O Grande Urso Pardo

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O guarda que viera me trazer o almoço ao ser recebido por mim apenas enrolado por uma toalha saiu constrangido, mesmo assim partiu sem falar nada. Pouco tempo depois ele retornou.

— Trouxe isso para você — falou, estendendo a mão e me entregando uma sacola cheia. — Creio que deve servir. — Assim que tomei o pacote de suas mãos, o homem virou e saiu antes que eu pudesse conferir o que tinha dentro.

Dentro do embrulho havia uma camiseta branca em gola vê alta, uma calça preta justa, mas não desconfortável, e um par de botas de couro. Fiquei impressionado como tudo me serviu muito bem, graças ao olhar cuidadoso do guarda, que, pensando bem, parecia mais um mordomo. As botas ficaram pouca coisa maior, mas estava de bom tamanho. Pior seria se ficasse apertado. Já estava preocupado em vestir a mesma roupa suja que cabia dois de mim.

De banho tomado, vestes novas e barriga cheia, sentei-me em uma das cadeiras da pequena mesa redonda que ficava próximo a uma janela. Fiquei ali algum tempo pensando em como chegaria até ao Urso Pardo. O dia ia avançando ligeiramente e o céu demonstrava tonalidades alaranjadas em suas bordas. 

Sem ter o que fazer, já ia começar a ficar entediado até que três batidas na porta capturaram a minha atenção. A figura familiar do mordomo se apresentou assim que abri a porta. 

— Venha comigo. Você foi convocado — disse sem dar maiores explicações e eu o segui sem perguntar.

Enquanto avançávamos fui pensando em uma forma de pedir ao rei para conhecer o Grande Urso Pardo, acreditando que ele não me negaria o pedido.

Atravessamos por toda a extensão do corredor até alcançar outro. Subimos algumas escadas até topar num átrio circular vazado de todos os lados por diversos acessos. Mas o salão do rei não é por ali?, questionei-me ao observar que tomamos rumo contrário do caminho por onde viéramos anteriormente.

O mordomo continuou por uma abertura e seguiu serpenteando pelos corredores até alcançarmos um vão bem maior e espaçoso. Ali as paredes de madeira levemente curvadas e o teto côncavo. O assoalho desta parte do castelo era todo em sucupira com nuances contrastantes entre o mostarda do alburno e o marrom escuro do cerne. Acima, alguns lustres distribuídos regularmente pela superfície lisa da parte superior ofereciam uma iluminação amarelada ao corredor. As paredes exibiam quadros característicos, com moldura rústica expondo o busto de algumas formas desenhadas à tinta. Figuras ilustres e orgulhosas dispostas uma do lado da outra, tanto de homens como mulheres, naquilo que parecia uma espécie de galeria. Fauros, o Machado do Bosque, Baruntir, o Maior e Taira, a Pantera Negra, eram alguns dos personagens ostentados com revelada filáucia no grande mural. 

O mordomo continuou andando de pressa e só não o perdi de vista porque ele parou em frente a uma das portas.

— Entre — recomendou, ratificando com um gesto de mão apontando para a entrada.

A porta ficava dentro de um recuo de uns vinte centímetros para dentro da parede do corredor. A madeira escura de ébano puro com a cabeça de um urso entalhada em relevos de dimensões em tamanho real. Esse é o quarto do Grande Urso Pardo, concluí, sentindo as palpitações na altura do peito aumentando.  

O homem espadaúdo e de barbas falhadas continuou encarando-me com olhar sereno e expressão impassível enfrente à porta. Sem se dar ao luxo de explicar qualquer coisa ele insistiu para que eu entrasse.

Segurei a maçaneta fria na mão e a girei até ouvir um "click" e destravar. Empurrei a porta aos poucos e conforme ela ia se abrindo o interior levemente iluminado pela luz natural de uma janela dupla ia sendo revelado. Um quarto suntuoso, com cortinas de seda pura e outros tecidos adornavam o lugar. Móveis rústicos e algumas armas perduradas em suportes ornamentavam o ambiente.

Mais uma vez o mordomo fez menção para que eu entrasse e foi o que eu fiz. Assim que passei pelos batentes ouvi o barulho da porta se fechando pelas minhas costas. Olhei para trás por puro reflexo e depois voltei-me para frente. O coração acelerou quando observei um homem de costas para mim e de frente para uma lareira. Um manto espesso e felpudo com tonalidade marrom escura escorria pelos seus ombros. A cintura rechonchuda e os cabelos desgrenhados do homenzarrão de aspecto hirsuto trouxe-me uma sensação familiar. Pequenas agulhadas perfurando a barriga foi o tom da sensação do momento.

— Tio Tautos — falei com voz embargada, quase entre lágrimas.

O homenzarrão vagarosamente colocou-se de frente. Dezenas de agulhadas na altura do rim infincaram-se em mim quase me fazendo curvar. Logo em seguida senti como se uma cachoeira gelada se derramasse sobre a minha cabeça fazendo-me congelar com os pulmões cheios de ar sem conseguir esvaziá-los. Os olhos castanhos expressivos do homem fixos em mim. Sua boca espremida numa linha fina e sobrancelhas carregadas.

— Oh, não — disse o homem. — Mas você não passou muito longe.

Fiquei paralisado experimentando uma amálgama de sentimentos controversos. Feliz e triste ao mesmo tempo, embora a tristeza fosse um pouco maior.

— V-Você n-não é... — Deixei a voz se apagar antes de concluir. O homem meneou a cabeça em resposta.

— Não — afirmou com firmeza e passou a mão sobre a barba castanha desalinhada. — Eu me chamo Raitus. — Ele arqueou as sobrancelhas peludas e levantou a mão direita. — Ou, se preferir, o Grande Urso Pardo, a seu dispor, meu jovem.

