Quem Eu Sou?
A escuridão me tomou por completo.
Não conseguia mais sentir meus membros e a dor no braço e nos demais locais do corpo onde haviam ferimentos cessou-se completamente.
Isso é morrer?, cogitei. Onde está Nemérios, o guardião dos portais eternos?
Embora não sentisse nada, minha mente estava a pleno vapor. Eu estava em total confusão, pois a morte — se é que eu estava morto — não se parecia em nada com o que havia aprendido no Livro do Caminho.
Não existia luz ali, pelo contrário, as densas trevas enchiam e preenchiam tudo ao redor.
Subitamente, um cheiro azedo envolveu o ambiente. Mas não um azedo nauseante e desagradável, mas suave, quase cítrico como o perfume de um limoeiro. Aquela fragrância foi se impregnando em minhas narinas e, até certo ponto, eu estava gostando.
Num segundo, porém, o ar tornou-se gelado e condensado ao ponto de deixar minhas narinas dormentes.
Tentei em vão compreender onde estava ou o que estava acontecendo, mas eu não tinha uma única experiência com algo parecido para tentar usar como referência. Pelo menos, foi o que eu pensei.
Um clarão em minha memória sensitiva surgiu e depois sumiu deixando-me apenas uma vaga lembrança de uma sensação familiar.
Tentei perseguir esse rastro concentrando-me ao máximo no aroma que me envolvia. Um breve lampejo lançou uma parca luz em minha mente possibilitando uma débil anamnese, um vislumbre fugaz de uma recordação adormecida, frágil demais para que eu pudesse ver com clareza.
Interrompendo a inútil perseguição da reminiscência, uma respiração profunda e compassada se fez ouvir.
O som do ar entrando e saindo pelos pulmões do que sei lá o quê estava respirando foi ficando cada vez mais forte.
Um pavor incompreensível apoderara-se de mim deixando-me apreensivo e alerta.
Tive a certeza de que algo estava prestes a acontecer, eu só não sabia o quê.
Então, de repente, fui surpreendido por algo que fez cortar minha própria respiração.
O coração acelerou disparado em ritmo alucinante quando dois enormes olhos cinzas abriram-se bem diante de mim.
Eles foram ficando cada vez mais próximos.
Foi quando uma voz poderosa encheu todo o lugar.
— Eu vejo você!
A voz saiu em tom moderado, mesmo assim foi o suficiente para levar toda a minha coragem.
Antes, porém, que eu pudesse reagir, senti um hálito quente passar pelo meu corpo ao mesmo tempo em que a essência do limoeiro tornou-se mais forte.
Só aí, então, eu percebi que estava de pé, ainda que não me lembrasse de ter levantado.
Virei para trás na tentativa de me localizar e vi uma abertura distante por onde entrava a luz.
A caverna!, compreendi.
Olhei para frente e os grandes olhos cinzas estavam me encarando.
— Quem é você? — perguntei, aflito.
Ouvi um som como de passos e os olhos aproximaram-se ainda mais.
Com medo, recuei dois passos.
Foi quando um feixe de luz vindo da abertura que estava atrás de mim passou por sobre os meus ombros revelando uma parte da criatura que estava à minha frente.
Um punhado de pelos cinza esbranquiçados na raiz que iam se escurecendo nas pontas transpareceu-se assim que tocado pela réstia luminosa.
— Eu sou aquele que tudo vê! — respondeu a voz causando-me calafrios.
A criatura deu mais um passo para frente até que enormes dentes brancos e pontiagudos foram alcançados pela luz.
— Você é Nemérios, o Senhor dos Portões? — indaguei com a voz falha ao mesmo tempo em que uma onda de tremor transcorreu todo o meu corpo que mal podia conter-se de pé.
A fera emitiu um riso contido e em seguida contestou.
— Não, não sou.
— Eu estou morto? — questionei.
— Morte, vida, são apenas conceitos utilizados pelo pobre linguajar dos mortais. Eu não os culpo, isso é o máximo que a efêmera experiência da existência finita pode proporcionar-lhes — falou e virou a face escondendo nas sombras o imenso focinho.
