14. A Porta
LINETE
A vida de um senhor tinha muitos significados, mas a vida de um servo era a servidão. Ninguém esperava que um criado tivesse sonhos, paixões ou opiniões, pois, de modo geral, ele era visto como um adereço que servia somente para tornar os desejos de seu mestre em realidade. O que era o servo se não ou um objeto ou uma peça no grande tabuleiro da guerra pelo poder? Ninguém se importava. Ninguém exceto a senhora Lana.
Linete havia crescido junto com ela e suas primeiras memórias eram de sua bondade. Era Lana quem havia impedindo suas punições e aliviado seu trabalho, e fora ela quem lhe oferecera seu primeiro pedaço de carne. Então, toda vez que Linete via a face de sua senhora, sentia que sua relação com ela transcendia a servidão. Eram amigas e contavam com a lealdade sincera uma da outra, para o que desse e viesse. Então, como ela poderia negar qualquer pedido de sua ama, por menor que fosse?
Mesmo que isso significasse parar em um país desconhecido e cometer roubo ou assassinato.
Tudo que Linete sabia era que uma porta deveria ser aberta e então ela seria.
Edougard se moveu desconfortavelmente quando Linete se levantou e seus dedos fastidiosos buscaram a cintura dela. Ela o afastou com um gesto gentil, mas notou que seus olhos estavam pousados em seu corpo enquanto ela abotoava suas vestes de criada.
— Volte a dormir, querido. — ela sussurrou com candura.
— Onde você está indo uma hora dessas? — ele perguntou sonolento.
— Apenas estou indo cuidar dos assuntos do reino.
Mas ela sabia que suas palavras não tinha sido ouvidas. Quando se aproximou dele para dar um beijo de despedida, Edougard já ressonava profundamente. Linete deu uma última olhada em seu amante antes de deixar o quartinho apertado e vê-lo ali, deitado, fez com que ela sentisse sortuda. Aquela era uma das muitas vantagens que só a servidão podia trazer. Geralmente, a virgindade das senhoras tinha um preço definido — um milhão de moedas de ouro, muitas terras e, às vezes, até um reino —, mas o que havia entre as pernas de uma criada só dizia respeito a ela e podia ser dado a quem ela preferisse.
Aquela hora da noite, a cozinha já estava mais do que vazia. Havia um eunuco encarregado da guarda, para impedir que os servos roubassem comida, mas ele dormia profundamente recostado em um banquinho no canto. Silenciosa como um rato, Linete entrou e arrumou um pedaço de queijo e algumas frutas em um pratinho de barro. Se ela fosse pega, aquela seria sua defesa. Com um prato de comida em mãos, ela podia alegar que levava a refeição de um senhor e, se ninguém a flagrasse, ela ainda poderia aproveitar para fazer um lanchinho noturno.
O Príncipe Ivan e a Consorte Alina costumavam se encontrar no Jardim Real debaixo de uma frondosa cerejeira. Não costumava haver ninguém ao redor, nem mesmo a guarda real. Encolhida atrás de um arbusto, Linete observou enquanto o casal trocava um beijo apaixonado. Ela preferia se certificar que a senhora estaria longe quando ela tentasse entrar em seu quarto e, depois de acompanhar os hábitos dos pombinhos por mais de uma semana, ela sabia que Alina ficaria pelo menos uma hora longe de seus aposentos.
Tomou cuidadosamente o rumo para o Palácio de Seda. A escuridão era sua velha amiga e a abraçava gentilmente enquanto ela se esgueirava pelas sombras da noite. Grande parte dos corredores estavam mergulhados em trevas, mas havia um ou outro ponto em que a luz da lua se infiltrava sutilmente através das janelas. Os pés de Linete a conduziram de forma muito natural até os aposentos da Consorte. Depois de ter estado ali tantas vezes nos últimos dias, era como se eles tivessem se habituado e se tornado incapazes de se perder. Assim que divisou a entrada, ela se ajoelhou perante a rigidez da madeira e sacou o punhal que estava escondido nas dobras de suas vestes. Cravada na porta havia uma fechadura larga, muito antiga e feita de ferro. Seria muito difícil abrí-la sem a chave adequada, mas ela conhecia outros métodos. Quando Lana e Linete eram crianças, Yal Vraz havia lhes ensinado a arrombar portas. Naquela época, os três tinham mais ou menos a mesma idade e andavam grudados o tempo todo. Por causa disso, ela havia aprendido a fazer uma boa sorte de coisas ilícitas. Talvez Lana tivesse se esquecido de tudo, mas quando se era uma serva, às vezes era necessário saber andar na ponta dos pés da maneira correta e a surripiar itens de valor sem que ninguém notasse.
