16. Pombos na Caixa
Linete estava apenas parcialmente consciente quando chegou ao Curatório. Suas costas eram uma visão aterradora: longos lanhos profundos e avermelhados que purgavam, consequência direta das quinze chicotadas que ela havia recebido por invadir o quarto da consorte. Lana sentia um misto de alívio e tristeza: alívio por ela estar viva, tristeza por tê-la colocado naquela situação. Decidiu, então, cuidar dela como jamais havia cuidado de ninguém. Era o mínimo que poderia fazer.
Primeiro, as feridas foram desinfetadas com muito cuidado. Lana lavou-as com uma mistura de salmoura e depois as cobriu com longas faixas de linho embebidas em vinho. Os panos precisaram ser substituídos algumas vezes antes que ela finalmente pudesse fazer um emplastro de ervas e os curativos adequados, envolvendo todo o tronco da amiga em faixas. O processo de cura era agora natural para Lana e suas mãos trabalhavam mesmo quando ela não pensava muito a respeito do que estava fazendo. Linete era, em grande medida, uma paciente exemplar e havia se comportado bem durante todo o processo. Ela não havia perdido a consciência mesmo quando havia muita dor envolvida nem reclamado de sua sorte.
A bem da verdade, ela não tinha estado em condições para falar muito. Às vezes soltava um murmúrio quase inaudível, mas Lana sempre vinha acudir quando notava que a amiga estava gemendo baixinho. Naqueles dias, ela não saiu de perto da cama de Linete mesmo quando haviam outros pacientes. Em dado momento, até chegou a pedir que alguém lhe trouxesse o fuso para que pudesse continuar tecendo enquanto aguardava que Linete se recuperasse. Apesar de tudo, Linete pouco se lembraria disso mais tarde. Além de ter apresentado febre muitas vezes, passava a maior parte do tempo em sono induzido pelas ervas. Toda aquela situação havia sido causada pela terrível espera a que ela fora submetida: depois de ser castigada, os guardas receberam ordens pra não deixar ninguém se aproximar dela durante dois dias. Lana sabia que era proposital, pois assim, se ela tivesse que morrer, todos diriam que a causa havia sido a infecção e não o castigo. Ninguém ousaria culpar a consorte Alina pela sua falta de humanidade. Grande parte da nobreza acreditava que viver era benefício demais para um servo que não soubesse cumprir ordens.
Alina já está até mesmo se comportando como ele, refletiu Lana com uma raiva muda.
De todas as pessoas envolvidas, Lana sentia que era a única que não tinha direito queixa, pois toda situação havia se enrolado depois de seu pedido absurdo. Ela jamais se perdoaria, mas isso não significava que sua indignação morreria ali. Ela jamais perdoaria a consorte também. Aparentemente, Lana estava se tornando uma especialista em guardar rancor.
O quarto dia veio e passou. No quinto dia, Linete conseguiu terminar sua primeira refeição em muito tempo. O doutor Lewie garantiu que esse era um sinal que indicava que ela logo ficaria bem, mas Lana às vezes duvidava. Então, no entardecer do sexto dia, Linete chamou sua senhora.
— Jovem mestra...
As palavras soavam com tanta fraqueza ao deixar seus lábios que pareciam se formar somente sob o jugo de um esforço tremendo, tomando todas as forças de seu corpo debilitado. Mesmo assim, Lana foi capaz de perceber que ela queria falar e aproximou-se depressa da cama, tomando as mãos frágeis de Linete entre as suas.
— Não se esforce tanto, querida. Você precisa repousar. — disse Lana muito suavemente.
— Água...
A voz de Linete soava tão ressecada quanto a boca dela provavelmente estava. Lana se apressou e foi até jarro, enchendo uma cuia com água. Linete sorveu tudo com uma necessidade latente, mal percebendo que um filete lhe escorria pelo canto dos lábios.
— Senhora, eu preciso dizer... Eu preciso do seu... perdão. Perdoe as minhas falhas, senhora.
— Não seja tola! — Lana repreendeu, alarmada. — Fui eu quem te causou tudo isso. Sou eu que deveria estar implorando pelo seu perdão.
Linete nada respondeu, mas seus olhos diziam tudo. Não havia raiva neles ou qualquer intenção de atribuir culpa, apenas o receio de ter decepcionado sua senhora, de ter se mostrado incapaz. Para Lana, aqueles olhos jamais tinham parecido mais misericordiosos do que naquela ocasião, no entanto isso apenas agravava seu sentimento de culpa. Como fazer Linete entender que ela não fora a culpada e que não havia problema nenhum em sentir raiva pela situação em que ela estava?
Lana fez mesura de responder, mas Linete interrompeu-a com um gesto de cabeça.
— Não... se... lamente... — ela murmurou. Inspirou profundamente antes de voltar a falar. — Eu preciso das minhas roupas, senhora.
— Não vou te deixar ir a lugar nenhum!
— Não é por isso.
Lana achou aquela necessidade estranha, mas mesmo assim decidiu ir em busca dos trajes lilases que Linete envergava antes de terem lhe enfiado na túnica leve de linho que os pacientes às vezes usavam quando ficavam internados. Encontrou-as dobradas sobre o baú em que costumavam guardar o linho para as ataduras e retornou depressa para junto da amiga.
— Olhe... na saia, senhora. — disse Linete enquanto apontava para as mãos de Lana com um gesto suave de queixo.
