso dizer que o mundo seria um lugar bem melhor se algumas pessoas simplesmente desaparecessem.
— Poderia ser pior. Você poderia estar presa com a minha irmã numa altura dessas, e Nina não possui o menor senso de direção. — Heng disse. — Você acha que é de família?
Lana estava distraída demais fitando a rocha que se avultava diante dos seus olhos para responder.
— Aquela não é a mesma rocha que o senhor disse ter visto no inverno passado?
Heng franziu a testa. O general também estava tentando conter a irritação do seu próprio modo.
— Espero que não. Ou acha possível que essa seja a única pedra em todo reino do Imperador?
— Se fosse apenas pioraria tudo. — Lana soltou um suspiro cansaço. — Ao que tudo indica, estivemos andando em círculos todo esse tempo.
— Talvez seja melhor sairmos da estrada.
Considerando que a estrada não tinha levado a lugar nenhum, aquela não era uma ideia completamente idiota. Talvez ver um pouco mais da paisagem ao redor ajudasse. Dessa vez, decidiram virar a oeste. Caminharam em silêncio por vários metros antes que a pedra tornasse a aparecer. Heng não fez questão de esconder sua raiva dessa vez.
— Dane-se! — ele esbravejou. — Não faz nenhum sentido. Nós nem estávamos nessa maldita estrada!
Lana também poderia ter gritado, mas um arrepio estranho a silenciou. Não, não era possível. Ainda sim, ali estava a pedra. Ela não gostava de pensar no que aquilo significava.
Por fim, não havia nada a fazer além de tentar virar para o sul. A ausência de luz, somada a neblina e a chuva surtia um efeito isolador, quase como se o próprio mundo tivesse deixado de existir. Lana não sabia como o general estava se guiando em meio a penumbra e nem tinha energia o bastante para descobrir. Estava cada vez mais difícil permanecer montada, e ela até poderia ter caído se a pedra não tivesse reaparecido. Mesmo que o mundo todo estivesse escuro, a rocha ainda era bem visível, como tinha sido em todas as vezes antes. Quase como se tivesse luz própria.
— Senhor. — o cansaço exalava da voz de Lana. — Não acredito que devemos insistir nessa caminhada. O sol se foi há muito tempo. Não faz sentido buscar qualquer coisa nessa escuridão.
— Senhora, eu sinto muito. — o cansaço dele também era palpável. — Não consigo entender...
— Não precisa. — ela disse, simplesmente. — Talvez pela manhã a neblina já tenha se dissipado e, se for preciso, poderemos retraçar nossos passos até o início da estrada.
Heng respirou fundo, resignado e entristecido ao mesmo tempo. No fim das contas, a tão aborrecida pedra era o único abrigo que restava. Apesar de ser alta e meio inclinada, ela configurava uma proteção precária contra chuva, que arremetia justamente no sentido contrário ao de sua abertura. Lana pouco se importava. Apesar da capa pesada por causa da água, da armadura que moía seus ossos e dos músculos doloridos, ela simplesmente dormiu. Muito mais rápido do que imaginava. Nem sequer teve tempo para ver Heng se ajeitando antes de pegar no sono e adormecer sobre a grama encharcada.
Naquela noite, Lana sonhou com uma cidade em cinzas embalada pelo pranto de mil órfãos em agonia. Seu rosto estava molhado com as lágrimas ou com o sangue? Ela não sabia. O chão estava cheio de ossos e o ar tinha o odor metálico da morte. Entre as ruínas, uma mulher subsistia. Era pequena, tinha o corpo avantajado e as roupas manchadas por um líquido negro e fedorento. Havia apenas escuridão onde seus olhos deveriam estar, mas Lana reconhecia aquelas feições. Tinha cuidado delas até o seu último suspiro.
Lana sentiu seus pés guiando-a de maneira automática até a figura conhecida. Quando chegou perto, percebeu que a mulher carregava um bebê no colo, envolto em um pequeno trapo puído. Seus braços pareceram terrivelmente magros quando ela estendeu o invólucro. Quando olhou para dentro da manta, Lana viu um recém-nascido desprovido de pele e de todos os órgãos dos sentidos, com a carne sangrenta a mostra.
