19. Resgate

Nina

Nas noites anteriores às visitas do Imperador, Nina precisava servir para sua senhora um chá escuro feito de uma erva malcheirosa e bolorenta. Assim, quando a manhã chegava, a consorte já se encontrava vitimada por um terrível estado de enjoo e tremor. Dado o escândalo dos Yohan, foi convocado um médico da cidade apenas para acompanhá-la, mas Alina havia ganhado o favor do homem com alguns dragões de ouro, de modo que ele sempre parecia disposto a mentir por ela. Nina não aprovava esse tipo de atitude, mas estava pouco interessada em se meter nas tramoias matrimoniais. Em nome do poder que ela agora desejava, era melhor fazer silêncio e guardar toda a informação para si.

Em verdade, desde a conversa com Heng, o coração de Nina se encontrava atado em um profundo estado de dualidade. Muitas vezes ela surpreendeu a si mesma girando o saquinho com a estranha erva da consorte em suas mãos, questionando-se sobre o que aconteceria se ela o entregasse para seu irmão. Ela sempre tratava de fazer sumir com essas ideias logo que elas surgiam, afinal não fazia sentido trair seus próprios objetivos. Ela sabia que também não havia sentido em trair sua própria amiga, mas Nina rapidamente aprendeu a minar seu remorso. Talvez Lana sequer fosse uma amiga. Era provável que ela fosse simplesmente uma mulher de nascimento baixo almejando a integração na nobreza através da amizade ou do casamento.

Mas você também não é assim?, a consciência de Nina retrucava incomodamente.

Eu sou muitas coisas, ela respondia.

Inclusive uma traidora!, sua mente insistia.

Aquela discussão interna nunca a abandonava e seu espírito estava constantemente mergulhado num estado de duelo. Inclusive naquele momento, em que ela ajudava Alina a desgrenhar seus cabelos antes que seu marido chegasse.

— Não devia consumir todas essas ervas, minha senhora. — Nina comentou com doçura. — Tenho o pressentimento de que elas fazem mal ao bebê, e é um crime terrível ferir um herdeiro imperial.

Mesmo abatido, o olhar de Alina carregava raiva quando se dirigiu para o rosto de Nina.

— Se me importasse seus pressentimentos eu teria te contratado como minha vidente pessoal e não como minha aia. — cortou Alina. — Além disso, essas ervas me foram dadas pelo próprio Príncipe Herdeiro e ele jamais me faria mal. Elas servem tão somente a um propósito e nada mais.

Nina não teve tempo para contra-argumentar. No mesmo instante ela foi interrompida por uma batida insistente na porta. O arauto real entrou, anunciou o Imperador, e saiu. Logo atrás dele apareceu a própria Majestade Imperial e Real, acompanhado por dois guardas e envergando uma expressão grave em seu rosto.

— Meu senhor... — Alina disse forçando uma voz fraca. — Eu me curvaria, mas minha situação não permite. — e apontou um dedo trêmulo para o balde cheio de vômito que estava do lado de sua cama.

O Imperador simplesmente gesticulou, indicando que aquilo não tinha relevância naquele momento.

— Me surpreende que você ainda esteja mal. — Gaja Navani disse com sua voz de trovão. — Nunca vi um veneno que tivesse efeitos tão longos.

Alina soltou um suspiro profundo e dolorido.

— O veneno feriu a semente em meu ventre, senhor, e todos sabem que quando o filho sofre a mãe também sofre. A dor que eu sinto é a dor da criança e o sofrimento que eu sofro é o mesmo sofrimento que ela sofre.

O Imperador franziu ainda mais o cenho.

— Se te faz mal, é provável que tudo que haja em seu ventre é um cadáver, senhora. — ele pontuou. — Chamarei outro médico, bem mais competente que aquele que agora te serve, e ele poderá nos dirá melhor a causa dos seus males.

— Não! — Alina disse rapidamente. Ao perceber a expressão no rosto do Imperador, ela tratou de reassumir o tom de voz frágil e dolorido. — O doutor Jeffrey cuida muito bem de mim, meu senhor, e não será necessário nenhum outro alguém além dele. Além disso, hoje mesmo eu senti a criança se revolvendo na minha barriga. Seu filho ainda vive.

Gaja se aproximou da cama.

