O Rei do Cangaço

Depois de visitarmos algumas bancas, lojas e tendas e Tautos e mamãe comprarem quase a cidade inteira na grande feira central, já próximo do meio dia e cheios de sacolas penduradas aos cavalos, paramos em uma hospedaria aonde a porta da entrada principal conduzia a uma taverna chamada O Rei do Cangaço.

Garçonetes com saiotes e bandejas cheias de canecas desfilavam pelo local. Um punhado de mesas distribuídas em frente ao bar abrigava outro punhado de homens e mulheres dos mais variados aspectos. Havia mais homens do que mulheres, é verdade. Até porque algumas mulheres dali pareciam mais com os homens do que os próprios homens.

Uma garçonete que devia pesar uns cem gramas menos que uma pena nos conduziu até uma mesa vazia à direita do bar, bem próximo a uma janela de madeira. Mais à esquerda, depois do aglomerado de mesas e cadeiras, tinha uma área aberta com um pequeno palco onde três homens pequenos e rechonchudos com as barbas assanhadas estavam se apresentando.

Cada um tocava um instrumento. O da esquerda uma zabumba, o da direita um triangulo e o do meio tocava uma sanfona e tinha uma gaita presa ao maxilar. Eles se vestiam de forma bastante peculiar. Carregavam um chapéu esquisito em forma de meia lua na cabeça, cuja aba era decorada com estrelas e com moedas presas na testeira. Todos tinham lenços dependurados aos pescoços, que, por sua vez, eram presos por anéis de metal. Por cima da camisa usavam uma túnica de brim caqui, onde ficavam suspensos outros tantos apetrechos.

O trio tocava umas músicas bastante animadas. Enquanto isso, alguns dançavam até levantar poeira do chão e outros cantavam com suas canecas estendidas ao ar.

Eu achei aquilo incrível. Nunca vi tanta animação. O povo parecia feliz e despreocupado. Embora o ambiente não fosse tão bem iluminado e o recinto por não ser tão bem arejado era até um tanto abafado, a alegria, por sua vez, era contagiante.

Antes mesmo que percebesse meus pés já marcavam o ritmo da música acompanhando as batidas da zabumba.

Algum tempo depois a garçonete voltou com uma caprichada porção de mandioca cozida, junto com carne seca e batatas. Em um prato separado, ela trouxe algumas verduras contornadas por pimentas amarelas e vermelhas bastante viçosas.

Em seguida, outro homem de aspecto engraçado, magro, com a face chupada parecendo uma uva seca de bigodes vestindo um avental marrom por sobre uma camisa branca, trouxe uma jarra de cerveja e algumas canecas de madeira.

A longa e cansativa viagem nos deixara com fome. Comemos e bebemos enquanto conversávamos e observávamos o movimento.

— Tenha modos e coma de vagar, Tautos — bravejou mamãe carregando as sobrancelhas.

Ele comia como se fosse a primeira vez que via comida em semanas.

— Esse aí não tem jeito não, Lu — confirmou papai levando um pedaço de mandioca à boca.

— Rá...! Vocês dois — praguejou — me deixem em Paz — contestou o homem de aspecto hirsuto. — Nem mesmo minha mãe pegava tanto no meu pé. Eu hein! frurrrr — Soltou o ar pela boca dando uma bufadela.

— Vai ver é por isso que esse porco ainda está sozinho — sussurrou papai baixinho provocando Tautos.

— Até parece. Saiba que eu sempre fui muito popular entre as mulheres — retrucou Tautos, enquanto enchia a boca de carne.

— Desde quando? — Papai questionou espremendo os lábios. — Lembro disso não.

Meus olhos fixavam-se neles, admirado. Poucas vezes vi papai assim, rindo e conversando. Foram raras as vezes em que o velho abandonara o aspecto sisudo e taciturno.

— Com os modos que você tem — disse mamãe tirando uma madeixa dos olhos —, deve fazer muito sucesso é com as barangas, isso sim! — argumentou colocando lenha na fogueira.

— Até você, Lu? — Tautos reclamou erguendo as sobrancelhas.

Os três se olharam em silêncio por algum tempo. Tautos demonstrava indignação enquanto papai e mamãe zombavam dele. Eles eram amigos. Se conheciam bem e já tinham vivido muitas histórias juntos. Será que algum dia Leo e eu seremos assim?

Notei que o Leo estava encantado com uma mulher sentada em uma banqueta apoiando os cotovelos na superfície de madeira do bar. Ela era alta — todos eram relativamente altos para mim —, cabelos pretos presos em um rabo de cavalo. Vestia uma blusinha azul discreta com as mangas até os cotovelos e uma calça preta apertada destacando suas silhuetas. Ao virar de leve, pude reparar no enorme decote que sustentavam seus seios que mais pareciam dois melões querendo pular para fora.

— Segura a baba menino. — Dei um empurrão de leve no seu cotovelo direito que servia como apoio para o queixo fazendo com que o Leo desequilibrasse a cabeça que ficou suspensa sem apoio.

Ele acenou com a mão e retornou à posição de antes sem se importar, quase que hipnotizado.