Ao sabor dessa lembrança, Linete enfiou o punhal na abertura e tateou com a ponta da lâmina até sentir que havia encontrado uma saliência. Então, com um movimento ágil, ela girou o pulso e ouviu com certa satisfação a porta ranger e se abrir.
Então tudo aconteceu muito rápido. Com o canto do olho, Linete percebeu que uma luz se aproximava pelo corredor, descendo as escadas. Os passos pesados anunciavam a presença de um guarda e seria muito difícil de explicar porque ela estava na porta de uma senhora com um punhal na mão. Ela decidiu fazer a única coisa que pareceu sensata: deslizou para dentro do quarto e encostou a porta atrás de si, deixando uma pequena fresta para observar. Permaneceu imóvel como uma estátua enquanto o guarda passava e, com certo alívio, percebeu que ele andava em direção a parte norte.
Quando tudo parecia mais tranquilo, Linete voltou-se para o quarto. O ambiente estava tão escuro que ela só percebeu que havia pisado em algo quando já era tarde demais. A criaturinha soltou um ganido esganado e Linete saltou para trás, assustada. Na pouca luz ela pode perceber a pequena bolinha de pelos se erguendo e começando a latir furiosamente. O cachorrinho grudou em suas pernas, rosnando. Desesperada, Linete tentou afastá-lo, mas tudo parecia em vão. O barulho certamente atrairia visitantes indesejados, então ela precisava partir. Linete abriu a porta e pulou para o corredor. O cachorrinho deslizou pela abertura antes que ela fosse suficientemente rápida para evitar que isso acontecesse. Os latidos pareciam ainda mais altos no corredor deserto e suas tentativas de silenciar o animal apenas o deixavam mais enraivecido.
Foi então que Linete percebeu o som de passos e notou que o guarda estava voltando pelo corredor, com a luz da lamparina refletindo de modo oscilante nas paredes devido a rapidez de seu andar. Aflita, ela se lançou debaixo de um aparador que suportava algumas flores e se escondeu sobre o mantel que o cobria, torcendo para que o guarda fosse ingênuo o suficiente para não procurar ali.
— O que há com você? — ela ouviu o guarda perguntando numa voz profunda e grave.Mal tinha se metido sob o móvel quando ele chegou.
Por causa da lamparina que ele carregava, Linete conseguia ver sua silhueta através do tecido. Notou com certo espanto que ele se inclinava na direção dela, com a mão estendida, e se retraiu ainda mais, sentindo a proximidade do flagrante. Entretanto, ao contrário do que ela imaginava, o guarda apenas levou seus dedos na direção do canino, tentando acalmá-lo. Esse foi provavelmente o seu pior erro.
Furioso, o cãozinho se virou para ele e o abocanhou com toda força. Um animal tão pequeno jamais poderia causar qualquer ferimento na mão encouraçada de um guarda, o que não significava que não iria perturbá-lo. Linete viu quando a silhueta do saltou para trás, num gesto assustado. Rapidamente a mão do homem desceu para o cinto e tornou a se erguer, agora munida de uma longa lâmina. A espada desceu em riste e os latidos silenciaram. As sombras não permitiram que Linete presenciasse a cena de forma nua e crua, mas ela quase teve um sobressalto quando o sangue do animal espirrou no mantel que a acobertava. Ela se sentia horrorizada, com o corpo molenga e com o coração pesado. Se pudesse, teria gritado, mas precisava se conter ou então seu sangue seria o próximo a ser derramado.