— Então devo acreditar, minha senhora, — ele disse muito lentamente. — que você segue sendo envenenada e os Yohan nada tiveram a ver com o seu mal. — e, com os olhos fixos em Nina, continuou. — Talvez haja um servo ou dois que estejam ao lado de alguém que deseja a sua morte.

Um arrepio cruzou as costas de Nina e, esquecendo-se do decoro, ergueu a cabeça e fitou o soberano, chocada.

— Nina é uma serva fiel, irmã de um servo ainda mais fiel. — Alina cortou. — Não, meu senhor, o problema é evidente. Você que não deseja enxergá-lo.

— Minha senhora?

A expressão de Alina mudou repentinamente. Não haviam mais sinais de fragilidade na sua face, apenas raiva combinada com um imenso desejo. Quando ela ergueu suavemente o corpo e inclinou-se na direção de Gaja, Nina sentiu o Imperador ficando tenso.

— Seu filho clama, meu senhor. Clama pela punição daqueles que nos feriram. — Alina disse. — Clama pelo sangue daquela que ousou tocar em nós.

E, no silêncio profundo e tenso que se seguiu, apenas o vívido azul dos olhos de Alina faiscava.

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Naquela noite, Nina dormiu mal. Em seus sonhos, viu outra vez as ruínas de um mundo destruído e a fumaça que dançava no céu como se fosse um grande dragão. A terrível sombra da morte se espiralava em um turbilhão negro de ódio e ressentimento. Os cavalos escuros pareciam ter saído do inferno, conduzidos por terríveis cavaleiros vestidos de bronze e de sangue. Eram as chamas que consumiam o mundo ou mundo que consumia as chamas? Nina não sabia dizer. Mas, naquele momento em que o estranho homem de olhos carmesim ergueu a espada na direção dela, ela soube que morreria e que o mundo acabaria ali.

A garota acordou sobressaltada e empapada de suor, com o coração acelerado e a boca seca. Uma sombra surgiu diante de seus olhos, assustando-a ainda mais, e ela saltou para trás com um berro. Seu corpo enroscou no manto que cobria a cama e, ao tentar se livrar dele, ela tombou no chão.

— Pelo amor dos deuses, não é necessário tudo isso! — Alina repreendeu da escuridão.

Nina apressou-se em livrar-se do manto, mas agradeceu pela ausência de luminosidade. A vergonha provavelmente tomava sua face com um rubor mordaz e ridículo.

Alina atirou uma pilha de tecido áspero em sua face.

— Recomponha-se e vista isso. Tem cinco minutos para me encontrar no jardim.

Naquela altura do ano, as noites já haviam se tornado mais amenas e a neve já tinha regredido quase completamente, deixando apenas poças enlameadas e montículos semi derretidos em seu lugar. Mesmo que não estivesse fazendo frio o bastante para que ela desejasse estar mais protegida, Nina ainda sim não podia deixar de se sentir desconfortável com os trajes que a consorte lhe dera. Eram roupas grosseiras de plebeu, feitas de um tecido tão ruim que pinicava. Há anos Nina não ficava próxima de nada igual, então era evidente que seu corpo e coração repeliam a ideia. Não só a pele havia se acostumado ao luxo, mas o coração se desgostava das lembranças que aquele tipo de roupa trazia.

Quando Alina finalmente apareceu, ela também usava um vestido simples e sem forma, muito parecido com um grande saco, e uma capa esfarrapada. Era tão estranho não vê-la em seus trajes chiques, mas sua beleza ainda destoava mesmo na simplicidade. Por um segundo, Nina teve inveja dela. Mesmo quando estava coberta de finesses, a garota parecia tão desajeitada! Era muito injusto que a consorte não precisasse de nada disso. Talvez isso justificasse porque o Imperador havia se apaixonado por ela.

— Siga-me em silêncio. — a consorte ordenou entredentes.

Nina apenas anuiu e as duas começaram a andar em direção a parte norte no jardim. Cercada pelos arbustos que floresciam, uma bela fonte de mármore impunha sua presença circular e antiga, encentrada pela estátua de uma mulher que derramava água em saltitantes peixinhos de pedra. Sem muito acanho, a consorte Alina levantou a barra da saia e entrou na água, imergindo até a altura das panturrilhas. Caminhou muito desajeitadamente até a estátua e, com um movimento decidido, puxou a cauda de um peixinho específico.

