Recrutamento
Os dias passavam lentamente no arvoredo. Já estava na cidade a mais de meia quinzena e a sensação de frustração só não era maior por causa da oportunidade de recuperação. Mesmo assim já estava quase em meu melhor estado de saúde, porém, a falta de progresso em relação ao Tautos e ao Urso Pardo deixavam-me verdadeiramente desanimado.
Eu não podia andar pelas ruas da cidade tranquilamente sem evitar a represália do povo das árvores. Seus olhares penetrantes como punhais afiados garantiam que eu jamais me sentisse confortável entre eles. Jared havia recomendado que eu não me envolvesse em nenhuma confusão e evitasse o contato com as outras pessoas. "Os torenkais definitivamente não gostam de estrangeiros", dissera. "Fique longe deles ou eles darão um jeito de encrencá-lo e expulsá-lo daqui!".
Em minhas ligeiras e monótonas caminhadas procurei não me afastar muito de casa. Uma certa aflição tomava conta de mim sempre que pensava em meu pai. Sabia que se eu não fizesse alguma coisa rápido ele iria morrer. Isso se ele já não estiver morto!
Uma nuvem escura turvou-me a mente trazendo consigo uma sensação angustiante. Com muito esforço consegui afastar o mau presságio. Ele está vivo, eu sei disso!
Mais alguns dias se passaram e eu estava chegando ao meu limite, então, uma informação nova trouxe-me um pouco de ânimo e esperança.
— Tenho uma notícia que eu acho que você vai gostar! — disse Jared com voz alta entrando apressadamente pelo quarto.
Eu estava sentado na cadeira, entendiado. Ela passou por mim e sentou-se na beirada da cama fazendo ar de mistério.
— Vamos, diga logo! — pedi com entusiasmo.
— Saiu uma convocação do próprio Rei e daqui a dois dias haverá um recrutamento de novos guerreiros para o exército torenkai. — Seu rosto iluminado por um largo sorriso e olhos bem abertos.
— E...? — Acenei com as mão para que ela prosseguisse.
Ela se ajeitou sobre a cama parecendo uma adolescente e logo falou:
— Acontece que toda vez em que há uma seleção de novos recrutas as Seis Bestas vêm para fazer uma demonstração para todo o povo. — Sua voz saiu ligeira e ela bateu uma palma de felicidade. Nitidamente aquele assunto a deixava entusiasmada.
— Isso quer dizer...
— Isso quer dizer que você terá a chance de ver o seu amigo, inclusive, o Grande Urso Pardo! — revelou colocando-se de pé. — Ademais, em dias como esses são realizadas grandes solenidades e todo o povo se reunirá para uma grande festa. — Jared agitava as mãos em um verdadeiro frenesi.
Ao terminar de contar a novidade ela se levantou apressadamente enquanto esfregava as mãos uma na outra.
— Com licença, mas preciso ir fazer os preparativos. Minha repartição terá muito o que fazer nos próximos dias — disse e retirou-se saltitante.
Nem preciso dizer que fui contagiado pela alegria da senhora sorridente. Só de pensar na possibilidade de me encontrar com Tautos o coração já acelerava. Uma certa ansiedade sobreveio-me e comecei a desejar que as horas passassem mais depressa.
Durante os dois dias seguintes treinei secretamente sem sair do quarto o meu controle sobre o keer até a exaustão. Fiz vários exercícios de controle até alcançar um nível considerável de sensibilidade no que tange à percepção das partículas dentro do meu sangue. Depois de várias tentativas atingi com perícia razoável a capacidade de reunir, armazenar e conjurar.
Essas atividades demandaram muita energia e descobri algumas limitações em usá-las, como por exemplo: toda vez que eu reunia e armazenava em uma parte específica do meu corpo e depois conjurava, eu sentia tontura. Depois de algumas considerações descobri o motivo. Quando extraía as partículas de fogo do meu próprio sangue, essas mesmas partículas ficavam escassas em meu organismo que se debilitava na falta delas. Desta forma fui equalizando a extração até um limite prático, onde conseguia conjurar uma quantidade considerável de partículas de fogo sem causar dano significativo à minha saúde.
