20. Entimema
NINA
Nina podia ter esperado tudo depois daquela fatídica noite, menos a normalidade que se seguiu.
A aventura por si só havia sido meio decepcionante, afinal Nina não tinha noção que aventuras poderiam ser tão cansativas. Por causa disso, ela acabou criando muitas expectativas em relação ao que viria depois. Agora ela e Alina compartilhavam um segredo e, como uma mestra dos segredos, Nina sabia como esse tipo de coisa era capaz de vincular duas pessoas.
Depois de deixar suas irmãs na torre, Alina simplesmente se recolheu em seus aposentos privados para descansar. O dia já estava nascendo, mas quando se é um nobre existe a liberdade de dormir por quanto tempo você desejar. Nina teve permissão para repousar também, mas a curiosidade crescente não a deixou dormir. Não tinha passado pela sua cabeça que Alina traria aquelas mulheres para o Palácio, e agora que elas estavam lá era impossível supor o que aconteceria.
Quando a consorte acordou, Nina foi depressa servi-la, na esperança de ter mais notícias. Para seu desapontamento, Alina tinha simplesmente voltado a agir como sempre tinha agido, sem dar nenhum indicativo que o resgate das prostitutas tinha mesmo sido real. Era como se o episódio daquela noite jamais tivesse acontecido.
Nina decidiu conceder uma colher de chá. Talvez ela estivesse cansada ou receosa demais para falar sobre o assunto naquele momento e preferisse se abrir depois. Entretanto, esse depois nunca veio. Durante os três dias que se seguiram, Nina sentiu que estava sendo devorada pela sua própria curiosidade. Se não tivesse tanta certeza que seria chicoteada se o fizesse, ela mesma teria perguntado.
E então, sem mais nem menos, as coisas pareceram retornar.
— Nina. — a consorte chamou com estranha candura. Naquela ocasião, as duas se encontravam na sala de banho, com Alina imersa até o pescoço numa grande banheira de bronze. — Se pudesse dar um conselho para o seu eu do passado, qual conselho você daria?
Nina não sabia o que dizer.
— Talvez eu dissesse para ser forte ou não desistir...
— Não. — Alina cortou. — Isso é muito genérico. Tem que ser algo que você realmente gostaria de ouvir.
Nina pensou por alguns segundos, mas foi incapaz de chegar a qualquer conclusão. Vendo que a consorte ainda esperava, ela sacudiu a cabeça numa negativa confusa.
— Pois eu diria para Alina do passado jamais confiar em estranhos. — seu tom era ao mesmo tempo pensativo e triste. Um longo silêncio se seguiu antes que Alina voltasse a falar. — Você foi benevolente comigo, então em troca darei as respostas que você busca.
O coração de Nina saltitou de felicidade.
— Senhora? — ela perguntou apenas para manter o decoro.
— Apenas escute, criança. — não havia nada de repreensor em tom de voz. — Minha família vem de um lugar muito distante, para além das Ilhas do Verão. Não sei ao certo quando migramos, mas vivemos um longo tempo em Pedra do Rei, sob a proteção da Casa Nobre de lá. Não tínhamos muito, mas éramos verdadeiramente felizes. E se tem algo que eu aprendi nessa vida é que a felicidade nunca é ilimitada, Nina. Quando você se sente muito bem, é bem provável que aconteça algo para estragar seu humor. No nosso caso foi a guerra.
Alina deu outro sorriso triste antes de continuar.
— Naquela época, não tinha como saber ao certo porque o conflito havia começado. A nobreza sempre tem consciência da natureza dos seus embates, mas quando se é pobre e ignorante, tudo que você conhece é a morte e a incerteza. A Casa Stoneregis, que nos protegia, acabou sendo derrotada e nós ficamos sem lar. Eu e minhas irmãs ficamos sozinhas no mundo, pois nossos pais haviam morrido no meio de toda aquela confusão. Eu tinha apenas doze anos, mas estava mais do que decidida a cuidar delas. Não posso dizer que eu fosse madura ou resistente para minha idade. Na verdade, acredito que foi minha ausência de força que causou todo o desastre.
Nina estava completamente vidrada e ouvia com muita atenção. Jamais havia imaginado que Alina podia se abrir daquela maneira, revelando tão abertamente sua história de vida e seus traumas do passado. Em grande medida, Nina também ouvia porque se identificava com ela. Assim como a consorte, ela sabia muito bem qual era a dor de ser uma órfã da guerra perdida pela Casa Stoneregis.
