21. Fuga

O coração de Lana partia toda vez que seus olhos pousavam no doutor Lewie. Despojado da profissão e da esposa, as duas coisas que mais amava, o homem havia se tornado um fantasma esquálido daquilo que costumava ser, com olhos fundos e entristecidos.

A própria Lana se sentia sufocada e triste. Para ela, a experiência do cárcere domiciliar equivalia a estar presa numa sala escura, onde nenhuma notícia do exterior podia alcançá-la e a passagem de tempo fazia pouco sentido. Não podia evitar os paralelos com a sua vida passada, pois mesmo que ela não fosse mais uma imperatriz humilhada, ela ainda estava trancada esperando a sentença de um crime que não cometeu. Sequer sabia do que a senhora Tiana estava sendo acusada. Haviam muitos guardas cercando o Curatório, mas todos se recusaram a falar com ela.

A parte mais difícil, evidentemente, era não se deixar consumir pelo medo. Lana lidava com isso tentando tornar os dias de Lewie melhores, procurando coisas que ajudassem o seu mestre a distrair a cabeça. Jogava xadrez com ele e até mesmo chegou a ler algumas poesias de um antigo livro de sua senhora, pelo menos até que a memória dela se tornasse dolorosa demais para os dois suportarem. O melhor caminho, entretanto, parecia ser contar as lendas de seu país. Lewie verdadeiramente admirava os contos de tão distante terra e quase não parecia se incomodar muito com todo resto enquanto os escutava.

Numa tarde, juntaram-se para finalmente limpar a bagunça. Embora já tivessem se desfeito dos frascos e dos móveis que haviam se quebrado quando a guarda veio buscar Tiana, ainda havia uma bagunça mínima, muito ligada a desordem emocional que afligia o peito dos dois.

— Veja, Lana! — Lewie disse animadamente, enquanto puxava um amontado de tecido de um baú velho. — A flâmula de minha casa!

Com uma boa sacudida, Lewie desvelou uma bandeira verde encentrada por um caduceu pintado de negro. Abaixo da figura, um lema podia ser notabilizado: Enfermos não têm nome.

Lana soltou um suspiro.

— Eu não sabia que o senhor fazia parte de uma Casa Nobre!

— Não faço. — Lewie disse. — Mas é um erro imaginar que uma família só pode ser uma Casa se ela estiver vinculada à nobreza. No mundo fora desse palácio existem muitas famílias tradicionais que transmitem seu ofício de geração em geração. Eu, por exemplo, descendo de uma longa linhagem de médicos.

— Acho que já ouvi algo do gênero, senhor. — concordou Lana. — Lembro de ter ouvido alguém dizer que nas cidades do leste as famílias treinadas em ofícios ancestrais colocam flâmulas em suas portas para que as pessoas saibam a onde ir caso precisem ser atendidas.

Aquele conhecimento não necessariamente era fruto de uma informação recebida. Ela apenas tinha uma vaga lembrança de algo que tinha visto há muito tempo atrás, numa viagem que fizera na vida antes dessa.

— Definitivamente. Minha família costumava ser uma dessas. — a voz do médico soava muito nostálgica. — Tive um ancestral que já exercitava o ofício médico muitos séculos atrás e que vivia em Belpast, que fica muito perto do seu Norte, menina.

— Oh! Quer dizer que o senhor também tem gelo nas veias? — ela brincou.

— A essa altura, creio que meu sangue tenha se diluído tanto que seria ousado de nossa parte tentar estabelecer qualquer parentesco. — Lewie tinha um meio sorriso nos lábios. — Vale dizer que nos espalhamos bastante e que eu tive parentes que serviram tanto nos pequenos povoados no nordeste quanto nos grandes reinos que se erguem além do mar. Onde precisavam, ali estávamos.

Enfermos não têm nome. — Lana ecoou em tom solícito.

— Você entendeu, criança. — o sorriso do doutor se alargou diante do raciocínio rápido de sua criada. — Para nós, as posses de nossos pacientes, assim como o fato deles terem vindo ou não de uma Casa Nobre, pouco importa. Ter um sobrenome que inspirasse riqueza ou nenhum sobrenome não fazia diferença se estivesse doente ou ferido. Um paciente é só um paciente e não importa quem ele é ou tenha sido antes disso.