Toda vez que a casa estava vazia eu fechava as janelas e me debruçava sobre estas atividades. O exercício de repetição contínua foi aperfeiçoando o meu controle sobre essas aptidões de maneira bastante notável.
A única parte do treinamento com as partículas de fogo que não consegui experimentar na prática foi a atividade de agregar. Eu não tinha um elemento externo para realizar tal atividade. Ao pensar nisso, uma nota ressoante de pesar afligiu-me ao recordar-me da minha espada. Eu não tinha ideia de onde estava minha lâmina aaori de metal flamejante. Mais uma coisa importante que perdi, pensei.
Outra tarefa com a qual gastei tempo foi com o domínio das minhas habilidades de potencialização. Durante os últimos dias e, sobretudo, na batalha contra Gamel, havia percebido que não conseguia deixar várias potencialidades plenamente avivadas sem que eu abrandasse as outras. Eu não conseguia manter reforço e percepção inflamados no limite ao mesmo tempo, por exemplo. À medida em que acendia um o outro se esvaía e assim por diante. E não foi somente isso. Até mesmo dentro das competências de percepção eu não conseguia deixar todos os sentidos no ápice de sua potência ao mesmo tempo. No máximo dois sentidos no auge e os outros mais atenuados.
Depois de várias horas de exercícios de meditação e controle, consegui atingir um nível impressionante. A pressão do ar, os menores ruídos, e até mesmo as fragrâncias mais sutis podiam ser percebidas com facilidade num raio de vários quilômetros. Esta última poderia me trazer resultados esplêndidos. Caso eu memorizasse algum cheiro específico, fosse de um objeto, animal ou pessoa, qualquer coisa, eu poderia rastreá-lo em longas distâncias. Porém, também compreendi que essa seria uma capacidade da qual eu necessitaria de treinamentos mais específicos, tais como aprender a distinguir essências e por aí vai...
O bom foi que esse treinamento improvisado me ajudou a ocupar a maior parte do tempo afastando o ócio e o tédio. As horas pareceram avançar com maior lepidez enquanto me ocupava nestas atividades, o que me deixou notavelmente satisfeito. Além disso, ter a mente concentrada durante todo esse tempo impediu com que eu fosse devorado pela melancolia da solidão e pela fustigante obrigação de esperar.
O tempo lambeu os dois dias como o fogo consome a palha. Na manhã do evento Jared acordou saltitante e cantarolando. Até mesmo Jados não se esforçava para esconder sua alegria. O velho sisudo saiu bem cedinho enquanto o sol ainda estava tímido. Jared e eu fomos depois do dejejum.
Quando rompemos pela porta afora a cidade estava vazia. Poucas almas transitavam com passos apressados até as escadas e elevadores.
— Posso te fazer uma pergunta? — indaguei enquanto andávamos, desta vez num passo mais moderado que antes, mas nem tampouco devagar.
— Sim — respondeu olhando para o caminho.
Procurei as melhores palavras tentando não parecer um idiota...
— Sabe aquela menina...
— Radala? — questionou ela, interrompendo-me.
— Na verdade, não — respondi com sinceridade. — Aquela de cabelos loiros...
— Alerga? — indagou, parando de andar e olhando-me nos olhos. — Hã, o que tem ela?
— Ela não é uma torenkai?
— Sim, e-ela... é... — A simpática senhora pareceu hesitar.
— Então por que as pessoas desdenham dela pior do que fazem comigo?
Jared passou a mão sobre a boca num silêncio reflexivo e depois falou:
— Ela é uma mestiça — afirmou. Mostrei-me confuso, sem entender o que aquilo significava. — A mãe dela é torenkai, o pai dela é um estrangeiro.
— Entendo. Isso quer dizer que ela é meio estrangeira... — Encolhi os ombros sem estar convicto da própria declaração.