Portas começaram a se abrir. Linete captou o burburinho dos nobres saindo de seus quartos. Uma mulher soltou um grito horrorizado e então mais pessoas começaram a se juntar. Linete não conseguia ver nenhum deles, mas conseguia imaginar perfeitamente os rostos deformados de surpresa diante daquela cena nauseante.
— O que é que está acontecendo aqui? — a consorte Alina se impôs com um bramido raivoso. A mulher havia voltado bem mais cedo do que o esperado, provavelmente atraída pela confusão.
Todas as outras vozes se calaram. Linete escutou os sapatos da consorte rompendo a multidão em direção ao centro e depois o mundo silenciou. O próprio ar parecia se inchar com a tensão do momento e, então, rompeu-se. O grito da Consorte encheu a noite, seguido por um choro tão dolorido que lembrava uma mãe que tinha acabado de perder o filho.
— Silsil, NÃO! Por favor, meu Deus, NÃO!
Linete abraçou as próprias pernas e escondeu o nariz em seus joelhos. A saliva custava a descer pela garganta e ela sentia que também estava prestes a chorar. Não era ela a maior culpada de toda aquela desgraça?
Os próximos momentos se passaram tão rápido quanto um borrão. Linete ouviu quando a consorte Alina se voltou furiosa para o algoz de seu animal e clamou que os outros guardas o prendessem. O homem tentava desesperadamente se explicar, mas as suas palavras jamais alcançariam uma dama tão sedenta pela sua punição. Um outro guarda então sacou sua espada e o ar se encheu com o terrível odor da morte. Linete precisou conter o grito que ameaçava irromper de sua garganta, mas era impossível deter as lágrimas que deslizavam pelas suas bochechas. Numa só noite ela havia sido responsável pelo fim de duas vidas, infinitamente mais dignas de serem poupadas que a dela.
O resto foi difícil de detectar, pois haviam muitas luzes e muitos sons.Linete precisou esperar até o corredor ficar vazio para deixar seu esconderijo e cada segundo que ela passava encolhida sob aparador parecia uma eternidade. Faltava pouco tempo para o amanhecer e os servos provavelmente já haviam deixado suas camas, preparando-se para cumprir os primeiros deveres da manhã.Antes de partir, Linete arrancou o mantel do aparador e o embolou numa trouxa ensanguentada, apenas para ter algo para apresentar caso fosse apanhada. Enquanto rumava para a saída, ela não pode evitar a dura certeza de pisar sobre o sangue inocente, mesmo que as marcas no chão já não estivessem mais lá.
Se, mais tarde, alguém viesse até Linete e perguntasse sobre as tarefas que ela desempenhou naquele dia, ela não saberia como responder. Tinha a vaga memória do odor das cozinhas e de ver Lana fiando, mas o resto era como fumaça em sua mente. Seus pensamentos estavam ocupados com as mortes daquela noite e o que fazer com elas. Como todos os outros servos, Linete havia aprendido que nascera para fazer a vontade de seus senhores. Isso era uma grande dádiva, pois permitia que ela vivesse nos castelos e a poupava da vida dura do campesinato. Apesar de sua senhora não ver nela uma peça, era isso que Linete era e seria bastante ruim não cumprir o seu propósito. Os senhores podiam permanecer quando eram inúteis, mas manter um servo imprestável costumava ser considerado desperdício. Percebeu, com certo espanto, que em seu interior não havia culpa, mas uma espécie de resignação. Não havia tempo a perder e ela precisava dar o próximo passo. O melhor a se fazer era abandonar aqueles pensamentos inconvenientes, mesmo que só por enquanto, e focar no que interessava. Ela não queria, de modo algum, ser tomada como desperdício.
— O que deu em você? — Edougard perguntou, arrancando-a de seus pensamentos.
Linete piscou algumas vezes, sentindo que a mente retornava à realidade. Com um suspiro, puxou a fina coberta de pele sobre seu corpo desnudo, protegendo-se do frio.
— Nada, querido.
— Não minta pra mim.