Por um segundo nada aconteceu, mas logo em seguida e com muito espanto, Nina viu uma pequena cavidade se abrindo no assoalho da fonte, tragando a água para dentro de si e revelando as pontas de degraus que desciam infinitamente para dentro da escuridão. Alina apenas indicou que gostaria de ser seguida antes de desaparecer.

Tomada pela hesitação, Nina entrou na fonte. Ela até mesmo considerou dar meia volta quando sentiu a fria água tocando seus pés e pingando em suas costas, mas decidiu engolir o medo e apenas obedecer sua senhora, pois a pena para um servo desobediente era a morte. A passagem secreta se fechou sobre sua cabeça depois que ela desceu um pouco, deixando-a em companhia apenas dos degraus frios e úmidos e da escuridão.

Desceu pelo que pareceu uma eternidade. A escada se enracolava para baixo e Nina se agarrava a parede a cada curva repentina, temendo cair e quebrar o pescoço. Não havia nem mesmo uma réstia de luz para marcar o caminho e os sons eram suaves demais para servir de guia. Tudo que havia era o seu extinto, além de uma horrível desconfiança. Alina não devia ter planos nada bons para precisar passar por um lugar como esse, mas Nina continuava sendo, acima de tudo, uma mestra dos segredos e ansiava por saber o que a consorte escondia.

Tropeçou no último degrau, mas estava tão satisfeita por estar em solo firme que nem se importou. Ali já era possível sentir uma corrente de ar e, ao estender os braços, suas mãos encontraram paredes de pedra erguidas de cada lado do seu corpo. Guiando-se por elas, Nina continuou andando e andando. Sua mente andava também. Evidentemente ela já tinha ouvido falar das passagens secretas que pulsavam dentro do Palácio Imperial, mas nunca tinha acreditado que isso era algo além de um mito. Agora, ao transitar dentro de uma, concluía apenas que a natureza daqueles caminhos era difícil de definir. Talvez ela saísse dentro de uma sala do Imperador ou dentro do quarto de um dos príncipes. Poderia sair até mesmo em sua própria casa, ora bolas! Mas é claro que havia ainda uma hipótese muito mais assustadora do que essa.

Talvez a consorte estivesse levando-a para as masmorras, onde mataria Tiana Yohan com as suas próprias mãos.

De repente, um pequeno círculo cintilante fulgurou sobre sua cabeça. Na penumbra, Nina percebeu que haviam alguns apoios de metal gravados na pedra, formando uma escada que subia em direção a luz. Ela estava cansada de toda aquela coisa de subir e descer escadas, mas alçou-se para cima assim mesmo. E assim, em bem menos tempo que o esperado, ela acabou desembocando em um beco mal cheiroso em algum lugar, com as estrelas brilhando sobre sua cabeça e uma figura encapuzada esperando por ela.

Alina não fez menção de ajudá-la a sair do buraco, mas empurrou uma pedra circular sobre a abertura depois que Nina terminou de passar. Quem olhasse para aquele lugar jamais poderia imaginar o que ali se escondia, pois a pedra se encaixava tão perfeitamente no calçamento que o tornava imune a qualquer desconfiança.

A exemplo de sua senhora, Nina escondeu o rosto sob o capuz de sua capa esfarrapada. O beco claramente desembocava em Ronan, mas não na parte que a fazia ser conhecida como a Cidade Imperial. Era fácil entender porque diziam que aquele pedaço da cidade havia sido abandonado pelos deuses: os barracos cambaleantes de madeira se amontoavam na rua malcheirosa, desgastados pelo tempo e pela umidade. Excrementos de gente e de animal formavam uma massa grotesca em meio as calçadas finas, onde uma água esverdeada e misteriosa fluía. Pior que aquilo só as pessoas: maltrapilhos imundos, mendigos magrelos e crianças de ventre inchado dividiam espaço com cavalos doentios que mal tinham forças para continuar de pé, vergados pelo impacto da sua própria doença.

Nina sentiu-se automaticamente enojada e não pode evitar de recuar para trás, numa tentativa fútil de se afastar de tudo aquilo. O estômago embrulhava por causa da pobreza e do fedor... Insuportável, totalmente insuportável.

