Relatos do Tapeceiro - A Invasão

Já estava tarde e a noite já havia caído. Uma linda noite de céu estrelado da quinta quinzena de outono.

Eu estava em minha tenda arrumando as coisas e guardando cuidadosamente os tapetes como de costume depois de um longo dia, quando ouvi um alvoroço.

Pensei que seria mais um ataque daqueles ladrõezinhos da floresta. Ah, aqueles pestinhas dedos leves! Todavia, logo desconfiei pelo horário.

Foi quando a gritaria começou a ficar mais próxima. Então, ouvi um brado vindo do norte, da banda das colinas:

— Onde estão os rebeldes? — clamou uma voz firme e áspera.

Quando virei-me para ver de onde vinha a voz, vi sete cavaleiros. Seus corcéis negros marchavam vagarosamente por entre as tendas da nossa pequena feira.

Todos usavam uma capa escura com capuz que cobriam suas cabeças, deixando suas faces ocultas nas sombras.

No meio deles cavalgava uma figura umbrífera com aspecto horripilante. Ele não montava um cavalo como os outros, mas um tipo de animal, se é que posso chamar aquilo de animal.

Atordoado com a visão, fixei meus olhos nele tentando decifrar que espécime de animal era aquele.

Mal pude acreditar quando o reconheci. Talvez em outro lugar eu pudesse ficar menos surpreso, mas em nosso pequeno vilarejo?

Esfreguei os olhos e fixei-os mais atentamente na tentativa de reconhecer o que estava adiante e fui tomado de perplexidade.

Não restavam dúvidas, era um leão das montanhas negras de Uguntur, uma Besta do Fogo.

Já ouvira falar destas bestas, principalmente nas cantigas do meu povo ainda quando criança, mas até então não acreditava que eram reais, pelo menos não nos dias atuais.

O animal era corpulento, bem maior que um leão comum, com músculos torneados e sobressaltados. Seus olhos amarelos brilhavam no escuro, semelhantes à brasa tirada do fogo. A cabeça contornada por uma juba chamejante dava impressão de soltar fagulhas de faíscas. Sua pelagem com matizes de amarelo e vermelho até a metade do lombo contrastava com a capa preta do cavaleiro.

A cauda era feita de escamas escuras iguais as de uma mamba-negra, medindo cerca de um metro e meio. Semelhante à cabeça de uma serpente, ela ficava encurvada como gancho voltado para cima balançando de um lado para o outro suavemente em uma dança hipnótica. Em sua ponta havia uma seta, muito parecida com a ponta de uma lança, entretanto, seu aspecto era como de um cristal polido escuro como a noite.

Depois de ficar estatelado e perplexo, quase hipnotizado por causa da besta, segurando o coração para não deixá-lo sair pela boca, olhei para o cavaleiro que estava sobre ela procurando ver se o reconhecia, mas não o pude. O capuz negro, parte do manto escuro que descia sob seus ombros e derramava-se por sobre o dorso do felino, encerrava dentro das trevas qualquer vislumbre do que estava por baixo.

A figura montando o leão de fogo destacou-se a frente dos demais cavaleiros. Ele parecia analisar o lugar mexendo com a cabeça em busca de algum sinal do que estava procurando. Ao olhar para o lado esquerdo, onde eu estava, o manto que lhe escorria pelos ombros ganhou uma pequena abertura revelando parte do que se encontrava por baixo.

Logo meu espanto aumentou, quando vi em seu peito aquele brasão reluzente, símbolo do Império do Fogo.

Outra coisa capturou ainda mais a minha atenção. Na sela do animal, serpenteava em linhas sinuosas a imagem do Dragão Vermelho, emblema do guardião da pedra do fogo. Isso significava que o cavaleiro estava a serviço direto do próprio imperador.

Enquanto aquela figura espantosa parava em frente à minha tapeçaria, minha mente vagueou espantada questionando o real motivo que traria um Cavaleiro do Império do Fogo a AzToren, ainda mais em Nanduque. Certamente não era coisa boa, e isso me fazia suar frio, sem contar a tremedeira e os embrulhos no estômago. Tudo bem que estávamos espreitados pela serra das colinas e o mar baixo, onde era comum o frio vento cortante vindo das falésias meridionais, no entanto, o que sentira não era frio. Não mesmo. Era medo!

Os outros seis cavaleiros que estavam juntos, todos do mesmo modo encapuzados, vestindo armaduras de metal polido reluzente, ao comando do cavaleiro de fogo, começaram a descer de seus cavalos.

Em uma atitude impaciente, como se estivessem procurando algo ou perseguindo alguém, começaram a virar as bancas e as mesas dos demais vendedores, como verdadeiros arruaceiros, jogando suas mercadorias todas no chão e esbofeteando aqueles que resistiam e interrogando-os a respeito de algo.

Minha tenda ficava bem no centro, no cruzamento entre a rua das colinas e a rua central. Então, um deles começou a caminhar em minha direção, o que me fez perder o ar. Foi nesta hora que um deles olhou para o cavaleiro da besta, que parecia ser o comandante e exclamou:

— Mestre Balrók, eles não devem ter ido muito longe.

Quando ouvi aquele nome senti um arrepio subir pela espinha juntamente com um formigar na barriga. Senti o corpo lânguido, e os joelhos trêmulos, quase não podiam suportar esse corpo velho.

Já ouvira falar neste nome. Quem não? Balrók era um comandante de alta patente das legiões imperiais de Kzastoc, embora fosse mais um mercenário, um assassino infame, acionado apenas em casos específicos que estivessem saindo de controle.