— Não agradaria nenhum pouco ao Imperador ouvir o senhor falando desse modo, mestre. — Lana disse com uma pitada de malícia divertida, recordando da segregação que sempre tinha existido no Palácio Imperial.

— Ora, é justamente por causa disso que eu mantenho essa bandeira escondida! — o mesmo tom de divertimento pairava na voz de Lewie. — Não sou o primeiro a servir um grande senhor, mas definitivamente sou o primeiro a servir um Imperador. Antes de mim, meu pai cuidou carinhosamente do povo de Ronan, e meu avô antes dele. Meu bisavô era mestre dos fármacos na casa de um conde, e meu trisavô havia deixado o palácio de um rei para ajudar os mais pobres... Sou fruto de um grande legado e tenho que honrá-lo.

Uma sombra passou pelo rosto do médico e Lana viu seus dedos apertarem a bandeira com mais força.

— Sinto muito atormentá-la com isso. O que uma serva poderia saber de pesos familiares?

Tenta herdar o Norte para você ver, seu filho da...

Lana cortou o pensamento na metade. Não queria ser mais maldosa do que o necessário.

— Todos estamos vergados sob o peso de nossos legados, meu senhor, sejamos nobres ou simples plebeus. — ela disse com candura. — Às vezes precisamos lidar com legados ancestrais e com o peso das expectativas que colocam sobre nossos ombros, mas outros precisam superar a ausência. Tudo isso é natural, mas pode ser bastante perigoso se não soubermos identificar quem somos nós apesar da nossa família.

Lewie anuiu com um gesto de cabeça. Quando levantou seus olhos para o rosto dela, Lana percebeu que havia qualquer coisa de diferente neles.

— Você fala muito bem e é inteligente. Às vezes me esqueço que você é uma criada e não uma senhorazinha.

Lana deu de ombros, com um sorriso se formando em sua face.

— Ora, meu senhor, na verdade estou escondendo três feudos e uma pepita de ouro bem embaixo da minha cama!

Lewie ficou confuso por um breve segundo, mas logo explodiu em risadas.

— Agradeço pela sua amizade, Lana. — apesar dos resquícios de divertimento, a voz dele soava um tanto fraca. — Não sei o que faria sem ela.

— Digo o mesmo, senhor. — ela retrucou com candura.

Lewie pegou a mão dela e apertou em um gesto de amizade. Naquele breve momento, parecia que tudo ficaria bem apesar do gosto amargo do desconhecimento, e Lana desejou que a vida pudesse ser sorrisos e piadas para sempre, evitando toda a obrigação.

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As plantas do herbanário tinham sofrido com a falta de cuidado nos últimos dias. As folhas estavam secas depois de todo aquele tempo sem água e as flores murcharam e se espalharam pelo chão. Havia terra e cacos de vasos para todos os lados.

Isso teria partido o coração de Tiana, Lana pensou com tristeza. No mesmo instante, e resolutamente, concluiu que não precisava ser assim e decidiu deixar tudo em ordem para quando sua senhora voltasse.

Com bastante cuidado, Lana tratou de tentar resgatar os brotos dos vasos espatifados. Jamais tinha precisado plantar nada na vida, então podia apenas torcer para ter feito corretamente. Pouco a pouco, limpou a sujeira do chão e colocou as estantes em seu devido lugar. Não tinha uma ideia clara do que podia ser salvo, então torceu para estar cortando os ramos certos ao decidir que as plantas precisavam de uma poda.

Rapidamente ela entendeu porque Tiana se agradava tanto daquele trabalho. Era deveras relaxante cuidar das plantas e a mente mal divagava enquanto as mãos estavam ocupadas. Poderia ter ficado ali para sempre se Lewie não tivesse surgido na porta, esbaforido e com os olhos arregalados.

— Venha depressa, Lana! Há um soldado aqui...

Lana sentiu as mãos tremerem enquanto tentava limpá-las na saia de seu vestido. O coração martelava contra as costelas quando ela se encaminhou até a sala com os leitos e se postou com a cabeça baixa atrás de seu mestre, torcendo para que o visitante não se incomodasse com sua aparência nada apresentável. A boca estava tão seca de ansiedade que a textura de sua própria língua lembrava uma lixa. Sentia-se perfeitamente como uma condenada prestes a receber a sentença de morte.