— O que há com você, menina? — a consorte perguntou. Seus olhos azuis e inteligentes perscrutaram o rosto de Nina e uma sombra de entendimento perpassou-os quando ela se deu conta do que acontecia. Sua feição então se fechou e ela parecia mais odiosa do que nunca. — Eu esperava mais de quem não vem de berço nobre, mas já notei que é um engano comum de minha parte esperar que aqueles que vivem no luxo compreendam a pobreza. Tire essa feição de nojo da cara e me siga. Não desejo perder mais tempo do que o necessário com você.

Nina queria se explicar e falar das memórias que de repente tinham emergido dentro dela, mas preferiu se calar e seguir a consorte silenciosamente. Aquele lugar era bem pior do que Nina poderia ter imaginado, então era difícil entender o que Alina tinha ido buscar ali. Mesmo assim, a consorte a guiava com maestria sem igual através das ruas, desviando dos transeuntes e virando nas esquinas certas. Não esboçou dúvidas de para onde ir nem mesmo por um momento. Quase como se conhecesse tudo isso como a palma de sua mão, Nina pensou.

Embora as feições dos plebeus assustassem Nina, ela ficou ainda mais amedrontada quando começaram a se afastar cada vez mais da parte movimentada. Quando deu por si, não havia mais ninguém naqueles becos. Não sabia se isso era bom ou ruim. Um assassino poderia estar tanto entre milhares de pessoas ou no meio de nenhuma delas.

Pararam finalmente em uma viela escura, onde toda a luz que havia provinha de uma luminária diminuta que sacudia violentamente. Para chegar à entrada era preciso atravessar uma pequena escada descendente. Não havia nenhuma identificação, apenas uma longa bota feminina no batente da porta, oscilando ao vento.

Alina ouviu quando Nina engasgou e se virou para trás com um olhar mortífero.

— S-senhora... — Nina gaguejou. — Damas como nós não deveriam entrar em prostíbulos.

— Essa noite não somos damas, Nina. — Alina disse. — Essa noite seremos ratos.

A consorte fez um sinal para um homem parado do outro lado da rua (só então Nina se deu conta que ele as seguia) e, sem mais delongas, desceu as escadas e empurrou a porta.

Havia todo tipo de calor vindo de um ambiente como aquele. Primeiro, havia uma lareira acesa na parede do fundo e suas chamas cumpriam o trabalho de afastar o frio da noite. Em segundo lugar, havia o calor vindo dos homens, que era muito mais difícil de ver, mas infinitamente mais fácil de sentir.

Nina não sabia o que esperava de um bordel, mas definitivamente não era aquilo. Uma pequena parte dela havia imaginado um lugar mais restritivo, com pessoas se direcionando a outros cômodos para satisfazer seus apetites ao invés de dar vazão a eles onde todo mundo podia ver. Homens de todo tipo se ajuntavam ao redor de mesas de madeira pequenas e imundas. Alguns se embebedavam, mas a maioria não podia evitar tocar as mulheres nuas que transitavam pelo local, puxando-a para seus colos e apertando seus seios. Nina tentou desviar seu olhar delas, mas acabou dando de cara com uma mulher debruçada sobre uma mesa sendo possuída com violência por um homem que a segurava pela cintura. Do outro lado, um idoso despido acariciava os seios de uma mulher igualmente nua e Nina não pode conter um choque ao se dar conta que a misteriosa dama possuía os dois órgãos sexuais. Muito envergonhada, decidiu olhar somente para baixo, mas a consorte chamou a sua atenção.

— Não haja desse modo ou só vai chamar atenção para nós duas. Haja com naturalidade e apenas me siga. — Alina disse.

Nina tentou seguir as ordens de sua senhora, mas era difícil para ela, sendo tão casta e virgem como era, presenciar todas aquelas cenas de devassidão.

Alina conduziu Nina até um canto afastado o suficiente para ninguém notá-las. Uma prostituta tentou se aproximar, sacudindo os seios inchados e flácidos, mas Alina simplesmente a repeliu. Em silêncio, as duas mulheres se puseram a aguardar, cada uma delas mergulhada numa atmosfera de expectativa diferente. Enquanto Nina ficava aflita com o desconhecimento do que ia acontecer, Alina lembrava um tigre que estava prestes a saltar sobre a presa, aguardando apenas pelo momento exato.