— O pai dela foi alguém que causou muito mal para o nosso povo — esclareceu, voltando a andar em passos lentos e parou de falar como se algo a incomodasse.
— Entendo — anui, sem mais perguntas, compreendendo que aquele era um assunto complicado em relação à cultura deles.
Continuamos o caminho sem trocar palavras durante o resto do percurso. Sem questionar onde haveria de ser o festival, apenas acompanhei Jared enquanto ela habilmente cortava caminhos e encontrava as escadas mais vazias em direção ao local.
Assim que chegamos no solo caminhamos por mais longos minutos até topar com o rufar alto dos tambores e uma multidão aglomerada envolta de uma gigantesca árvore de proporções colossais. Essa é, com certeza, a maior árvore que eu já vi na vida, pensei. Ao olhar para cima em busca de seu limite, não pude vê-lo. Sua extremidade se perdia muito acima do topo das demais árvores. Seu tronco profundamente enterrado no solo lançava dezenas de raízes de sua base, as quais perfilavam como tentáculos de um grande polvo.
Várias inscrições em letras desconhecidas estavam encrustadas na madeira rústica escura. Fiquei admirando aquela suntuosa maravilha natural até sentir um par de dedos repousarem em meu ombro.
— O Grande Gorumbak — falou Jared por trás dos meus ouvidos. — O Espírito do Arvoredo Torenkai. — Mais uma vez a nota de reverência em sua voz.
Nos arredores de Gorumbak, uma aglomeração se ajuntou com avidez formando uma abertura circular. Impedido de ver devido à baixa estatura, olhei em volta e percebi que algumas pessoas subiam e se apoiavam em pequenas protuberâncias nos caules das outras árvores. Jared se retirou após marcarmos um ponto de encontro e eu aproveitei para buscar algum lugar alto onde pudesse observar o que acontecia. Escalei sem dificuldades o tronco áspero de uma das árvores e enfim pude ver com clareza o que acontecia.
Com uma visão do alto, podia observar a grandiosidade do evento. Milhares de torenkais estavam reunidos ali, todos com seus sorrisos largos na boca e seus gestos exagerados. Dezenas de barracas se espalhavam por todos os lugares. Alguns grupos dançavam alegremente ao som dos tambores, que eram os únicos instrumentos musicais ali presentes. Meus olhos, no entanto, pareciam inquietos em busca de algo que eu não sabia ao certo. Por dezenas de vezes me peguei procurando, perscrutando, sem saber de fato o que deseja encontrar, ou, pelo menos, fingindo não saber.
Havia vários grupos concentrados em lugares específicos, porém, sem dúvida alguma o lugar mais cobiçado era em volta da árvore monstruosa. Gorumbak ficava no centro de tudo, como um verdadeiro deus reverenciado por seu povo. Na frente dele se esticava um amplo círculo branco com uma linha no centro atravessando de uma extremidade à outra. Atrás do círculo um pedestal de um metro de altura aproximadamente. Acima dele, alguns homens com túnicas marrons escorrendo até os pés. Eles eram três no total e tinham apenas um punhado de cabelo no centro de suas cabeças raspadas nas laterais. Ambos pareciam fazer uma espécie de dança diante da multidão que se acotovelava em volta do círculo.
Os tambores aumentaram o ritmo e os três homens aceleraram seus movimentos de modo frenético. O frenesi alcançou toda a multidão que se agitava de forma alucinante até que os três homens paralisaram-se como estátuas. Os tambores pararam juntos. A grande massa humana pareceu petrificar-se como um exército de pedra.
— Gorumbak Taor Zornak — disseram os três homens em uníssono do alto da tribuna e bateram no peito três vezes inclinando-se em direção à grande árvore.
Toda a multidão repetiu os mesmos dizeres e, virando-se na direção de Gorumbak bateram três vezes no peito e se inclinaram numa mesura reverente.