Por um minuto, ela pensou que a criança estava morta, mas se deu conta que ela só estava fraca demais para chorar. Lana sabia que devia pegar o bebê. Ela também sabia que, no momento que o pegasse, ela também estaria selando seu terceiro encontro com a morte.
Acordou sobressaltada. Não sabia se a pele estava molhada de suor ou de chuva. Heng tinha os olhos muito fixos nela. Ela percebeu que agarrava o pulso do general com bastante força e soltou com um ar envergonhado.
— Peço perdão, meu senhor. — ela disse depressa. — Foi apenas um sonho ruim.
O nascer do sol não trouxe a claridade esperada. O mundo ainda estava meio enfumaçado por causa da neblina e da chuva persistente. Os dois continuavam presos naquele breve instante do tempo em que tudo que havia era eles, o descampado e a pedra. Heng decidiu que era melhor continuar seguindo em frente. Começaram a viajar lentamente pela estrada enlameada, com os vários rastros de onde andaram indo e vindo durante metade da noite. O tempo parecia estar estacionado naquele momento terrível, onde tudo sempre permanecia igual. Pareciam ter se perdido para sempre. Pareciam estar sendo punidos.
— Eu já ouvi falar de algo assim. — Lana disse.
— Do que está falando?
— No Norte, abundam as histórias de pessoas que decidiram viajar durante a lua negra e se perderam para sempre no Outro Mundo, quase como se estivessem presos em um encantamento.
— Acha que fomos pegos por uma bruxa? — ele deu um pequeno sorriso. Lana não gostava de pensar que ele estava debochando dela.
— Não. — ela respondeu. — Mas sei que existem muitas coisas nesse mundo que não podemos explicar. Às vezes, quando a deusa volta sua face negra para o mundo, não existe nada capaz de impedir que os homens se percam, se iludam ou morram.
— Isso não passa de uma crença vã. — Heng replicou. — Não existem deuses. Estamos todos abandonados a nossa própria sorte.
Lana não estava surpresa com aquele posicionamento. Há muitos anos, o avô do atual Imperador havia criado uma lei que tornava seu governo laico, abolindo a necessidade de uma religião oficial. Desde então, um sem-fim de crenças havia se espalhado pelo Império, assim como o ateísmo. Naqueles tempos, talvez fosse mais fácil encontrar homens sem fé do que crentes. Não havia mais magia no sul do mundo. Ou, pelo menos, não parecia haver mais.
— Assim mesmo, o senhor deve admitir que nossa situação é bastante incomum. Quantas vezes vagou dessa forma sem jamais chegar a nenhum lugar?
— Estava de noite, Lana.
— Se o problema era a luz do dia, me diga, general, porque é que mesmo com o sol sobre nossas cabeças, não conseguimos chegar a lugar nenhum?
— Lana. Por favor. — ele pediu.
Lana silenciou, mas não se deu por vencida. Ela conseguia ver a dúvida estampada no rosto dele, o ar de quem tentava assimilar uma verdade difícil de engolir. Apesar disso, Lana não se sentia particularmente orgulhosa. O fato de estarem perdidos no Outro Mundo, ou no que quer que fosse, podia explicar toda aquela situação ruim, mas também significava que eles não voltariam para casa. Ao olhar para névoa, que se estendia ao seu redor como se fosse uma fumaça mágica, Lana teve a impressão de que o mundo havia desaparecido e que até a luz do sol era desconhecida. Até mesmo o silêncio tinha um caráter sobrenatural: o único som que havia era o das patas dos cavalos contra o solo e mesmo esse ruído era um pouco abafado, como se viesse de um plano submerso.
Sem nenhum marco conhecido para detê-los, Lana e Heng continuaram a seguir. A estrada se estendia quase que infinitamente, subindo e descendo as colinas sem nenhum indício de fim. O mundo mantinha a mesma cor, o mesmo jeito, o mesmo cheiro. Prosseguiam sem parecer prosseguir. Andavam sem parecer andar. Tudo que existia era cansaço e tristeza.
Então uma música pareceu romper a realidade ao meio. A névoa afinou e deixou antever um pequeno bosque de bambus. No meio havia uma grande pedra e em cima da pedra havia um bardo vestido de azul, tocando uma melodia suave, mas muito triste, em sua pipa.