Edougard costumava ser um homem gentil, a despeito do que se esperava de alguém como ele. Alto e musculoso, possuía profundos olhos azuis e mãos grandes e ideais para o trabalho como caçador e curtumeiro. Apesar da aparência intimidativa, Edougard era sempre bondoso e nunca levantava o tom de voz. Era o traço que mais atraía Linete e agora tinha sumido. Estavam juntos desde que ela havia chegado no Palácio e Linete nunca tinha visto ele falar com tanta seriedade e usando um tom tão grave. Incomodada, ela levantou o rosto, apoiando-se em seu cotovelo para olhá-lo melhor.
— Não estou mentindo.
O que era isso no olhar dele? Acusação?
— Eu não sou tolo, Linete. — Edougard disse em um tom que não admitia discussões. — Primeiro você começa a sair de fininho todas as noites, agindo como se eu não soubesse o que você está fazendo. Então, de repente, um guarda e o bichinho de estimação de uma consorte aparecem mortos e você retorna para mim com esse olhar vazio, quase como se você mesma tivesse enfiado a faca neles. Para quem você anda trabalhando e por quê?
— O que aconteceu não foi culpa minha. — ela disse, inclusive para tentar convencer a si mesma.
— Não quer dizer que você não está envolvida. — Edougard ergueu uma sobrancelha.
— Apenas estou tentando descobrir algo importante... — Linete tentou revidar, mas sua voz soava fraca. — Não pretendo ferir ninguém. — mas nem mesmo ela acreditava naquelas palavras.
— Você é alguém.
O silêncio pairou como uma nuvem negra cobrindo o quarto. Não havia como contra-argumentar...
Quando Edougard voltou a falar, seu tom de voz parecia menos ameaçador e muito mais próximo do habitual.
— Por favor, Linete. Pare com seja lá o que você estiver fazendo. Não quero que a próxima marca de sangue no corredor seja a sua.
— Pararei. — disse em voz baixa.
Linete deixou o corpo tombar na cama e sentiu seu amado envolvê-lo com seus braços fortes. A paixão imperava no olhar que os dois trocaram, mas além dela havia também a certeza de que Linete não cumpriria sua promessa. Edougard jamais poderia compreendê-la. Ele era um sulista e o que os sulistas sabiam sobre o dever e a honra, tendo conhecido na vida somente a ambição e o egoísmo?
Linete dormiu um pouco e acordou sem saber ao certo que horas eram. Concluiu que deveria ser o momento certo, pois seu corpo já tinha se habituado com o dever. Edougard estava deitado de costas para ela, mas bastou uma breve olhada para notar que ele dormia profundamente. Saiu da cama com todo cuidado que tinha e começou a procurar por suas roupas. Não estavam largadas sobre a velha cadeira de madeira nem dobradas em cima do baú. Linete até mesmo olhou debaixo da cama, mas não havia nada lá. Aflita, Linete abaixou-se diante do pesado baú e levantou a tampa. Nem sinal de suas roupas. Todas elas haviam sumido.
Lançou um olhar ressentido para o parceiro, mas decidiu que não ia deixar a raiva se sobrepor a razão. Ela não precisava de suas roupas para cumprir sua tarefas, apenas de qualquer coisa que cobrisse o seu corpo. Com isso em mente, ela puxou um lençol velho de dentro da arca e fez com ele uma túnica improvisada. O tecido, que outrora deveria ter sido branco, estava amarelado e puído, mas servia bem ao propósito de esconder sua nudez. Finalmente vestida, ela abriu a porta do quarto e se deixou envolver silenciosamente pela escuridão noturna.
O vento a atingiu como uma bofetada. Embora o tecido ficasse largo em seu corpo, ele não era suficientemente potente para afastar o frio do inverno. Uma tristeza profunda encobriu seu ânimo quando ela pensou no longo caminho que teria pela frente e na impossibilidade de chegar até o final dele estando tão descoberta. Teria, então, que aumentar o risco de ser pega e atravessar pela parte interna do castelo, sempre tomando cuidado para que nenhum guarda se deparasse com uma serva maluca vagando por aí enrolada em um lençol.