Desconfiada, Lana começou a apalpar o tecido. Sentiu uma protuberância junto a barra superior e, quando virou a peça do avesso, descobriu que ali havia sido costurado um bolso do tamanho da palma da mão dela. Não pode evitar lançar um olhar chocado para enferma. Sabia muito bem que aquilo era fruto da mente engenhosa de Linete e que provavelmente já estava ali bem antes dela conhecer sua existência, servindo para guardar coisas difíceis de se imaginar. Enfiou a mão no bolso e sentiu em seus dedos a textura familiar do metal. Quando deu por si, estava segurando uma medalha antiga, redonda e toda feita de cobre. As letras A e I haviam sido gravadas no centro, no meio de um grande coração. Percebeu que haviam letras gravadas na outra face e girou o objeto para poder ver melhor.
De todo o coração, para o meu senhor e amado Ivan, da sua Alina.
Lana não pode conter o próprio espanto e soltou um suspiro extasiado. Além de arrogante, a consorte Alina também era muito tola. Era evidente que uma peça como aquela só poderia ser encontrada em seus aposentos, pois Ivan jamais aceitaria receber um presente como aquele. O Príncipe Herdeiro não tocava em nenhum metal que não fosse ouro, e mesmo que aquela medalha reluzisse, ele ainda preferiria vende-la para pagar os custos de uma prostituta que o servisse melhor que Alina. Imaginar outro cenário era mera ilusão. O príncipe Ivan não nutria amor pelas mulheres e apenas tinha interesse nelas enquanto objetos para aplacar suas vontades. Lana sabia bem disso, afinal ela também tinha sido usada por ele.
Desprezo e deleite se misturavam dentro de seu peito. Uma prova como aquela era melhor do que uma carta, pois metal não podia ser falsificado. Se o aspecto antiquado não convencesse o Imperador de que Alina já guardava aquela medalha a muito tempo, qualquer um dos ourives reais poderia atestar a idade da peça. Lana sentiu um novo ânimo penetrando em seu espírito e lançou sob o peito da amiga, envolvendo-a em um abraço caloroso. Linete sorriu e pousou a mão sobre os cabelos dela.
— Você é genial, Linete. Genial!
— Estou contente de não ter falhado com a senhora. — Linete sussurrou.
Lana então sentiu uma nova dose de culpa. Linete jamais havia falhado com ela, mas ela havia falhado com Linete tantas vezes...
Naquela noite, Laranjinha apareceu depois de muito tempo. Lana ouviu um gato miando na porta e quando foi verificar o que era, deparou-se com seu animal de estimação. Laranjinha estava imundo e cheirava à esgoto. Haviam várias fitas coloridas presas em seu tronco, provavelmente como resultado de alguma artimanha com as decorações de ano novo. O animal nunca lhe parecera tão enfezado. Como Linete estava imersa em um sono profundo e Lewie estava próximo, Lana achou que estava tudo bem em se afastar por um momento para dar banho e comida ao seu gato. Agora, ela já confiava muito mais na recuperação da amiga do que tinha confiado antes.
Ao contrário do que ela esperava, o felino se comportou muito bem e deixou que ela retirasse todas as fitas e o enfiasse na água morna sem fazer nenhum alarde. Era um comportamento novo para ela, pois Lana tinha se habituado ao raivoso gato de sua mãe, que sempre mordia e arranhava as criadas quando elas tentavam limpá-lo. Estava ainda ajoelhada diante da tina quando a senhora Tiana entrou no aposento, visivelmente afobada.
— Um mensageiro chegou agora pouco. — ela informou. — Não era ninguém conhecido, então eu fiquei com receio de recebe-lo. Apesar disso, ele trouxe uma caixa para você. Deixei sobre a sua cama.
Lana não era tola o bastante para ficar contente com aquilo, pois um criado recebendo correspondências poderia significar tudo, menos coisa boa. Envolveu o gato em um tecido feito de algodão e andou diretamente até seus aposentos privados. Não podia negar que a curiosidade a dominava.
A caixa devia ter trinta centímetros de comprimento e era feita de madeira simples e sem adornos. Um rolo a acompanhava, mas a cera que o fechava era branca e não tinha sido marcada por nenhuma heráldica. Com um gesto rápido, Lana quebrou o selo e desfraldou o papel.
De um velho amigo, para que você cumpra seus objetivos.
Era apenas isso. Não havia nenhuma outra informação ou indicativo.
Lana sentiu que o mundo girava ao seu redor e que o seu estômago revirava. Precisou sentar-se na beirada do catre para conter a própria tontura.
Alguém sabia sobre ela. Alguém sabia o que ela havia ido fazer ali.
Suas mãos trêmulas se dirigiram ao fecho de metal da caixa. Um cheiro forte invadiu suas narinas assim que ela levantou tampa e seus olhos arderam na hora. Soltou um grito de horror ao perceber o que havia ali dentro: seis ou sete pombos brancos, todos mortos. As flechas que o abateram tinham sido quebradas, mas a ponta ainda estava cravada em seus peitos.
Alarmada, Lana se aproximou para fechar a caixa. Foi então que ela percebeu as anilhas e se deu conta que aqueles eram pombos-correios e que as mensagens que levavam ainda estavam bem ali com eles. Um arrepio profundo percorreu a sua espinha.
De alguma forma, alguém tinha lhe ajudado a conseguir as provas que precisava.
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