De repente, um homem entrou no infame estabelecimento. Nina percebeu rapidamente que era o mesmo homem para quem Alina tinha sinalizado antes de entrar no bordel, mas ele não fez menção de procurá-las. Ao invés disso, ele começou a andar pelo local enquanto gracejava com as prostitutas, como se fosse um velho conhecido delas. Girou uma moeda de prata em seus dedos e entregou para o alcoviteiro, que esteve esse tempo todo sentado em uma cadeira alta do lado da lareira, e se sentou em um banco vago como se não fosse nada demais.

Quando uma mulher alta e ruiva separou-se momentaneamente de um senhor esturricado, o homem misterioso andou até ela e a puxou contra seu corpo. Nina pensou em desviar os olhos do que viria, mas então ela se deu conta que não haveria nenhuma consumação. O idoso, atormentado, virou-se contra o misterioso homem com ódio em seus olhos, chamando-o para briga. O estranho pareceu não ligar para ele enquanto beijava o pescoço da mulher, mas então o idoso puxou-lhe o braço de supetão e ele foi obrigado a se virar. Para conter o mais velho, o homem misterioso simplesmente pegou um odre que estava sobre uma mesa ao lado e quebrou na cabeça do senhor, banhando-lhe numa chuva de argila e vinho barato.

O idoso não chegou a desmaiar, mas mesmo tonto decidiu dar uma cabeçada em seu atrevido rival, abraçando seu tronco com força. Os dois caíram sobre uma mesa que estava sendo ocupada por um rapaz forte que estava em companhia de duas damas. Irritado, o moçoilo se ergueu e juntou-se aos dois outros homens, mergulhando numa tempestade de socos e pontapés. Em menos de um minuto, a confusão estava formada e todos os homens do prostíbulo brigavam entre si. As senhoras do prazer tentavam terminar a confusão ou se esconder da saraivada de madeira e ódio que vinha de todos os lados, mas suas tentativas pareciam destinadas ao fracasso.

Nina sentiu o medo tomando conta de si, mas a consorte sequer pareceu se abalar. Alina, rápida como um lince, aproveitou-se da confusão para levar Nina até o fundo do estabelecimento, através de um corredor penumbroso e repleto de portas. Nina ficou intimamente grata por todas elas estarem fechadas, pois era possível ouvir os sons dos casais atrás delas mesmo em meio ao pandemônio, e ela não queria ter que ver o que eles estavam fazendo.

Alina bateu três vezes na última porta à direita e ela se abriu com um rangido. Ao entrar, Nina topou com um pequeno quarto que cheirava a mofo, cuja palha da grande cama provavelmente já tinha passado da hora de ser trocada. Sentadas sobre ela, havia três mulheres mal vestidas, mas muito belas. Duas delas eram louras, sendo uma mulher de estatura elevada e uma garota que devia ser mais jovem do que a própria Nina, e a outra era morena. Nina não pôde deixar de notar como as senhoritas de cabelo dourado se pareciam com a consorte.

A semelhança se tornou ainda mais gritante quando as mulheres se levantaram e envolveram Alina em um abraço apertado.

— Minhas irmãs! — a voz de Alina pingava doçura, muito diferente do tom que ela usualmente usava. — Como eu prometi, vim resgatar vocês. Essa é minha serva, Nina, mas não temos muito tempo para apresentações agora, pois temos que ser rápidas. — e virando-se para a loira mais jovem ela disse: — Ninaeve, você conseguiu a chave?

A mocinha tirou uma chave antiga de dentro da manga e entregou-a para a consorte com palpável alegria. Alina repassou a chave para Nina.

— Abra a janela. — ordenou.

Quando as peças começaram a se juntar em sua mente, Nina percebeu que simplesmente sabia o que fazer. O medo ainda estava lá, mas ele era gradualmente substituído por uma eficiência muda. Sem pensar duas vezes, ela subiu na cama malcheirosa e dirigiu-se até a janela. As venezianas estavam trancadas com uma corrente grossa selada por um cadeado tão enferrujado que Nina temeu que não pudesse abri-lo. Apesar disso, a tranca se destravou automaticamente quando ela introduziu a chave na fechadura. Arremessou a corrente para o lado e escancarou a janela. Com uma agilidade que não sabia possuir, Nina saltou para fora — agradecendo intimamente pela baixeza da queda — e estendeu as mãos, consciente que o próximo passo seria ajudar as quatro mulheres a sair.