— Quem vem lá? — o músico perguntou. A voz dele era tão bela que arrepiava. — São dois viajantes buscando uma canção?
Heng o saudou com um aceno.
— Desejamos saber para onde essa estrada leva. — ele disse.
— Os caminhos por vezes levam a qualquer lugar. — o músico respondeu. Quando ele sorriu, deixou antever uma fileira de dentes bem brancos e alinhados, perfeitos como pérolas.
— Há uma cidade próxima ou qualquer outra habitação humana?
— Existem várias. Não existe nenhuma. Depende de para onde você quer ir.
— O lugar não importa muito...
— Então não importa o caminho que você vai tomar. — o bardo sorriu de maneira enigmática.
Por alguma razão, Lana sentiu seu peito afundar. Heng estava começando a perder a paciência.
— Senhor. — Lana disse rapidamente. — Acredito que uma estalagem bastaria.
— Você é boa quase tomando decisões, senhorita. — o bardo disse. — Encontre um curso de água e então dobre a esquina do rio. Sobre a colina que dorme ao Leste, haverá uma estalagem onde serão bem recebidos.
— Agradeço a orientação, senhor. — Lana agradeceu polidamente.
Ela e Heng incitaram seus cavalos, mas a voz do bardo voltou a soar antes mesmo que eles tivessem partido totalmente.
— Espero que não nos encontremos lá. — e voltou a dedilhar as cordas de seu instrumento.
Quando Lana olhou para trás, o músico tinha desaparecido. Um arrepio percorreu sua espinha e ela decidiu que era hora de esporear sua montaria. Alguns corvos levantaram voo quando os dois viajantes passaram onde eles estavam pousados. Não havia nenhum sentido que houvesse corvos em um bambuzal, mas também não fazia nenhum sentido que houvesse um bosque como aquele no meio de uma paisagem como aquela. Tudo parecia... errado.
— Veja só! — Heng disse quando um pequeno córrego surgiu a sua frente. — Aparentemente, o bardo estava certo. Só não precisava ter nos dado as indicações de modo tão... poético.
— É o que os bardos fazem. — Lana respondeu em tom conciliador.
— Mas é o que eles precisam fazer?
— No fim das contas, a arte está na natureza de todo homem. Estaríamos perdidos sem as rimas e as canções, meu senhor.
Heng a fitou por um momento antes de finalmente concordar. Depois disso, não voltou a dizer mais nada. O córrego logo desaguou em um curso de água maior, assim como o bardo havia indicado. Os dois dobraram à direita exatamente onde regato se transformava em um rio e a saída do bosque logo se revelou. Precisaram andar apenas alguns minutos antes que uma colina surgisse no leste, encimada por uma pequena estalagem. O horizonte assumia os tons dourados do entardecer, com uma espiral de nuvens dançando ao redor do sol. O mundo tinha o adorável tom do fim de tarde e, ao se dar conta disso, Lana sentiu sua garganta travar.
— Acha que viemos na direção certa?
— Ao que tudo indica sim. Por quê?
Porque o sol está se pondo do lado errado do mundo!, ela teve vontade de dizer. O sol jamais se deitava no leste no mundo dos homens, embora as lendas dissessem que o contrário frequentemente acontecia no mundo das fadas. Tendo isso em mente, a nortista simplesmente decidiu não responder. Não queria ter que lidar com a descrença de Heng nem tentar explicar aquilo que estava diante de seus olhos. Mais do que isso, não queria ter que lidar com o fato de que definitivamente haviam se perdido entre as brumas e ido parar em outra realidade.
A estalagem possuía dois andares e era toda feita de madeira. As paredes alvas contrastavam com o tom carmim das vigas e com as telhas cor de jade. Embora as lanternas redondas da entrada estivessem acesas, nenhum som vinha do interior do edifício. Lana foi a primeira a reparar no nome gravado na placa sobre a porta.
— O Último Floreio.
Heng franziu o cenho.
— Você conhece esse idioma?
— Jamais o vi em toda a minha vida.