As palavras atingiram minha mente como se fossem um aglomerado de letras desorganizadas e sem sentido.
— Quem ou o quê é você? — interroguei mais uma vez confuso com tudo aquilo.
— Quem é você?!
O ser misterioso devolveu-me a pergunta lançando-me ainda mais fundo no mar da insipiência.
— Eu sou Ravel, filho de Ma...
— Mainz e Luriel — disse a criatura arrancando-me as palavras da boca —, nascido em Anzare, AnToren, Nação da Terra. Está há algumas quinzenas de completar quatorze anos, é curioso, talentoso com a espada, veloz de raciocínio e deliberadamente teimoso! — proferiu a fera interrompendo-me.
Fiquei boquiaberto, sem reação.
Como ele sabe quem eu sou e com tantos detalhes?
— Como eu disse, eu vejo você! — afirmou, fez uma pausa, virou-se de frente novamente revelando na luz a enorme bocarra e depois continuou: — Eu sempre te vi. Sei quem é você... E você... sabe quem és?
Lembrei do que Alizah falou a respeito de Mainz não ser o meu pai e fechei os olhos apertando-os com força em uma inútil tentativa de resistir aquilo que estava nítido.
Senti as lágrimas impelirem contra minhas pálpebras fazendo pressão.
Quem eu sou?
A mente um turbilhão de pensamentos. A descoberta sobre a lâmina letal, a recente revelação sobre o fato de ele não ser o meu pai como eu pensava, tudo isso desmoronando-se como um castelo de papel atingido por uma brisa outonal.
Pouco a pouco as imagens de toda a minha vida foram se projetando uma a uma diante dos meus olhos: meu pai, minha mãe, o Leo... Tudo uma grande mentira, uma encenação que me enganara toda a vida.
Tudo o que eu soube naquele momento era que eu havia sido enganado durante toda a minha vida.
Por que eles fizeram isso? Por que mentiram para mim?!
Então, um torvelinho de emoções desconexas explodiram dentro de mim como ondas avassaladoras demolindo tudo o que encontravam pela frente: razão, sentimentos, recordações, tudo!
Num momento, em um piscar de olhos, tudo o que eu era ou tinha sido até aquele momento ruiu, afundou-se em meio ao nada.
Eu abri os olhos permitindo com que as torrentes contidas rompessem e, em meio às lágrimas, gritei:
— Quem eu sou?
O ser continuou imóvel, apenas me encarando como antes, mas sem dizer nenhuma única palavra.
— Quem eu sou? — gritei ainda mais alto.
Mais uma vez apenas o silêncio se fez ouvir.
— Eu te direi quem tu és! — A voz grave e potente transpassou o remanso num brado que outra vez congelara-me.
— Por favor, diga-me quem eu sou! — clamei já entregue e com os olhos envelhecidos pelas lágrimas.
— Não agora. Não aqui — disse a criatura em tom suave e elevou o focinho com imponência a uma altura superior aos dez metros revelando todo o seu enorme tamanho.
Seus olhos brilharam no escuro causando-me espanto e admiração ao mesmo tempo.
Mas que tipo de criatura é essa?, perguntei-me sem saber a resposta.
— Você virá a mim e eu te farei saber o que precisas! — falou em tonalidade serena e controlada.
— Como eu irei sem saber quem tu és ou onde estás?
— Quando chegar a hora você saberá — assegurou e no mesmo momento os olhos sumiram na escuridão.
— Espere! — protestei, mas não havia mais nada ali.
Olhei para trás e a abertura da caverna tinha sumido.
Me senti tonto e com o corpo todo dolorido e uma enorme pressão sobre o peito como se fosse quebrar todos os meus ossos.
— Não o mate, idiota! — bradou uma voz feminina bem distante. No mesmo instante senti cessar a pressão sobre meu peito. — Eu o quero vivo!
Aos poucos fui recobrando a consciência. Provavelmente eu tinha desmaiado.
Abri os olhos e vi que ainda estava no mesmo lugar.
— Arrrg — resmungou o naelin com aparente relutância, pegou-me pelo pé e começou a caminhar em direção a Alizah enquanto me arrastava juntamente com ele.
Continua...
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