O visitante estava sozinho. Era um soldado alto e de ombros largos, metido numa armadura lamelar e portando um elmo que cobria sua face. Quando fez um gesto indicando que ela deveria fechar as venezianas, Lana sentiu que sua mão parecia grande e terrível. Perguntou-se, por um momento, se ele estava ali para esganá-la com ela, mas se obrigou a espantar esses pensamentos, Antes que pudesse conjecturar algo mais, o sujeito misterioso tirou o elmo e Lana sentiu uma onda de alívio tomando o seu corpo.

— Lorde Heng. — Lewie disse com uma mesura. Lana rapidamente imitou o movimento de seu mestre. — É um prazer recebê-lo.

— Ora, vejam só vocês. Da última vez que os vi, tinham sorrisos em seus rostos. Agora estão tensos como um tronco de árvore. — o rosto de Heng permanecia sério como sempre, mas Lana conseguia ver a bondade espelhada em seus olhos. — Não deveriam agir de tal modo, embora seja justificado que o façam. Mesmo agora nessa situação difícil eu continuo sendo um aliado.

A voz de Lewie não tinha sinal de zanga quando ele tornou a falar, apenas transmitia um enorme cansaço:

— Se é mesmo nosso aliado, senhor, diga-nos por que tudo isso está acontecendo. Por que, afinal de contas, levaram minha esposa?

Não sem bondade, o general colocou-os a par de tudo que estava acontecendo. Contou que Tiana havia sido lançada as masmorras por causa de sua suposta tentativa de assassinato e que o Imperador, ao invés de condenar todos a morte, havia instaurado um inquérito para averiguar a situação. Assim sendo, seria necessário que eles fossem mantidos em prisão domiciliar até a liberação da sentença.

— Isso é um absurdo! — Lana exclamou repleta de raiva. — Mesmo que Tiana tivesse a capacidade de fazer tamanho mal, ela não possuía nenhum motivo para querer atentar contra a vida da consorte. Que mulher seria tola para arruinar sua própria vida pondo em cheque a vida do filho do Imperador?

Lewie fechou os olhos e apertou os dedos com força, permanecendo imóvel enquanto Lana bradava sua raiva. A voz do médico era muito dura quando ele voltou a falar:

— Isso é uma injustiça sem tamanho! A Tiana não fez nada, ela não seria capaz... — seu pomo-de-adão desceu sofregamente, como se ele estivesse engolindo as próprias palavras. — Minha esposa pode morrer por causa de uma injustiça e eu sequer posso ajudá-la!

Lana exasperou-se. Um desespero disforme começou a tomar conta dela, pois ela sabia que havia razão nas palavras de seu mestre.

— Deve haver algo que possamos fazer... — ela sussurrou. — Não acredito que nossa inocência pode ser provada por meios legais se alguém da própria casa do Imperador se voltou contra nós, mas deve haver uma maneira que ainda não pensamos.

— Não, Lana. Se uma consorte deseja que Tiana seja morta, ela o será, e nós provavelmente morreremos com ela...

Quando o olhar dos dois se encontraram, Lana se deparou com olhos cheios de dor e mágoa. Sem pensar duas vezes, e abandonando qualquer noção de decoro, ela envolveu seu mestre em um abraço sentimental. Lana sentiu quando o rosto de Lewie começou a ficar úmido e parecia-lhe que seus próprios olhos fossem nuvens carregadas prestes a ruir.

A justiça era implacável, mas terrivelmente falha. Ambos tinham consciência que ela dançava conforme a música tocada pelos nobres, especialmente dentro das dependências do Palácio Imperial. Alina podia estar a pouco tempo na corte, mas por ser uma consorte real era tolice esperar que ela tivesse pouco poder, mesmo que ainda não fosse tão poderosa quanto as outras esposas.

A voz de Heng soou como uma lanterna na escuridão.

— Estou aqui porque acredito poder ajudá-los.

Lana não se lembrava de ter sido contemplada com tamanha gentileza por outros olhos masculinos em toda a sua vida. Heng sacou um pequeno invólucro da bolsa que levava em seu cinto e se aproximou. Puxou a mão da moça e depositou o pacotinho em sua palma, demorando um segundo a mais do que deveria apenas para ter um motivo para tocá-la. Quando Lana abriu o pequeno pacote, deparou-se com um chumaço de ervas que tinha um odor tão forte que lhe deu vontade de vomitar.