Devido a seu estado delicado, Alina foi a primeira a passar, contando com a ajuda de todas as mulheres. Pousou no solo com bastante segurança apesar das dificuldades impostas pelo ventre intumescido, e quase que automaticamente estendeu as mãos para ajudar a próxima garota. A morena dispensou o auxílio e atravessou a janela com um gesto muito gracioso e certeiro, apoiando as mãos no parapeito e girando as duas pernas para o lado exterior, como um ginasta numa exibição artística.

A loura alta provou ter mais dificuldades, provavelmente devido ao medo. Sua irmã a estimulava de dentro do quarto e as mulheres tentavam puxá-la do outro lado, mas ela ainda estava com somente uma das pernas de fora quando o pior aconteceu.

A porta do quarto arreganhou-se com um estrondo e o alcoviteiro apareceu acompanhado de dois homens altos armados com porretes. O ódio estava visível em sua face e no modo como ele enroscava a ponta da grande barba negra com os dedos.

— Aha! — ele gritou. — Cês acharam mesmo que iam fugir de eu? Nem por cima do meu defunto!

As mulheres soltaram um grito assustado. O coração de Nina começou a bater tão rápido que ela conseguia sentir o sangue zumbindo em seus ouvidos. Tinha mais pressa do que tinha medo, então puxou a mulher loura para fora da janela de uma vez, fazendo-a cair na grama com um baque surdo. A queda pouco pareceu afetá-la, e em um segundo ela estava novamente de pé, dando pulinhos e sacudindo as mãos freneticamente, e sua voz se juntava a das outras três mulheres no chamado a garota que tinha ficado para trás.

A garotinha, num misto de susto e eficiência, tentou arremessar o próprio corpo para fora da janela. O alcoviteiro, rápido como um raio, agarrou-lhe o tornozelo bem a tempo, fazendo-a bater a bochecha com força no parapeito da janela. Os dedos da menina agarraram ferozmente a madeira fria, e as mãos da morena rapidamente se agarraram às mãos dela. Compreendendo depressa o que devia ser feito, Nina agarrou a cintura da mulher de cabelos negros e, quase no mesmo instante, teve a sua própria cintura agarrada pela mulher alta. Juntas, as três começaram a fazer força, tentando puxar a menina para fora enquanto o alcoviteiro tentava puxá-la para dentro.

— Puxem de uma vez e com toda a força! —a consorte gritou.

Sem pensar duas vezes, as três mulheres obedeceram e usaram toda a sua força para puxar a menina. O alcoviteiro cedeu diante o seu esforço e cambaleou para trás, liberando o tornozelo da jovem de seu aperto. A garotinha voou pela janela e caiu diretamente em cima das três, derrubando-as em um efeito em cadeia. Foi uma queda feia, no entanto. Nina viu quando a perna da moça ricocheteou no marco da janela e sua cabeça bateu com força no chão.

— Minha perna! — a mocinha resmungou.

— Você consegue ficar de pé? — Nina perguntou com urgência enquanto se levantava, vendo que um dos guardas começava a pular a janela.

A jovem simplesmente sacudiu a cabeça em negativa, com os olhos cheios de água.

— Então eu te carrego. — disse a mulher de cabelos pretos. E, como se a jovem pesasse menos que um saco de penas, ela a colocou em suas costas.

Tinham desembocado em um beco escuro na parte posterior do prostíbulo, com saída direta para a rua. Os homens com porretes não mostraram ter a mesma dificuldade ao saltar janelas e começaram a correr atrás delas com uma velocidade incrível.

Nina não sabia que podia correr tanto até precisar. Em seu peito, o coração retumbava tanto quanto um tambor de guerra, cuja batida aumentava mais e mais a cada projeção de suas pernas. Nina não sentia que estava indo rápido o suficiente, mas estava acompanhando perfeitamente o ritmo das outras mulheres, mesmo havendo entre elas uma grávida e uma mulher que levava uma jovenzinha nas costas. Quando olhou para trás, viu que seus perseguidores não estavam tão distantes. Logo elas seriam alcançadas e se isso acontecesse elas não teriam chance.