Tautos, que estava do lado dele, chegando mais perto o encorajou a ir lá falar com a mulher. Leo deu uma encolhida na cadeira como quem se intimidasse.

— Ela é muita sopa pra sua combuca meu filho — comentou Tautos abrindo uma gargalhada. — Vai ficar aí babando ou vai ser macho e ir até lá? — repetiu o encorajamento, mas Leo ainda demonstrara-se tímido. — Iiiiih... tá com medinho, é? — continuou a provocação.

— Falou o senhor coragem — retrucou papai defendendo o Leo. — Você nessa idade se mijava todo ao falar com qualquer garota. Lembro de uma vez em que você fingiu que era mudo de tanto medo que teve de falar com a filha do leiteiro — disse papai tirando sarro do meu tio.

Tautos corou.

— Também não é para tanto — assegurou mostrando confiança. — Hoje os dias são outros.

— Então prove. Vai lá então! — Desafiou mamãe erguendo as sobrancelhas e fazendo sinal de enxotar com a mão direita.

— O que? — hesitou. — Vocês acham que eu não tenho coragem?

Todos nós balançamos a cabeça confirmando o desafio.

— Pois saibam que mulher nenhuma resiste ao meu charme — argumentou fazendo pose de galante no mesmo tempo em que cofiava a barba.

Enquanto Tautos fazia suas melhores poses e caretas, papai fez sinal para que prestássemos atenção nele. Logo em seguida disse olhando para o corpanzil à sua frente:

— Você não vai — falou em tom ritmado. — Sabe por quê?

Tautos olhou pro meu pai com cara de curioso e fazendo gesto pra ele continuar.

— Você é um MARICAS!

Ao ouvir isso, o homem de aspecto hirsuto carregou o sobrolho e cerrou o cenho.

Mamãe esticou o canto da boca e chacoalhou a mão levemente como quem antecipasse a irritação de Tautos.

— Vai se arrepender disso, seu... — Deixou morrer a frase antes de continuar enquanto fulminava o meu pai com os olhos. Ele olhou para mim e para o Leo como se estivesse envergonhado. Agora era uma questão de honra para ele.

Todos o olhamos, incrédulos. Desafiadores. Ele nos olhou com indignação, comeu a última colher de carne com mandioca e alface que sobrara em seu prato, bebeu a caneca de cerveja em guti guti deixando alguns pingos rolarem pelas barbas desgrenhadas. Bateu a caneca com força na mesa, limpou a boca com as costas da mão esquerda, passou a mão direita nos cabelos ajeitando-os — como se fosse possível pentear a copa de uma árvore cheia de galhos secos. Então, ele nos olhou desafiadoramente e, terminado o ritual, levantou-se e seguiu para o bar.

Ao chegar lá se posicionou do lado direito da mulher como quem fosse pedir uma bebida. Sem delongas, puxou assunto.

Devido à distância, não podíamos ouvir a conversa, mas provavelmente ele deve ter dito alguma asneira, pois rapidamente a mulher dos melões saltitantes começou a rir. Quanto mais ele falava, mais ela ria. Então, o homenzarrão nos olhou de soslaio fazendo joia com a mão esquerda fora do campo de visão da mulher.

— Não é que ele conseguiu! — disse o Leo, incrédulo.

— Pura sorte — bufou papai.

— Vocês precisam dar algum crédito a ele — afirmou mamãe. — Enfim as asneiras dele serviram para alguma coisa.

— Ela deve estar bêbada — argumentei.

— Ou então deve ser cega — comentou meu pai.

— Talvez ela tenha um gosto mais exótico do que o normal. — Leo acrescentou.

Todos caímos na gargalhada.

— O que será que ele deve estar falando pra ela? — perguntou mamãe.

— Não sei, mas está dando certo — respondi.

Nesse momento, Tautos olhou para nossa mesa e começou a fazer alguns sinais e em seguida nos abriu um sorriso largo triunfante.

O que se seguiu não podia ser mais hilário.

Foi mamãe quem viu primeiro.

— Olhem isso. — Ela falou apontando para o Tautos.

— O que foi? — perguntamos quase juntos, papai, Leo e eu.

— Reparem na boca dele. — Mamãe apontou o indicador para os próprios dentes.

— Os dentes! — repetimos quase juntos mais uma vez.

Havia um pedaço de alface cobrindo pelo menos dois dentes dele fazendo-lhe parecer banguelas.

A partir daí, não conseguíamos mais parar de rir. Parecia que uma roda de carroça passava repetidamente sobre minha barriga indo e voltando. Chega me faltou o ar nos pulmões.

— Eu acho que vou morrer — confessei.

Ao olhar para o lado, notei que o Leo estava quase caindo da cadeira se contorcendo de tanto rir.

Tautos percebeu a agitação em nossa mesa e fez sinal com a cabeça como quem perguntasse o que estava acontecendo. Papai gesticulou com a cabeça para que ele não ligasse para nós. Mamãe passou a mão em frente à boca fazendo sinal para que ele continuasse rindo.

Foi o que ele fez. 

Ele ria, nós ríamos e a mãe dos melões começou a gargalhar, percebendo que havíamos notado o motivo de seu gracejo.

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