Heng se adiantou para explicar.

— Já não é novidade que Nina serve agora a quinta esposa. Há cerca de dois dias, ela me enviou isto junto com uma mensagem em que dizia que Alina preparava beberagens com essa erva para ficar doente antes da visita do Imperador. Aparentemente o médico que a trata sabe disso e a encobre.

Lana prendeu a respiração por um breve instante, embora ainda conseguisse sentir as dúvidas de seu patrão.

— É uma evidência importante, lorde Heng, mas eu não entendo como ela sozinha pode provar que na verdade somos inocentes e que Alina é uma falsa.

— Essa não é a única evidência que temos, meu senhor. — Lana disse de modo baixo e trêmulo, mas mesmo assim pareceu que sua voz preencheu todo o ambiente. Os olhares dos homens caíram sobre ela como chuva fria e, sentindo um arrepio na espinha, ela soube que precisava continuar falando. — A quinta consorte tem um caso extraconjugal com o Príncipe Herdeiro. Existem muitas fofocas maldosas circulando pela corte, mas essa não é uma delas, pois eu mesma tenho em minha posse correspondências trocadas entre os dois e um medalhão que tem seus nomes gravados.

— Lana! — Lewie estava horrorizado.

O mesmo assombro que havia na expressão de seu mestre havia recaído sobre os olhos de Heng. A expressão do general, quase sempre impassível, havia cedido brevemente lugar a uma face de descontentamento. Lana sentia-se incapaz de suportar todo aquele julgamento.

— Não me censurem! — ela disse com a voz esganiçada. — Não fui que busquei isso, mas enviaram para mim. Acredito eu que algum dos outros príncipes descobriu previamente através de espiões que Alina pretendia incriminar Tiana e foi movido simplesmente pela necessidade de desmoralizar o próprio irmão. Não era segredo na corte que Tiana e Alina se desprezavam, especialmente depois que elas brigaram publicamente nos corredores do Palácio Imperial. Esse tempo todo tivemos um benfeitor que sabia o que ia acontecer e que previu esse momento. Juro que eu não sabia o que fazer com essas coisas até o general aparecer hoje, diante de mim!

Existem verdades que só sabemos que são verdadeiras quando as dizemos. A consciência de suas próprias palavras atingiu Lana como uma pedrada e ela sentiu o estômago afundar diante da constatação de que alguém sabia como as coisas iam ocorrer. Tudo havia sido arranjado apenas para que aquele momento acontecesse, mas ela não sabia o que isso significava. A hipótese que rondava a sua mente era tão aterradora que fazia seu coração palpitar e espalhava um arrepio desconfortável em sua espinha.

Existe alguém feito eu, manipulando as coisas como eu deveria manipular!

Sentia-se tola, desnudada e infeliz. Se ela tivesse parado de brincar de criada e agido antes, ela não estaria sendo manipulada por um desconhecido!

— É verdade o que diz, Lana?

A pergunta a arrancou de modo súbito de suas divagações e ela o encarou por um segundo antes de se dar conta que ele falava com ela.

— Sim, mestre. O senhor mesmo deve se lembrar de quando recebi aquela caixa misteriosa. Estava cheia de pombos-correio mortos. Foi uma mensagem bem clara para mim.

Lewie interpretou o tremor em sua voz de forma errônea, julgando que Lana estava com medo dele e não de outra coisa, e agarrou os ombros da moça com carinho, fazendo-a firmar-se e parar de tremer.

— Sinto muito se por um momento eu desconfiei de você. Todos nessa corte são odiosos, mas eu acredito em suas palavras e me recordo de quando recebeu a caixa. — ele umedeceu os lábios antes de continuar falando. — A questão é... Se o que me disse for verdadeiro, talvez realmente tenhamos uma chance. Talvez o general possa apresentar as provas, afinal ele é um homem respeitado e...

— Não seja tolo, meu lorde. — cortou Heng. — Achei que todos tínhamos chegado à conclusão que a justiça imperial é falha e degenerada. Acredito que apresentar essas provas aos magistrados vai matá-los antes que salvá-los, pois dirão que falsificamos evidências.

Lana assentiu.

— Temos que entregar tudo direto nas mãos do Imperador.