O quartinho de Edougard ficava bem próximo à cozinha do Palácio e, partindo dela, havia um enorme corredor feito de pedra que interligava sua saída aos edifícios ocupados pelos senhores. A ideia era garantir que os nobres continuassem recebendo suas refeições mesmo quando as condições climáticas fossem desfavoráveis, mas o passadiço em si não era eficiente para afastar os desígnios da natureza devido aos longos arcos que o ladeavam. Sentindo o corpo endurecendo de frio, Linete se esforçou para correr na direção dele. Cada vez que seus pés desnudos afundavam na neve, ela tinha a sensação que longas facas de gelo penetravam em sua carne. O queixo batia incontrolavelmente e ela tinha dificuldade de ser obedecida pelos seus próprios músculos. Foi o trajeto mais difícil que ela fizera, muito pior que as montanhas ou o mar. O frio começou a consumi-la tanto que ela temia ter se perdido para sempre no meio da neve. Então, a pedra surgiu diante de seus olhos, próxima o suficiente para ser tocada se ela conseguisse erguer os dedos.
A pedra revelou-se gélida sob seus pés, mas infinitamente mais quente que a neve. Assim que cruzou o arco, foi envolvida pelo calor de um archote que estava pendurado sobre a sua cabeça, posto no intervalo entre as aberturas. Não era tão intenso ou envolvente como uma fogueira, mas foi o bastante para que ela conseguisse destravar seus músculos. Esticou os dedos das mãos e dos pés, moveu o pescoço de um lado para o outro. Não queria abandonar a chama bem-vinda, mas precisava. Rapidamente, começou a seguir o caminho ao longo do passadiço, mas não sem relutância. Mantinha-se perto dos archotes, para aproveitar o calor deles e também para ter alguma rota de fuga caso algum guarda se aproximasse. O Palácio estava praticamente deserto aquela hora da noite. Exceto pelas poucas almas que eram obrigadas a estar de pé, todas as outras repousavam.
A entrada para funcionários do Salão da Chama Eterna surgiu diante dos seus olhos, livre e desprotegida. Uma lufada de ar quente envolveu o corpo de Linete assim que ela atravessou e ela sentiu que tinha entendido, então, o que a Chama Eterna significava. O lar dos nobres era tão belo e aquecido, tão diferente do lar dos servos. Depois de enfrentar a neve, aquele lugar parecia o próprio paraíso e Linete começou a formar novas concepções sobre ele. Invejava seus tapetes felpudos, suas velas e seus braseiros, tão brilhantes e aconchegantes. Estava acalentada, mas não era tola o suficiente para não notar que haviam agora muito mais iluminação e muito mais sons entrecortando a noite. Provavelmente haviam redobrado a atenção depois da noite passada, para evitar que mais acidentes acontecessem. E se alguém acreditasse que, na verdade, não havia sido acidente coisa nenhuma? Linete decidiu ficar ainda mais atenta. Talvez estivesse caminhando direto para uma armadilha.
Subiu as escadas na ponta dos pés, segurando o lençol para evitar um tropeção e tentando não emitir nenhum ruído. Abaixou-se atrás de uma estátua de mármore quando um guarda passou por ela, rondando o corredor paralelo. Depois de se certificar que o homem finalmente tinha ido embora, Linete dobrou a esquina à direita e se dirigiu de modo apressado até a antiga porta de madeira que pertencia ao aposento da Senhora Alina. Abaixou-se ao lado do aparador que havia lhe abrigado na noite passada. Ainda não haviam coberto o móvel com um novo mantel, então ele parecia tão desolado quanto a serva que naquele instante se acocorava na sua lateral. Foi então que Linete se deu conta que não havia trago nada consigo para abrir a porta. Seu punhal estava exatamente onde estavam suas roupas e naquele momento ela não sabia onde nenhum dos dois tinha se enfiado. A pressa era mesmo inimiga da perfeição, afinal de contas.
Além de não haver nenhum objeto afiado nas imediações, Linete logo percebeu que ficar ali agachada não era uma opção. Sem nenhuma maneira de ocultar sua presença, Linete decidiu tentar a sorte. Levantou-se e andou na ponta dos pés até a pesada porta. Agarrou o puxador, olhou de um lado para o outro, e empurrou com um gesto decidido. A porta rangeu e então se abriu, emitindo um estalo suave. Se a sorte existia, talvez realmente estivesse ao lado de Linete.