— Hoje é um dia especial — disse o homem que estava no meio dos outros dois no palanque. Um silêncio absoluto preencheu todo o lugar. — O grande Espírito da Floresta irá recrutar novos guerreiros para o seu grande exército. Nós somos os torenkais, o povo mais poderoso do mundo. E hoje, seguindo nossa tradição, recrutaremos para o nosso exército àqueles que se mostrarem dignos. — Quando o homem falava era possível notar uma certa cadência quase que musical em sua voz. O povo parecia hipnotizado. Então ele estendeu as mãos vazias para frente dizendo: — Que se apresentem os nossos desafiantes de hoje!
Um punhado de meninos com idade entre dezesseis e dezoito anos fez uma roda em volta do círculo. Badum estava entre eles. Observando com mais atenção, notei que todos usavam pulseiras na mesma cor. Reparei em volta nas demais pessoas, porém, ninguém mais usava aquela cor. Vermelho, azul, verde, todos representados em abundância juntamente com outras cores. Apenas os jovens no meio do círculo cingiam pulseiras de cor marrom.
— Todos os desafiantes foram selecionados e preparados durante os últimos meses. Aqueles que se mostrarem dignos, manterão seus braceletes e ingressarão no exército do Arvoredo. Os outros voltarão para suas repartições conforme o costume de suas famílias.
A aglomeração agitou-se um pouco. Todos estavam vidrados, completamente concentrados nos desafiantes. Eu estava tão ou mais compenetrado que eles. Aquilo tudo parecia muito interessante. Suas expressões, gestos e falas, tudo parecia ter sido minuciosamente ensaiado.
Alguns homens armados com bastões surgiram por detrás da grande árvore e começaram a separar os meninos em dois grupos. Um dos grupos ficou em uma extremidade do círculo e o segundo na outra extremidade. Um de frente para o outro.
— Vocês conhecem as regras — falou o homem de cima da tribuna. — Façam o melhor diante do grande Gorumbak! —Assim que pronunciou o nome ele bateu três vezes no peito e todos repetiram o mesmo gesto em seguida.
Fez-se um silêncio tenso enquanto os meninos de cada grupo se encaravam. Com aspecto altivo e imponente, Badum deu um passo adiante adentrando no círculo à direita do risco que cortava o desenho de um lado ao outro. Os meninos do outro lado pareceram hesitar com fisionomia espantada. Eles se olharam entre si e uma pequena disputa começou, até que um deles fora lançado dentro da parte oposta do círculo de onde estava Badum.
O que deu a entender é que nenhum dos outros queriam enfrentar o jovem encrenqueiro que sobressaia-se em altura e circunferência aos outros. Os olhos arregalados do outro menino diziam que se ele pudesse, fugiria dali, mas não o fez. Antes que ele tivesse qualquer reação, Badum cruzou a linha central e, pegando o menino pelas golas, arrastou-o até sua metade do círculo e o derrubou de costas no chão. Toda a multidão gritou e se agitou quando um dos homens que segurava o bastão ergueu a mão direita de Badum declarando-o como vencedor.
As outras batalhas foram bem mais equilibradas e muito menos interessantes do que eu imaginava. Movimentos toscos e desajeitados fizeram os meus olhos arderem de sono. Basicamente, a batalha era vencida quando um dos oponentes conseguia arrastar o adversário até a sua metade do círculo e derrubá-lo de costas ou empurra-lo para fora da esfera. As próprias regras do combate favoreciam para que o formato da batalha privilegiasse a força bruta em vez da técnica.
Depois de um longo tempo entediante as batalhas acabaram e os novos recrutas foram apresentados depois de uma espécie de reza ao grande espírito da floresta. Sem ter o que fazer eu aguardei no mesmo lugar esperando a hora marcada com Jared.
O pior de tudo, no entanto, foi perceber que não havia nem sinal do Tautos ou do Urso Pardo ali no lugar. Isso me deixou um tanto angustiado e aflito, até que fui surpreendido.
Continua...
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Se preparem, pois o que vem a seguir será de tirar o fôlego!!!
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