— Acho que, uma vez que você não tem mais seus pais, a coisa que você mais quer ter de volta é a possibilidade de um lar. — Alina continuou. — Claro que seria incrível se pudéssemos ressuscitar os mortos ou viajar para o passado para impedir que todas as coisas ruins acontecessem, mas como não podemos, temos que lidar com nossa necessidade crescente de reconstrução. Quando você não tem um lar, se apega a qualquer coisa que pode se parecer com uma casa. Muitas vezes você confia nas pessoas erradas. Assim como eu fiz... Não me entenda mal. Se fosse hoje em dia, eu provavelmente agiria diferente. Mas nós estávamos tristes, famintas e não havia lugar para nós em parte alguma. Quando aquele homem apareceu e começou a ser tão gentil com nós três depois de todo repúdio que tínhamos enfrentando, pareceu mesmo que um anjo tinha surgido em nossa vida. Ele ganhou nossa confiança, então não pensei duas vezes em nos colocar sob a proteção dele. Foi um erro terrível. Aquele homem transformou eu e as minhas irmãs em prostitutas.
A voz de Alina estava embargada, visivelmente carregada pelo peso da culpa. A consorte parou de fazer contato visual, como se alguma coisa terrível tivesse descido sobre ela. Parecia muito errado dizer qualquer coisa naquele momento, então Nina se manteve silenciosa. Existia uma espécie de sacralidade em coisas tão ruins como aquela, quase tanto quanto havia em coisas muito belas. Nina não tinha e nem queria ter palavras para profanar o momento.
Alina precisou de uma breve pausa para conter as lágrimas e continuar falando. Nina sentia que havia qualquer verdade dolorosa naquelas palavras que fizesse com que ela também precisasse de ar.
— O caminho da prostituição é a própria prostituição. Eu evidentemente tentei nos libertar inúmeras vezes, mas não havia para onde correr. E foi assim que caímos de prostíbulo em prostíbulo, até chegar em Ronan. No meio do caminho acabei conhecendo Ruth, que além de se provar uma companheira leal, sempre me ajudou a cuidar das minhas irmãs. Tudo que eu queria era poder nos libertar daquela vida hedionda e terrível. Éramos simples objetos, que serviam apenas para ser espancados ou usados como convinha. Os homens estavam numa posição de poder em relação a nós e por isso nos enxergavam como seres sem alma. Por causa disso, prometi para mim e para elas que um dia seríamos todas livres. É por isso que precisei te arrastar para tudo aquilo naquela noite.
Nina apenas anuiu. Apesar da sua inexperiência diante da vida, ela sentia que realmente compreendia. Mesmo assim, era como se seu coração estivesse envolto em afiados fios de prata que o cortavam a cada batida.
— Então um dia ele apareceu. — Alina falava com um tom sonhador. — Alto, bonito, bem educado... Sua voz era melodia pura e a pele dele parecia chocolate, com cabelos longos e negros como a noite. Não nos deitamos juntos nenhuma vez, ele apenas vinha ter comigo. Acho que era uma espécie de vidente. Na primeira vez que veio, fez previsões certeiras sobre o governo, mas eu não dei o devido crédito porque simplesmente achava que ele era político. Então, na segunda vez, ele fez previsões certeiras sobre o alcoviteiro. Fiquei desconfiada, tentada a acreditar. Na terceira vez, ele fez previsões muito acertadas sobre mim. Quando ele voltou de novo, eu estava aos pés dele, então ele me disse que via um grande destino para mim, ao lado de um rei... Bom, acredito que ele tenha acertado sobre isso também.
Alina soltou uma gargalhada desprovida de qualquer emoção. Os lábios de Nina se entreabriram num leve sorriso involuntário. Ela não tinha vontade de rir. Na verdade, tinha um terrível pressentimento sobre aquela história.
— Foi profetizado que dali alguns dias um garboso príncipe ia chegar e que nessa ocasião eu deveria me deitar com ele. Era meu dever servi-lo bem e satisfazer seus outros apetites, inclusive os de bebida e comida. Agindo dessa forma, eu faria com que ele se tornasse um frequentador assíduo do bordel onde eu trabalhava. Então, eu deveria usar um amuleto de amor e ele me tomaria como sua. Quando isso acontecesse, seria meu dever cortar a garganta dele. O homem de cabelos escuros garantiu que ele mesmo cuidaria da minha fuga e que não havia nada pelo que temer. Ele era convincente, então é evidentemente que eu decidi obedecer. Não preciso dizer que ele queria que o Príncipe Herdeiro fosse morto e, convencida como eu estava, fiquei totalmente disposta a matá-lo. Porém, eu acabei fazendo algo pior do que isso: eu me apaixonei. E, na ganância da minha paixão, usei o amuleto para atrair a atenção do Imperador. Não carrego um filho dele, mas ele pensa que sim. Acabamos nos casando por causa disso. Me tornei de fato a esposa de um rei, mas não matei ninguém para que isso acontecesse. Agora fico imaginando onde aquele misterioso rapaz anda. Me pergunto se ele virá cobrar a dívida e me obrigar a cumprir com o acordo. Se ele simplesmente vai aparecer e me matar, ou matar Ivan. Não existem certezas nesse mundo, mas eu apenas aguardo. E enquanto espero, todas as sombras que espreitam tem a face dele.