Num gesto precipitado, Nina agarrou um dos caixotes que estavam abandonados no chão e arremessou na cara de um acossador. Isso fez com que ela ganhasse tempo o bastante para que as outras mulheres conseguissem chegar até o outro lado da rua, onde uma carroça grande e coberta de lona branca as esperava, mas em compensação ela acabou atrasando a si mesma. O outro homem, que não tinha sido atingido, lançou-se sobre ela e a agarrou com força brutal, pressionando o bastão em seu pescoço.

Nina tentou se sacudir, na esperança de conseguir se soltar, mas o homem a apertou com mais força e ela sentiu a fraqueza inundando-a à medida que o ar começava a faltar. Os pulmões ardiam devido a sua tentativa fracassada de respirar e as suas pernas, que antes se debatiam com fúria, foram lentamente perdendo a capacidade de reação. Ela tentou arranhar as mãos de seu agressor, mas a força começou a faltar em seus músculos e a vista começou a escurecer.

Será que eu vou morrer assim????, ela pensou em desespero.

Então, o aperto subitamente afrouxou e ela sentiu seu corpo tombando para trás, como se houvessem milhões de quilos puxando-a para baixo. Com o último ímpeto que lhe restava, ela empurrou as flácidas mãos que a agarravam e rolou para longe, segurando o próprio pescoço. Ela sentiu lágrimas escorrendo em suas bochechas, e conseguiu divisar, mesmo com a vista embaçada, o corpo do seu agressor estendido no chão, com um dardo sangrento alojado bem na testa. Alguns metros à frente, o outro perseguidor estava tombado de bruços, com o porrete ainda preso numa mão, enquanto um filete fino de sangue escorria de seu peito e manchava as pedras da rua.

O condutor da carroça, que segurava uma besta em riste, deu um largo sorriso para ela, revelando duas fileiras de dentes sujos de sangue. Nina não soube de onde tirou forças para se levantar, mas quando deu por si já corria até a carroça, com as mãos envolvendo as costelas doloridas. Enquanto era alçada para dentro do veículo, não pôde deixar de perceber que o homem com a besta era o mesmo que tinha começado toda aquela confusão dentro do bordel, e também o mesmo indivíduo para quem Alina tinha acenado mais cedo.

Nina não fazia ideia de para onde estavam indo, mas chegou a conclusão de que não se importava. Uma vez que a adrenalina da fuga tinha passado, Nina começou a sentir uma dor persistente nos músculos, mas a garganta e a caixa toráxica eram as partes de seu corpo que mais lhe incomodavam. A mocinha de cabelos dourados parecia bem pior do que ela, pois tinha distendido o joelho e ganhado um belo galo na cabeça, além de um lábio cortado. Alina a envolvia em um abraço maternal, para consolá-la em seu pranto, e ver aquela cena só fazia com que Nina se lembrasse de Lana. Ela sempre foi boa em cuidar de ossos fraturados..., pensava.

— Eu não sabia que a senhora tinha irmãs. — Nina disse sem pretensão nenhuma.

Ela tinha consciência que um comentário como aquele ultrapassava os limites do decoro, mas Alina parecia cansada demais para revidar grosseiramente.

— Tenho. — ela respondeu. — Ninaeve e Silka são minhas irmãs de sangue, mas Ruth — apontou para a morena com o queixo. — é minha irmã de coração, pois é a minha mais antiga e leal amiga.

— E não se deve abandonar os amigos. — Ruth disse com um sorriso muito pequeno, mas totalmente sincero.

— Jamais. — Alina concordou.

Aquelas palavras desceram pela coluna de Nina como uma pedra de gelo e ela decidiu silenciar-se. Não era uma boa amiga e não tinha razões para meter-se no assunto.

A carroça continuou prosseguindo noite adentro, tão suavemente que nem parecia estar em fuga. Nina jamais havia participado de algo assim antes, mas sempre imaginava que esse tipo de coisa não deveria envolver tanta tranquilidade. Naquela altura do campeonato, a privação de sono já se estendia sobre ela na forma de um terrível cansaço que lhe impedia até mesmo de divagar. Sentia o princípio de uma dor de cabeça começando a irradiar, mas tudo que ela podia fazer era manter seus olhos fixos no teto da carroça e se obrigar a ficar acordada. As outras mulheres também estava muito silenciosas. Provavelmente, deviam estar tão cansadas quanto ela.