Ela mal precisou pisar no quarto para se arrepender. Adormecida em uma cadeira colocada bem de frente para a abertura havia uma criada envolta em pesadas peles. A garota acordou com os ruídos emitidos pela porta e seus olhos recém-abertos se encontraram com os olhos surpresos da gatuna. A única coisa que salvou Linete naquele momento foi a penumbra. O quarto estava praticamente mergulhado em escuridão, exceto por um toco de vela que ardia em seus últimos suspiros sobre a mesa de cabeceira. Ainda tonta de sono, a mente da criada não teve tempo de processar a imagem diante de seus olhos. Captou apenas um vulto etéreo com longos cabelos negros e um vestido branco ondulante, e então, se assustou. Em seu sobressalto acabou presa nas cobertas e o peso da cadeira jogou-a para trás. Engalfinhada, não conseguia achar a saída para fora das peles, mas soltava gritos abafados sobre um terrível fantasma que viera para matá-la.
Linete aproveitou a confusão da moça para fugir. Disparou pelo corredor, tomando a direção oposta a que tinha vindo. Seus pés quase não faziam barulho ao tocar o tapete macio, mas ela ainda temia se deparar com um guarda a cada esquina que dobrava. Uma sacada brotou diante de seus olhos, e isso poderia ter significado o fim da linha se ela não tivesse tido a ousadia de saltar. Havia ponderado sobre a queda por menos de um instante, mas abandonou todos os pensamentos em prol de sua própria sobrevivência. Quando deu por si, seu corpo flutuava na noite, tão livre e belo quanto o de um pássaro. Então Linete se chocou contra um arbusto e sentiu a frieza da neve envolvendo-a.
O ombro havia amortecido a queda e Linete sentiu uma certa rigidez vinda do lado direito de seu corpo quando se pôs de pé, mas não tinha tempo para pensar naquilo. A queda do segundo andar até o chão não era o suficiente para matá-la, mas seria tolice esperar escapar sem nenhum ferimento. Mesmo assim, seu corpo parecia ser feito de aço a medida que ela corria de volta para casa. Estava tão tomada pela adrenalina que não sentia nem mais medo e nem mais frio, apenas necessidade.
Voltou para o quartinho de Edougard sem nem saber como, com o coração tão disparado que ribombava em seus ouvidos. A paz reinava naquele local, contrastando tão fortemente com o caos do exterior que parecia errada. Edougard ainda estava imerso em sono profundo e o suave ressoar de sua respiração era todo ruído que atravessava a noite. Linete parou um momento para retomar o fôlego e refrescar o próprio corpo depois de sua corrida alucinante. Despiu o lençol e percebeu com certo espanto que ele tinha se rasgado e deixado um grande pedaço de si agarrado em algum lugar por aí. Furiosa, ela o embolou e enfiou dentro do baú, metendo-o sob todas as outras roupas. Finalmente, tomou a coragem para se deitar ao lado do amante e entrou bem devagarinho debaixo das peles, temendo acordá-lo.
Linete custou a pegar no sono. Sua imaginação se agarrava a cada ruído externo e o transformava em coisas gigantescas. A todo instante ela esperava que os guardas irrompessem pela porta e a chicoteassem, prendessem ou sumissem com ela. Por causa disso, Linete quase não tinha descansado e, quando a manhã finalmente chegou e Edougard veio acordá-la, ela se agarrou tão firmemente a cama que seu corpo parecia ter sido colado nela. Levantou-se e vestiu-se a contragosto, sem questionar o fato do seu uniforme de trabalho ter magicamente reaparecido. Chegou atrasada para o serviço, mas não havia nenhuma matrona por perto para puni-la. Deve ter sido seu dia de trabalho mais moroso em todos aqueles meses em que estava no Palácio, mas, embora seus braços estivessem cansados demais para a tarefa, especialmente por causa do ombro contundido, seus ouvidos estavam prontos para a fofoca.