Quando seus olhos se encontraram novamente, Nina torceu para que suas pupilas estivessem carregadas e pudessem transmitir todas as palavras que ela não podia dizer. Ela sentia que havia mil cacos de vidro em sua garganta, que a qualquer momento iam obrigá-la a libertar tudo em um choro amargurado. Era odioso ser tão sensível.
Alina juntou as mãos em concha e mergulhou-as na água da banheira. Lavou o rosto, mas permaneceu com os dedos pousados sobre a face durante algum tempo. A tristeza que tomava conta dela chegava a ser palpável. Parecia outra mulher quando deixou as águas do banho e permitiu que Nina envolvesse seus ombros com um roupão de cetim. Só voltou a falar quando já estavam no quarto e Nina desembaraçava seus cabelos molhados.
— Você sabe por que eu te contei tudo isso, Nina?
— Não, senhora. — ela respondeu enquanto sacudia a cabeça negativamente. — Foi por causa daquela noite?
— Foi porque você é tão parecida comigo que às vezes eu fico incomodada.
Quando os olhos das duas se encontraram no espelho de prata, Nina percebeu que a face de sua senhora ainda estava carregada com uma tristeza latente. Sentia-se muito confusa, tanto que parou de pentear os cabelos dourados e paralisou a escova em pleno ar, enquanto olhava para ela.
— Não se faça de boba. — ao contrário das outras vezes em que ela disse isso, dessa vez não havia nada de agressivo em seu tom. — Você pode parecer uma flor delicada, mas é tão capaz de derramar seu veneno quanto uma serpente. Fazia tempo que eu não via tanta ambição concentrada em uma pessoa só. Na verdade, a última vez que vi algo parecido foi em mim mesma. — Alina girou no banquinho da penteadeira e ficou de frente para Nina, numa posição perfeita para olhá-la em seus olhos. — Não adianta dizer que não. Eu vejo como você inveja meus vestidos ou cobiça minha coroa. Como você cobiça o meu príncipe! Afinal, você também é de nascimento baixo. Quando olha pra mim, vê onde é possível chegar e se anima com isso, embora a inveja te corroa. — o tom dela subia a cada palavra, à medida que a verdade ficava mais evidente.
Pela enésima vez naquele dia, Nina sentia-se imobilizada, sem palavras. Se antes não sabia o que dizer porque queria respeitar a dor de sua senhora, agora lhe parecia que tinha sido pega no flagra, e estava tão acuada quanto um coelho nas mãos de um caçador.
— Você ama os segredos, menina, justamente porque sente que eles te trazem poder. — Alina continuou. — É uma pena que você não use eles para nada. Quando deixar de acumular segredos apenas para o seu divertimento e começar a dar utilidade a eles, aí talvez sim você conheça sua verdadeira capacidade.
— Eu sou apenas uma aia, senhora. — Nina disse em voz fraca. — O que alguém como eu poderia fazer?
Alina estalou a língua em sinal de discordância.
— Quantos anos você tem?
— Dezesseis anos, senhora.
O olhar de Alina perquiriu Nina, percorrendo a sua pele como milhares de insetos rastejantes.
— Não é tão mais jovem assim e já deveria ter alguma maldade. — ela disse depois de uma curta ponderação. — Se você não sabe o que fazer com as coisas que sabe, eu sei.
Quando a consorte se pôs de pé e se aproximou dela, Nina sentiu que seu coração murchava dentro do peito. Alina colocou suas mãos nos ombros de Nina e a fitou com muita intensidade, fazendo com que a aia tivesse a sensação de uma pedra de gelo escorrendo por sua espinha.
— Deixe que os segredos que você sabe me sirvam e eu serei a melhor amiga que você terá. — o hálito de Alina que estava frio ou eram suas palavras que cortavam como gelo? — Seja leal a mim e eu providenciarei tudo aquilo que você deseja. Em alguns meses, te farei esposa de um dos príncipes agnatos e você estará coberta das joias que sempre quis ter. Eu nunca abandono meus amigos e você viu isso com seus próprios olhos. Seja minha amiga, Nina. Você só tem a ganhar.
Ao perceber o quanto sua postura tinha intimidado a jovem, Alina soltou um suspiro e afastou-se dela.