Quando pararam, a lua já estava na parte oeste do céu, indicando que a noite logo terminaria. Nina esperava se defrontar com outro beco quando saísse da carroça, mas acabou dando de casa com as ruínas meio tombadas de um mosteiro que ficava nos limites da cidade. Fazia muito tempo desde a última vez que Nina tinha visto os muros de Ronan tão de perto e ela não pode deixar de pensar no quanto eles pareciam opressores em toda a sua enormidade protetora.

— Nós já chegamos? — Ninaeve perguntou. Era possível sentir uma certa decepção no seu tom de voz.

— Não. — Alina respondeu. — Teremos que andar mais um pouco, mas logo mais estaremos lá.

Nina não sabia onde esse tal de "lá" ficava, mas decidiu se portar da mesma forma que tinha portado até então e não fazer perguntas.

Alina conduziu as mulheres para dentro das ruínas. Provavelmente aquele lugar tinha sido muito belo no passado, mas agora tudo que restava dele eram blocos de pedra espalhados e cobertos de vegetação. As poucas colunas que ainda estavam de pé ganharam um contorno místico sob a luz da lua poente, com as folhas das trepadeiras que as envolviam balançando suavemente na brisa da madrugada. Nina achou aquele lugar muito confuso, mas Alina sabia exatamente para onde estava indo. Não teve dificuldades para levá-las até uma porta de alçapão no fundo das ruínas e Nina soube automaticamente que ali havia outra passagem secreta.

As cinco mulheres desceram uma longa escada e desembocaram em outro corredor muito longo e escuro. Enquanto andava, Nina não podia deixar de se perguntar qual era a fixação dos projetistas de passagens secretas com escadas e corredores. Será que não havia nada mais simples que eles pudessem elaborar? Cadê as lendárias fadas que podiam teleportar a longas distâncias quando se precisava delas?

Aquela passagem era muito mais traiçoeira que a da fonte, pois se tratava de um conjunto de túneis interligados que poderiam levar a qualquer lugar. Para evitar se perder, as mulheres se deram as mãos na escuridão, exceto por Ninaeve, que ainda seguia nas costas de Ruth. Alina ia na frente e rapidamente provou que não precisava de olhos para se orientar. Ela desviava de bifurcações e entroncamentos muito naturalmente, com uma consciência instintiva de seu destino. Nina não se sentia nada confortável em um lugar tão apertado e tão escuro, mas estava grata por ter uma mão para segurar. Embora confiar na consorte era tudo que lhe restava, ela não conseguia evitar o receio. E se se perdessem? Provavelmente morreriam ali e ficariam para sempre abandonadas na escuridão, sem ninguém para vir resgatar seus corpos.

Nina não sabia quanto tempo já tinha andado, apenas que já caminhava a muito tempo. Mesmo que ninguém dissesse nada, ela sabia que não era a única que queria descansar. A própria Alina já havia desistido de manter o ritmo constante e fazia breves pausas de tempos em tempos. Em dado ponto do trajeto, Nina estava mais do que disposta a não continuar, mas então o terreno começou a formar um aclive e ela soube que havia um raio de esperança.

— Estamos muito perto agora. — Alina anunciou. — Só precisamos terminar de subir e estaremos lá.

Para a sorte de Nina, a subida se revelou breve e nada dificultosa. No topo do aclive, o teto era muito baixo, de modo que todas precisaram se abaixar. Alina estendeu as mãos e tateou até encontrar outro alçapão. A porta se ergueu com um ruído alto, fazendo chover poeira e lascas de madeira para todo lado. O novo espaço não era amplo e comportava apenas uma pessoa de cada vez. Alina, que já estava na dianteira, empurrou rapidamente algo da parede, revelando uma porta.

Quando Nina finalmente passou por ela, percebeu com certa curiosidade que tinham desembocado atrás de um quadro afixado na parede. Percebeu sem muitas surpresas, porém, que tinham regressado ao Palácio Imperial e que estavam agora na torre das prostitutas.

Um misto de alívio, tensão e desgosto se combinavam na face da consorte.

— E aqui estamos, irmãs. — ela anunciou sem muita emoção. — Por algum tempo esse será seu novo lar.

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