Sua fama dispensava apresentações. Suas histórias e feitos se espalhavam como o vento por toda Anur, desde a montanha das Rochas Tropicantes à Orem Zotar, de Uguntur à cidade sagrada de Maihnar, na grande república. Onde havia uma alma viva, ali eram contadas as histórias de Balrók, o despedaçador de ossos. Ele era o caçador mais temido de todo o império e com sua besta do fogo, sempre capturava e aniquilava suas presas.

Diz-se que ele sozinho assassinou quarenta soldados de pedra e amontoou-os sem suas cabeças em uma pilha de dez metros, durante a rebelião em Toren há dezenove anos, na batalha do império contra os rebeldes. As cabeças? Ninguém sabe até os dias de hoje onde foram parar. Certo é que muitas coisas são ditas sobre ele. Algumas críveis, outras não. Já ouvi histórias de que ele era filho de um dos deuses guerreiros, ou até mesmo dos espíritos errantes, mas vai saber até onde vai a imaginação. Os errantes são uma lenda, todos sabemos disso.

A verdade era que sua presença no sul da nação dizia que as coisas não iam bem, e isso era nítido. Pior é que as coisas ainda iriam se agravar. Ah se iriam.

De repente, Balrók reuniu os outros cavaleiros. Eu não entendi direito o motivo, contudo, notei que a besta demonstrava comportamento estranho, como se tivesse sentido ou farejado algo. Sua cauda parecia apontar alguma coisa, o que parecia ter sido prontamente compreendido pelo seu mestre.

Enquanto os outros subiam em seus cavalos, Balrók movia-se cuidadosamente montado em sua fera rumo à grande torre do arco. Não era necessária uma só palavra; os outros sabiam o que deveriam fazer. Eu sabia que não devia, mas não pude deixar de segui-los.

Foi aí que a aproximadamente cem metros à frente eles pararam. De mansinho eu me aproximei e observava tudo da esquina, escorado no muro da torre, meio encoberto por uma madeira escura, que servia como base frontal para a barraca de iguarias da Sra. Margot.

Assim que pararam, Balrók desmontou de sua fera. Cerrando o cenho, com postura circunspecta, fez sinais para os seus companheiros. Ele era forte e robusto. É difícil precisar, mas certamente ele beirava os três metros de altura.

Cautelosamente levou suas mãos à cabeça e com um gesto suave, tirou paulatinamente o capuz, enquanto olhava ao redor parecendo tentar ter a noção exata de onde estava. Foi aí que pude vê-lo melhor. Não posso afirmar que foi uma boa coisa, pois aquele rosto pálido como a morte me atormentaria por muito tempo.

Cortando seu olho direito de cima a baixo, uma cicatriz rasgava seu rosto descendo a partir da testa e desaparecendo próximo à boca. Seus olhos eram negros, e não estou dizendo que a cor de seus olhos era escura. Não! Todo o seu globo ocular era escuro como um buraco negro sem fim. Seus cabelos também eram escuros e chegavam a tocar seus ombros. E as orelhas? Elas eram amassadas como se tivessem sido arrancadas, sobrando-lhes os tocos e algumas rebarbas. Olha, pode até ter sido impressão minha, tamanho o espanto, mas seus dentes deviam ter uns três centímetros para fora da gengiva com um formato pontudo parecendo estarem prontos a triturar e rasgar as carnes de seus adversários.

Tão logo Balrók apeou de sua besta, uma flecha foi disparada, não sei de onde, quem poderia saber? Foi um tiro certeiro, exatamente no vão da armadura, entre o ombro esquerdo e o peito, bem no coração de um dos cavaleiros que estavam atrás de Balrók. Um gemido estancado se fez ouvir, e o cavaleiro caiu sem vida no chão.

Enquanto ele caía, Balrók sacou sua espada. Era uma lâmina flamejante que parecia resplandecer quando atingida pela luz da majestosa lua. Seu aspecto era como o sol do crepúsculo, contornada por uma tênue linha chamejante. Quando ele a levantava, sua lâmina parecia cortar o gélido ar noturno emitindo um som agudo como o assobio de um Matinta Pereira da Floresta Cintilante.

De súbito, outras flechas foram lançadas, ferindo outro cavaleiro na coxa. Enquanto os demais cavaleiros procuravam abrigo, Balrók com um olhar profundo, parecia não se importar. Com um ar sereno, beirando a altivez, repelia os ataques com sua espada que sibilava ao cortar o ar.

Como um relâmpago, tamanha a velocidade, o Cavaleiro de Fogo puxou duas adagas de sua cintura de dentro de uma espécie de coldre de couro escuro. Com uma mão empunhava sua espada flamejante e com a outra segurava as adagas entre os dedos. Ele arremessou-as juntas de uma só vez, não sei como ele fizera aquilo, mas as adagas formaram um ângulo, distanciando cerca de cinco metros uma da outra, atingindo em um único tiro os dois arqueiros dalém do muro que estavam à espreita, a não mais de vinte passos de onde eu estava.

Fui tomado por um misto de emoções, não sabia se fugia e morria ou se ficava e morria. Fiquei imóvel, congelado como estátua. Só estou aqui lhes contando essa história pela graça e misericórdia de Goldor, não fosse por ele, certamente já teria partido para a lua.

Mas o pior ainda estava por vir. E se estão impressionados com o que lhes acabei de dizer, certamente vão ficar espantados pelo que vem a seguir...

Continua...

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