— Não tinha a intenção de machucar você. — seu tom era gentil. — Pense com carinho no que eu te disse. Você é uma menina inteligente, aposto que vai ser capaz de fazer a escolha correta.
Era como se toda aquela conversa tivesse deixado um buraco no peito de Nina. A pergunta de Linete continuamente voltava à sua mente.
Por que ainda serve essa mulher?
A primeira resposta era o status. Evidentemente era melhor ser uma aia que a assistente de um jurista, fosse pelo acesso ao luxo fosse pela forma que as pessoas lhe enxergavam. Evidentemente a criada não poderia ser confundida com a sua senhora, mas agora Nina sentia que existia enquanto um indivíduo. As pessoas conversavam com ela, se aproximavam dela como jamais tinham feito enquanto ela envergava seus trajes esverdeados.
Heng dizia constantemente que a ambição era como um fármaco: adequado na quantidade certa, mortal em dosagem elevada. Nina não se importava. Era um cálice que ela gostava de aceitar, com seu sabor doce e prêmios suntuosos. Parte do segundo motivo dela seguir Alina era esse: uma parte singular de seu espírito estava agora saciada, mas não completamente. Quanto mais provava as delícias da corte, mais gostava delas. Quanto mais tinha, mais queria ter.
Havia ainda um terceiro motivo, provavelmente mais simples, mas infinitamente mais evidente. Nina estava completamente apaixonada por Ivan. Não havia se apaixonado à primeira vista, mas a primeira gentileza, e desde então seu coração se afundava em desejo pelo príncipe. Seu trabalho era, querendo ou não, a única forma de ficar perto dele.
Dar conta disso não tornava as coisas mais fáceis. Pelo contrário, deixava um grande rombo em seu coração, um vazio difícil de explicar. Ao mesmo tempo, havia uma espécie de certeza fatal e Nina precisa lidar com ela, decidir o que fazer a partir dela. O nada não era um estado de privação, mas de potencialidade.
No fim das contas, toda aquela questão não passava de um entimema: uma questão cuja finalidade foi encontrada graças a uma premissa oculta que, mesmo não sendo revelada, ajudava a nortear todo o conflito.
Por causa disso, Nina acabou fazendo uma escolha. Não porque queria, mas porque devia fazer.
Naquela noite, enquanto preparava a beberagem de sua senhora, deixou um punhado da estranha erva escorregar distraidamente para dentro de sua manga. Serviu o chá sem demonstrar qualquer sinal de anormalidade, mas assim que teve um momento sozinha, correu direto para o pombal. Era perigoso enviar uma evidência daquela por correspondência, ainda mais numa época em que todos os pombos estavam sendo vigiados, mas ela precisava arriscar.
O guarda não se incomodou com a sua presença, pois estava acostumado a vê-la de tempos em tempos, nos momentos em que ela ia até lá para enviar as mensagens de sua senhora. O mestre das aves havia se ausentado e Nina agradeceu intimamente por isso, pois ela não tinha inventado nenhuma desculpa que justificasse o que ela estava prestes a fazer.
Os pombos ficavam armazenados numa longa torre, em gaiolas ornamentadas com plaquinhas douradas que indicavam para qual localização as aves em seu interior se dirigiam. Nina abriu a que guardava os mensageiros que partiam para sua residência e agarrou, não sem muito esforço, a primeira ave que conseguiu. O pombo não estava nada feliz com as mãos inexperientes da jovem e demonstrou isso por meio de bicadas agressivas enquanto Nina prendia uma cápsula em cada um de seus pés. A jovem manteve-se resiliente, mas foi tomada de um grande alívio quando finalmente pôde libertar o animal. Por alguns segundos, ela ficou observando enquanto o pombo desaparecia no entardecer, levando consigo não só uma importante mensagem, mas todas as suas esperanças.
Quando voltou para os aposentos de sua senhora, Alina já apresentava uma tez esverdeada e se inclinava sobre um balde repleto de vômito como um suicida na beira do precipício.
— Minha senhora. — Nina soava formal demais até mesmo para os seus próprios ouvidos. — Andei pensando no que me disse e pretendo aceitar a sua proposta. Quando puder me ouvir, desejo dividir com a senhora as coisas que eu sei.
Alina entreabriu um sorriso, apesar de sua condição.
— Sabia que você não ia decepcionar. — disse fracamente.
Nina assentiu timidamente.
— Existem pessoas nesse palácio que não são o que dizem ser. — Nina continuou. — Um príncipe, um cavalariço e até mesmo... — ela precisou respirar fundo antes de dizer as próximas palavras. — E até mesmo a assistente do médico.
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