— Eu pensei que você fosse...

— Tautos? — antecipou-se, arregalando bem os olhos expressivos.

Gesticulei com a cabeça afirmando, sem conseguir esconder o sentimento de frustração.

O homenzarrão de aspecto hirsuto carregava certa semelhança com Tautos, mas era um pouco maior, tanto na altura como na forma.

Eu queria ver o Tautos, mas precisava ver o Urso Pardo. Algo em mim torcia para que ambos fossem o mesmo, mas minhas expectativas foram malogradas sem o mínimo de piedade.

— Oh, não, garoto. Receio desapontá-lo — respondeu a própria pergunta num sorriso desajeitado. 

— Por que disse que não passei muito longe? — questionei.

— Ah, sim, claro... — Ele levantou as duas mãos com as palmas para frente. — Tautos é meu irmão mais novo — declarou.

Senti a esperança nascendo novamente.

— Eu gostaria muito de vê-lo — revelei, quase em um pedido desesperado.

— Eu imagino, mas infelizmente isso não será possível — falou num tom dolente despertando preocupação em mim temendo pelo pior.

— O que aconteceu com ele? — perguntei e já emendei: — Ele está bem?

— É uma longa história, Ravel — disse. —  Mas antes eu tenho algo para te mostrar.

— Como você sabe o meu nome?

— Eu sei muitas coisas sobre você, meu jovem — falou o homenzarrão com sua voz roufenha, enquanto vasculhava dentro de um armário. De lá ele tirou um embrulho e o prendeu debaixo do braço. — Venha comigo.

Raitus saiu de seu quarto e acessou uma passagem no lado leste do corredor e fui atrás dele. A entrada deu direto em uma varanda do lado de fora do castelo. Uma escada desaguou em uma rampa, que acessou o térreo. A noite já se aproximava rápido e a rainha da noite já combatia a escuridão.

O Grande Urso Pardo avançou em passadas moderadas para fora dos limites do castelo e pegou uma estradinha sinuosa. Atrás dele, vi quando parou de frente a um campo aberto. Pequenos montes de terra com brotos de árvores nos topos distribuíam-se por todos os locais.

Eu ainda não havia compreendido até Raitus parar diante de um dos montinhos de terra. Esse tinha um broto bem novinho saindo do topo. Meu peito ficou gelado quando avistei um pequeno cordão com um medalhão preso envolto na pequena árvore. No meio do medalhão a familiar figura de um tatu entalhado. Fiquei parado enquanto a mente processava aquela informação em busca de compreensão.

— Era Leokus o nome dele, não é? — perguntou o homenzarrão. Permaneci em silêncio lutando contra o ímpeto de uma emoção quente que emergia dentro de mim. — Jados e os outros que estavam com eles trouxeram todos os corpos que estavam no mesmo local onde você foi encontrado. — Ele se aproximou até ficar de frente para mim. — Eu o conheci, sabia? A pouco mais de uma estação eu me encontrei com ele e seu pai. O Sr. Loan foi um fiel informante da resistência durante muitos anos — declarou.

Eu agachei diante do túmulo do Leo enquanto o líquido quente molhava a minha face. O rosto do Leo estampado na mente, ensanguentado, sem vida, com os olhos vazios. Lutei para substituir aquela imagem por outra, uma de algum momento bom que passaramos juntos, mas não pude fazer nada. Por minha causa... Ele morreu por minha causa.

Raitus repousou sua mão pesada sobre o meu ombro.

— Eu sinto muito. Sei que vocês eram muito amigos.

— Mais que isso — afirmei, com voz entrecortada pelo choro. — Leo foi o irmão que eu nunca tive.

— Eu entendo — concordou Raitus. — E por isso vou precisar de sua ajuda. Eles estão com o meu irmão — revelou.

— Tautos? — perguntei, ficando de pé imediatamente. Raitus confirmou com um sinal de cabeça. — M-Mas como?

— Eles o pegaram, pouco antes de invadirem Anzare — informou.

Um tremor ligeiro iniciou pelos ombros e depois se espalhou por todo o meu corpo gerando pequenas ondas de espasmos. Era como se um frio cortante me sobrepujasse, ainda que a temperatura estivesse agradável naquele momento do dia.

— E não é só isso — prosseguiu o Urso Pardo. — Eles também estão com o seu pai. Ambos são prisioneiros em AnToren e se não fizermos algo a respeito os dois serão executados. — Raitus olhou-me nos olhos visivelmente conturbado com suas próprias palavras.

— E o que faremos? — perguntei sem ar.

— Precisamos ir salvá-los. Acha que pode me ajudar?

Balancei a cabeça concordando enquanto secava o rosto com as mãos.

— Então você vai precisar disso — disse e me entregou o embrulho que trouxera junto com ele.

Peguei o fardo envolto em panos simples e fiquei completamente sem reação quando um brilho avermelhado se revelou em seu interior.

— Minha espada! — suspirei, incrédulo e feliz ao mesmo tempo. — Mas como você sabia que era minha?

— Eu estava com o seu pai no dia em que ele enviou o metal flamejante para Oren Zotar a fim de que os mestres zotarianos fizessem essa espada. É a única aaori que existe feita com o metal flamejante — alegou apontando para a lâmina vermelha em minhas mãos. 

— Foi o meu pai que me pediu para encontrá-lo...

Raitus acenou com a cabeça.

— Seu pai e eu temos uma longa história juntos — anunciou em um riso contido. — Vamos, não temos tempo a perder, cada minuto é precioso. Precisamos planejar como faremos para resgatar o seu pai e o meu irmão. — O Grande Urso Pardo levantou o punho direito cerrado e o apertou com força e determinação.

Continua...

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