O idioma era definitivamente estranho e possuía uma sequência difícil de compreender. Era quase como se as letras se misturassem e começassem a dançar ao redor umas das outras, se recusando a formar palavras. Apesar disso, mostrava-se tão legível quanto a língua em que Lana tinha sido educada ao nascer. Heng se sentia da mesma forma, mas não era homem de admitir essas coisas em voz alta. Na verdade, ele preferia não pensar no que aquilo significava. Por isso, se resignou a dizer para Lana conduzir os cavalos até o pequeno anexo que servia de estábulo antes de finalmente adentrar na estalagem.
Um pequeno sino colocado sobre a porta tintilou quando Heng entrou no recinto. As cinzas da lareira ainda emanavam calor e, embora todas as mesas estivessem vazias, a estalajadeira estava de pé na outra ponta do balcão.
— Entre, entre querido! Está bem frio aí fora!
Mesmo que suas feições fossem jovens, havia qualquer coisa em seu modo de agir que lembrava alguém bem mais velho. Baixinha e rechonchuda, a mulher possuía um rosto vermelho e perfeitamente redondo, com olhos bem escuros e um nariz arrebitado. Cachos da cor do trigo vazavam pelo lenço e se derramavam sobre a testa, dando-lhe os mesmos ares que uma ovelha teria se usasse roupas.
— A senhora ainda possui leitos disponíveis?
— Chegou bem a tempo de conseguir o último! — seu rosto se contorceu em uma expressão de desconfiança divertida.
— Mas não esperava ver alguém como o senhor por aqui. — ela refletiu por um breve instante antes de continuar. — Deixe-me adivinhar! O senhor deve ter viajado de noite e se perdeu. Tolinho! Nunca te disseram que não é bom viajar em noites de lua nova?
O riso da mulher encheu o ambiente.
— Pelo menos você chegou bem a tempo da nossa festa!
O ar de confusão no rosto de Heng o entregou antes de sua fala, e a mulher tornou a tomar a palavra antes que ele pudesse responder.
— Todo ano, nessa noite, as pessoas vêm de muito longe para sentar no meu salão e comemorar com aqueles que não viam há muito tempo. Costumamos receber todo tipo de gente, mas os oficiais como você vêm muito pouco, ainda mais acompanhados de uma bela dama. — e deu uma piscadela animada.
— Como você sabia que eu estava acompanhando de uma senhora? — Heng se permitiu perguntar bobamente.
— Algumas belezas não podem ser escondidas mesmo debaixo de todo aço do mundo, meu senhor. — a estalajadeira tornou a sorrir.
Heng chegou à conclusão de que havia algo de muito errado com aquela mulher.
— Eu não tenho um nome determinado, então o senhor pode me chamar pelo seu desejo.
— Do que está falando, mulher?
A estalajadeira suspirou com o ar entediado de quem tinha explicado a mesma coisa mil vezes.
— Nesse lado do mundo as coisas são assim, tolinho. O sol não tem lugar para se deitar e às vezes a manhã jamais vem. Poucas coisas possuem nome próprio, mas todas elas têm significado. Eu não sou ninguém e, justamente por isso, posso ser qualquer coisa que você quiser.
Definitivamente não vou tomar a cerveja desse lugar, Heng pensou.
— Só não vale me chamar de Lana! — a estalajadeira completou antes que ele pudesse falar e soltou uma alta gargalhada. Heng a fitou com sangue nos olhos e, ao notar o constrangimento dele, ela simplesmente parou de rir, tão de repente quanto tinha começado. — Você não entende o que eu quero dizer, não é? — ela perguntou muito séria. — Nesse caso, vou ter que escolher para você.
Heng se sentiu paralisado quando notou que a mulher o encarava. Seus olhos estavam tão negros que não pareciam ter fundo, quase como os de um animal. A pele do general estava gelada, a saliva secava na garganta. A mulher parecia desvelar sua alma e brincar com os seus segredos com as pupilas, tocando o mais profundo do seu espírito.
— Você é um homem engraçado. — ela sussurrou. — Desejou ver algo que te soasse familiar, e quando viu a pedra não gostou dela. Quando ficou cansado, o destino te deu uma estrada, mas você não soube para onde ir. Precisou que a mulher que te acompanha te mostrasse o caminho, e ela ainda continuará fazendo isso muitas vezes no futuro. No seu coração, a única coisa que você deseja é a sua casa... — então um sorriso largo esticou suas bochechas e toda tensão pareceu desaparecer. — Já sei! Pode me chamar de Luna Serena. A serenidade do luar é a única coisa que pode te levar para casa agora.