Não se falava em outra coisa além do fantasma que rondava o Palácio da Chama Eterna. Mariska Salt, a dama de companhia da Consorte Alina, não parava de falar da aparição de vestido branco que havia surgido diante de seus olhos na última noite e quase lhe provocado um ataque cardíaco. Boa parte da nobreza ainda estava imersa numa forte onde supersticiosa causada pela recuperação mística do Princípe Herdeiro, então a história rapidamente obteve algum crédito. As tragédias cotidianas começaram a ser atribuídas a dama-fantasma sem rosto que tinha assombrado Mariska e as más-línguas diziam que Alina estava amaldiçoada. O espírito vingativo havia matado seu cachorro e voltado para buscar sua dama, mas, nas duas vezes, quem ele realmente visava era a consorte. Amuletos começaram a aparecer aqui e acolá, sempre acompanhados de orações fervorosas. Com o tempo, mais gente começou a afirmar ter visto o fantasma, mas, em geral, Linete sabia que não passava de um efeito de manada. Ela jamais perderia seu tempo vagando pelos corredores para assustar senhores obesos e damas fleumáticas.
Apesar de o falatório ter conduzido a situação a um prospecto que lhe era favorável, Linete sabia que haviam aqueles que não tinham se deixado enganar. Vendo que se tratava de um invasor e de não de um espírito rancoroso, os nobres menos obtusos começaram a se precaver para impedir que seus aposentos fossem assaltados e seus segredos expostos. Linete não tinha certeza se Alina era uma tola acreditada ou uma cética precavida, mas acreditava se tratar mais da segunda opção, ou ela não teria pensado em deixar sua dama de companhia guardando o quarto. Era mais que evidente que a consorte tinha a algo esconder e Linete desejava intensamente descobrir o que era. Apesar disso, ela tinha consciência que o momento não era adequado para uma nova tentativa. Era melhor deixar a poeira baixar, pois seria infinitamente mais fácil de agir. Pouca coisa é mais frágil que um senhor que acredita na própria segurança.
Nas duas semanas seguintes, Linete teve mais com o que se preocupar do que fantasmas vindos de lugar nenhum e segredos sórdidos. O dia e a noite estavam voltando a ter a mesma duração e a neve começava a dar fortes indícios de regressão, revelando pequenas flores e folhas. O fim do inverno simbolizava a aproximação do Ano Novo e, consequentemente, mais trabalho para os servos. Era preciso pendurar lanternas, realizar as tradições para atrair sorte e cuidar dos preparativos para a festa da nobreza. Apesar das tarefas extras, ninguém pareceu especialmente furioso ou descontente. A maioria dos criados não trabalhava no primeiro dia do ano e os servos de escalão mais alto eram premiados com uma semana de folga como retribuição ao seu (nem tão) árduo trabalho. O evento que mais atraía atenção, entretanto, era o Festival de Cristal, que sempre acontecia na noite da virada e era realizado para marcar o último dia das neves. Realizado na parte mais central da Cidade Imperial, sempre atraía um grande público devido às suas barraquinhas luminosas e atrações musicais. A possibilidade da embriaguez exercia uma forte atração sobre as massas, visto que ao longo do ano não haviam muitos momentos de deleite para aqueles que não pertenciam à aristocracia.
Então surgiu uma oportunidade.
De vez em quando, o Imperador reunia todas as suas esposas em uma festa do chá como forma de ainda se manter presente, mas sem desperdiçar tempo estando com cada uma delas individualmente. Por mera coincidência do acaso, a equipe de Linete foi destinada para limpar o Salão da Chama Eterna no mesmo dia em que aconteceria a festividade. Ela não tinha pensado muito a respeito, mas, de repente, o seu dever tornou-se claro. Ela conseguiria dessa vez, mesmo que fosse a última coisa que ela fizesse.
Sentiu o coração acelerar quando chegou ao segundo andar e percebeu que o corredor que abrigava os aposentos da consorte Alina estava vazio, mas decidiu não se precipitar. Estava a centímetros do quarto, abaixada e esfregando o chão com afinco, quando a porta se abriu. Antes de perceber quem saía de lá, ouviu o terrível som de pés escorregando e sentiu um corpo caindo pesadamente sobre o dela. O balde de madeira ao seu lado vacilou e respingou água suja em todas as direções, mas Linete foi rápida o bastante para mantê-lo de pé.