— Mas antes disso precisamos de uma maneira de alegar a autenticidade das provas que possuímos, para que não restem dúvidas. — Lewie disse.

— Vim até aqui hoje porque a minha pretensão é ajudá-lo a fugir. Não agora, é claro, mas consegui roupas de soldados para os dois e pretendo retirá-los mais tarde, deixando homens de confiança em seus lugares. — Heng disse. — Acredito que uma vez livres, podemos ir atrás de outro médico que seja capaz de enumerar as propriedades dessa erva, mas ainda precisaremos justificar as cartas e o medalhão.

— Acredito que o medalhão tenha sido fabricado por um mestre joalheiro da própria Cidade Imperial ou das proximidades, afinal a consorte não foi trazida de um lugar distante para se casar, mas encontrada. — Lana disse. — Se não pudermos encontrar o autor, talvez possamos encontrar outro ourives que seja capaz de, pelo menos, atestar a idade da peça. Acreditando que provando esses dois pontos, já vai ser o suficiente para que o Imperador reconheça a autenticidade das cartas, afinal é improvável que ele não conheça a letra de sua esposa e de seu filho.

Heng assentiu. Apesar dos pesares, Lana quase sentia esperança. Querendo ou não, aquela era sua melhor oportunidade.

— Existe um problema, no entanto. — Lewie interveio. — Eu não posso partir.

Os três se encararam por um segundo.

— Vão matar Tiana. — Lana interrompeu. Ela havia rapidamente compreendido a natureza do problema. — Se o meu senhor simplesmente desaparecer agora, parecerá que ele abandonou a esposa à própria sorte. Seria praticamente admissão de culpa.

— Eu pensei nisso. — Heng parecia muito cansado. — Mas não imaginei que nossa viagem pudesse se estender para tão lnge. Eu não tenho meios para libertar a senhora Tiana ainda, mas consigo colocar outra serva em seu lugar se quiser partir comigo, Lana.

— Se for possível, penso mesmo que você deveria ir. — Lewie disse, fitando-a.

Lana sentiu um breve incômodo, pois pareceu-lhe que os dois homens estavam decidindo por ela. Espantou essa sensação tão rápido quanto ela surgiu, pois compreendia a tolice de pensar daquela maneira. Lana sabia muito bem que o único caminho era para frente de modo que, mesmo que os dois tivessem sugerido algo diferente, ela jamais teria encarregado o general da tarefa de provar a sua inocência por ação própria. Resignada, mas também confiante, ela assentiu e selou com seus interlocutores uma espécie de pacto de empenho mútuo em direção a inocência.

Quando Heng retornou, já era tarde da noite. Estava vestido como um dos guardas de posição inferior, usando uma peitoral de couro sobre uma cota de malha e um capacete de metal que escondia sua face. Lana não sabia como ele tinha conseguido passar pela escolta externa, ainda mais acompanhado de outro indivíduo que vestia trajes iguais aos dele, mas não tinha tempo para fazer perguntas.

Lewie colocou os dois para dentro apressadamente. Quando o guarda misterioso revelou sua identidade, Lana não pôde conter a felicidade ao topar com Linete. Ela devia saber que não poderia ser diferente. As duas se abraçaram brevemente.

— Eu fiquei tão preocupada com você! — Linete disse.

— Eu só tenho a agradecer pelo seu empenho, minha amiga. — Lana disse com a voz meio embargada enquanto segurava as mãos da outra mulher nas suas. — Mas não vão sentir sua falta nas cozinhas?

— Pensam que ela partiu junto comigo há algumas horas. — Heng disse. — Como a paz do Imperador foi feita na última região conflituosa há algum tempo, eu disse que gostaria de aproveitar esse período de calmaria para avaliar minha propriedade em Weil. De resto, bastou solicitar uma cozinheira e simular uma partida hoje mais cedo...

Lana sorriu diante da artimanha, mas eles não tinham mais tempo para conversar. Ajudou Linete a despir sua armadura e passou para ela seus trajes verdes de assistente. Lana percebeu com alguma surpresa que a cor caía muito bem na amiga quando ela terminou de colocar o vestido que era seu. Talvez um dia, se fosse possível para Lana se aproximar mais da Alta Nobreza, ela convencesse Lewie a ceder seu cargo para Linete.