Heng não queria ficar naquele lugar nenhum minuto a mais. Luna Serena pareceu sentir sua ansiedade e segurou a mão dele antes mesmo que ele pudesse se mover. Gentilmente, depositou uma pesada chave de ferro em sua palma, com um pedaço de tecido branco amarrado na ponta.
— Como eu te disse, esse é o nosso último quarto disponível. Haverá um preço por ele.
— Pagarei em prata. — disse o general, mesmo convencido de que não valeria nem mesmo um vintém de cobre.
— As estrelas do céu me servem melhor que a prata dos homens. — Luna respondeu enigmaticamente. — Não aceito moedas, senhor. Para compensar o quarto, terá que me deixar algo do tamanho da sua necessidade. Pegará o que eu posso oferecer e deixará para trás o que não vai mais ter uso. No seu caso, pode ser o ódio que sente daqueles que te feriram. — bateu os cílios rapidamente, como se uma ideia a tivesse acometido. — Ou a sua armadura!
Heng puxou a mão da dela rapidamente, transtornado.
— Não vou deixar minha armadura! Pensa que sou louco?
Luna Serena não se deixou abalar.
— Mesmo assim, haverá um par de roupas tão comuns quantos as pedras do chão que está pisando em seu aposento. Para o senhor e para a sua senhorita. Vão servir bem no meu mundo e no seu, caso mudem de ideia.
A estalajadeira deu uma risada suave que fez com que um arrepio percorresse a espinha do general.Heng decidiu não responder mais. A aflição lhe corroía as entranhas. Tinha que chegar até Lana e chegar já. Precisavam partir.
Ao chegar na porta, Heng cometeu o erro de olhar para trás, apenas suavemente pelo ombro. Não durou mais do que um segundo, mas foi o bastante para que ele divisasse o sorriso imenso e misterioso que tomava conta da face de Luna Serena.
O general apressou-se para chegar até o estábulo. Havia algo terrível sobre aquele lugar, embora ele não soubesse exatamente o que era. Sua intenção era partir o mais rápido que pudesse, sem se demorar um minuto a mais do que o necessário. Lana, no entanto, parecia ter outros planos. Heng a encontrou deitada sobre uma pilha de feno, agarrada em seu elmo e imersa no mais profundo sono. Aflito, o general tentou acordá-la, mas o máximo que recebeu como resposta às suas súplicas foi um suspiro sonolento em vshikka.
Decidiu que não podia culpá-la, afinal tinham viajado uma noite inteira sem nenhum descanso. Lana estava tão bela em seu sono que seria um pecado acordá-la, no fim das contas.
Contemplá-la assim, tão suave e adormecida, trouxe luz a razão de Heng ter aceitado a chave. Ele era um soldado e estava acostumado a dureza de uma estrada, mas Lana não passava de uma senhorita. Provavelmente, sequer tinha nascido como uma criada, pois possuía aquela petulância que era tão natural aos nobres. Não desejava de modo nenhum permanecer naquele lugar, mas permaneceria por ela. Apenas para lhe dar o descanso merecido antes que a tempestade viesse para afogar novamente a brevidade da bonança.
Fatigado, deixou seu corpo cair ao lado do da moça. Recordando que não era seguro abaixar a guarda, sentou-se muito empertigado e fechou os dedos ao redor do cabo da espada, mantendo os olhos fixos na porta do estábulo. O sono veio ao seu encontro mais rápido do que ele gostaria de admitir e, antes que se desse conta, já tinha se deixado arrastar para a terra dos sonhos.
Naquela noite, Heng sonhou com uma rainha negra que usava uma coroa de sangue e ossos. Ele conhecia aquele rosto. Seu nome estava na ponta da língua, mas ele não conseguia se lembrar. Ele sabia, mesmo que sem saber totalmente, que aquelas eram as feições nortistas que ele tanto havia aprendido a adorar.
Mas não pertenciam a pessoa que ele adorava.
De forma alguma. Não mais.
Aquele era o espírito da vingança e ele vinha cobrar seu preço.
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