— Mil perdões, senhora! — Linete colocou-se de pé rapidamente e estendeu a mão para a dama estirada. — Deixe-me ajud...
O cheiro atingiu suas narinas e fez seu estômago revirar. Inconscientemente deu um passo para trás, tentando cobrir o nariz com a mão enquanto seu rosto se contorcia em repulsa. Mariska ergueu-se rapidamente e recolheu o pequeno embrulho manchado e fétido do chão.
— N-não precisa!
E saiu correndo tão rapidamente quanto tinha surgido.
Não era todo dia que damas de companhia tropeçavam em criadas, pelo menos de forma não intencional, mas o mais esquisito daquilo tudo era o que Mariska queria esconder. Linete não tinha ideia do que era, mas mil ideias passaram pela sua mente. Ela torcia muito para que a realidade não fosse tão assustadora quanto era em sua mente.
Foi então que os olhos de Linete deram com a greta. Com a pressa, Mariska tinha esquecido a porta aberta, deixando a simplesmente encostada. Armadilha? Golpe de sorte? Linete não tinha certeza, mas precisava tentar mesmo assim. Pegou o balde e empurrou a porta com a ponta dos dedos. O ruído ainda fazia seu coração disparar, mas ela ficou grata quando percebeu que não havia ninguém no interior do aposento.
O cômodo era amplo e luxuoso, mas tinha um terrível cheiro de mofo. Apesar das venezianas estarem abertos, era evidente que o quarto havia ficado fechado durante muito tempo e sem circulação de ar. Uma grande cama ocupava o centro, com lençóis mal esticados e um dossel que precisava ser lavado. As esteiras sob os tapetes precisavam ser trocadas também e os móveis de mogno acumulavam poeira.
Linete decidiu unir o útil ao (des)agradável e começou a limpar o recinto a medida que o investigava. Enrolou os tapetes e os colocou em um canto, mas não encontrou nada debaixo deles. Abriu cada uma das gavetas da cômoda enquanto tirava a poeira da parte de cima, mas não encontrou nada além de peças íntimas e itens desinteressantes. O interior do pesado baú se revelou uma decepção. Aparentemente, a consorte Alina não era do tipo que escondia segredos no meio de suas roupas.
A penteadeira estava empoeirada, mas não tanto quanto os outros móveis. Os perfumes e cosméticos estavam todos em ordem e não parecia haver nenhum que viesse de fontes desconhecidas. Dentro da caixinha de joias, um objeto chamou muito mais atenção do que os outros: uma medalha grande antiga, redonda e toda feita de cobre. As letras A e I haviam sido gravadas no centro, no meio de um grande coração. Linete sabia falar o idioma comum, mas não era capaz de lê-lo, então ela não soube identificar a mensagem que estava fundida na parte de trás. Parecia algo particularmente interessante e ela o enfiou nas dobras das roupas. Talvez Lana pudesse dar algum sentido a tudo aquilo.
Linete puxou uma das gavetas e sentiu que havia ganhado na loteria. Havia encontrado um maço de cartas enroladas em uma fita vermelha, tão bem guardadas e cuidadas que só podiam ser algo importante. Sem pensar duas vezes, ela as enfiou dentro da saia, sentindo um grande sorriso se formar em rosto.
Quando ela se virou para arrumar a cama, sentiu seu corpo todo gelar e paralisar. A Consorte Alina estava bem de pé na porta e tinha um olhar maldoso o suficiente para tombar um exército.
— Parece que encontrei o rato que vem revirando as minhas coisas.
♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡
Sinto muito por esse capítulo ter sido tão maior que o usual. Espero, futuramente e assim que o ciclo inicial da história tiver terminado, poder oferecer capítulos menores e melhores. Se você está gostando da história, não esqueça de deixar sua estrelinha e o seu comentário. Isso me motiva a continuar escrevendo!
♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top