As mãos de Linete demonstraram agilidade incrível ao prender todas as fivelas da armadura de Lana, quase como se ela tivesse tido muita experiência lidando com aquele tipo de traje. Uma conclusão indecorosa assomou a mente de Lana, mas a moça evitou se prender a ela enquanto atava a bainha da espada à cintura. Estava pronta para partir e isso é tudo que bastava.

Lewie a esperava com ansiedade. Heng parecia tão plácido quanto as águas intocadas de um lago. O general se aproximou dela e cuidadosamente colocou-lhe o elmo, selando sua identidade sob o metal frio. Quando Lana foi se despedir de seu mestre, percebeu que as mãos dele tremiam. Apesar disso, sua voz soava firme quando pediu que ela tomasse cuidado na estrada. Precisou ser rápida ao falar com Linete, pois temia que a jovem começasse a chorar e fizesse com que ela própria se debulhasse em lágrimas.

O ar noturno atingiu-a com uma lufada fria, mas o que realmente fez Lana estremecer foi a presença dos soldados na parte externa da casa. Depois de todo aquele tempo enclausurada, era estranho estar próxima daqueles homens, que poderiam condená-la com um só gesto. Além disso, havia aquele súbito medo do reconhecimento. Uma mulher simples jamais poderia se portar como um soldado, mesmo vestida como um, e Lana sabia que isso ficava evidente na sua postura.

Trêmula, tentou aprumar a coluna e pousou a mão esquerda sobre o cabo da espada, intencionando disfarçar a agitação de seus dedos. Abaixou levemente a cabeça, permitindo que as sombras da noite escondessem ainda mais as suas feições delicadas. Agradeceu intimamente pelas manoplas que recobriam suas mãos, pois do contrário seu tom de pele se faria rapidamente notável. Lana nunca tinha visto um soldado negro e não queria atrair para si a atenção de ser o prieiro.

— Alto! — um guarda gritou, aproximando-se deles. — Vocês, homens enviados, atualizem-me sobre a situação.

— Não sabemos muito, senhor. — Heng respondeu forçando um sotaque do leste e carregado nas vogais, fazendo sua voz soar muito diferente e estranha. — O magistrado ordenou que aqui viéssemos e que revistássemos a casa em busca de algo estranho, mas não havia nada que saltasse aos nossos olhos.

— Quando a senhora foi presa, homens sob o meu comando cuidaram da revista. — a desconfiança pingava da voz do soldado. — Por que é que fugiriam do procedimento padrão e fariam uma nova, ainda mais com só dois homens?

— O Magistrado Braqen decidiu adotar uma técnica de susto. — apesar do sotaque estranho, a voz de Heng soava bastante calma. — Pediu que viéssemos aqui e déssemos uma olhada na casa, prestando atenção em todos os detalhes. Era nosso dever fazer isso de forma não violenta e atenta, para que pudéssemos voltar depois com um contingente maior e tornar a investigar. Se em nossa segunda vinda percebêssemos que algo foi mudado de lugar, isso poderia significar que o veneno ainda está aqui e que pode ser encontrado e investigado.

Lana não se sentiu convencida por aquela explicação, mas pôde notar que o guarda acreditou nela. Os olhos do homem fitaram a casa por um breve instante e depois sua cabeça se moveu em concordância com o que tinha sido dito, como se a teoria de Heng fosse muito lógica. Era apenas um oficial e não fazia sentido exigir dele o raciocínio de um general.

— Espero que morram todos. — o guarda disse friamente. — Há pouco tempo, esse homem mesquinho limitava seus atendimentos somente aos mais ricos. Minha esposa faleceu por causa dele. — seu rosto se crispou numa careta de ódio. — Maldito! — e cuspiu no chão, em um gesto de claro repúdio.

A raiva era notável na expressão de Lana quando finalmente saíram de perto do soldado. Heng percebeu que seus olhos faíscavam, mas sentiu-se grato pela capacidade da moça de se conter e não colocar tudo a perder. Dois cavalos os aguardavam nos limites externos do Curatório e Lana provou-se capaz de montar tão rápido quanto o general.

— Mantenha a cabeça baixa e não fale com ninguém até sairmos do Palácio. — Heng recomendou em um sussurro.

Lana simplesmente obedeceu e tocou a sua égua em direção a profunda escuridão que os esperava além do infinito.

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