O Desafio Torenkai
O clima desfavorável da situação trazia consigo uma nuvem espessa e escura de tensão. O som do rosnado expelido pelas ventas do povo torenkai bramia em meus ouvidos como uma funesta melodia. Os olhares frios cravejados como milhares de farpas perfurando-me as costas.
Acima, o escuro céu de madeira manchado por nuvens carregadas por folhas verdes vazadas por réstias solares, que teimavam em infiltrar-se no arvoredo. A frente, o gigante de dois metros trajando o manto felpudo do Lobo Cinzento com seus enormes caninos salientes escorrendo-lhe pela cabeça. Braços e pernas descobertos desfilando a galeria de músculos sobressaltados como uma armadura de carne enrijecida. Escapando pelas costas a empunhadura em formato da cabeça de um lobo com a lâmina escorregando por entre os dentes pontiagudos.
Calafrios por todos os lados eriçavam os pelos translúcidos da minha pele clara e fina. Por cima da pele o tecido puído e amarrotado em matizes amarronzadas envolvendo um corpo franzino e diminuto. O contraste terrivelmente evidente entre o caçador e a presa, o cão e o roedor.
Nas camadas de cima centenas, talvez milhares de torenkais empoleirados nas árvores, galhos, escadas e onde mais pudessem se aconchegar em busca de uma visão perfeita do círculo do desafio onde o Grande Lobo Cinzento estava prestes a devorar sua refeição. A multidão impaciente aguardava inquieta pelo sinal do homem sobre a tribuna, que daria início ao massacre que saciaria sua sede por sangue. Meu sangue...
— Vocês estão prontos? — bradou o tribuno para o delírio da platéia.
Jados e Jared traziam consigo a fisionomia preocupada, mas com um certo tom de desconfiança. Badum e sua trupe destilavam sua já conhecida repulsa contra o graveto e a mestiça dentro do círculo.
— Esperem! — falei, levantando a mão para o desespero do público ávido pelo início da batalha. — Eu não sei se compreendo direito as regras do combate...
A multidão inquietou-se, impaciente, rechaçando minha objeção. Talvez, crendo que de alguma forma estivesse tentando protelar o embate, porém, eu realmente não compreendia perfeitamente as regras do Desafio.
— Ah, sim claro — pronunciou o apresentador do alto da tribuna. — Afinal, você é um estrangeiro, hã? — O homem tocou a testa com a mão fechando os olhos e abrindo-os em seguida ao mesmo tempo em que afastava a mão. — Pois bem. As regras do desafio são bastante simples. O vencedor é aquele que segurar o oponente de costas contra o chão dentro da sua metade do círculo pelo tempo de três segundos. — Fez o número três com os dedos. — Ou, então, aquele que lançar o oponente para fora do círculo por três vezes. No caso de vocês — disse apontando para mim e para a Alerga —, não importa qual dos dois for lançado para fora do círculo, assim que o número somado chegar a três, ambos serão dados como derrotados. O mesmo acontece se um de vocês for imobilizado com as costas dentro da outra metade do círculo, mais uma vez, os dois igualmente perdem. — Ele me olhou com um sorriso malicioso na boca e acrescentou: — O dobro de chance de vencer e o dobro de chance de perder...
Respirei fundo e concordei com a cabeça enquanto observava atentamente o oponente do outro lado do círculo. Diferente dos demais, ele não nos encarava com o mesmo ódio, nem tampouco parecia morrer de amores por nós. Uma certa inquietação revelada em seus olhos negros. Ele parecia... impaciente. Mas não era devido à pressa em nos ver derrotados, ele só aparentava querer terminar logo com aquilo.
Se minha suposição estiver certa, assim que dado o sinal de início, ele virá à nossa captura.
Posicionei-me afrente da Alerga, mantendo-a na retaguarda. Se ele vier atrás de nós, ótimo. Assim, não precisaremos arrastá-lo até aqui. A ideia de ter que buscá-lo do outro lado não pareceu ser uma opção tão atraente.
— Alerga — falei, capturando a atenção da jovem de cabelos dourados. — Certamente ele virá atrás de nós. Prolongar a luta será um infortúnio para ele, não para nós. Ficaremos aqui aguardando que ele venha. Eu o manterei ocupado, enquanto isso, preciso que você se mantenha o mais longe dele possível, tudo bem?
Ela assentiu, meio confusa, talvez estranhando o fato de eu realmente estar levando aquilo a sério. Sua postura demonstrava desinteresse pelo desafio, como se não houvesse de fato um desafio. A jovem provavelmente não enxergava possibilidade alguma de sairmos com a vitória, então, eu precisava gerar esperança no coração dela.
O problema era que eu não tinha ideia das habilidades do adversário. Pelo pouco que vi, London revelara-se um guerreiro experiente, e até formidável, tinha que admitir. Mas tudo fora encenação. Estava no escuro a respeito de sua força e agilidade, por exemplo. Sem o uso do keer, não conseguia ver um cenário favorável. Contudo, se eu pudesse evitar usar esse poder, eu o faria. O desgaste e a ressaca como consequência do uso desta habilidade deixavam-me deveras desanimado.
Como poderei vencê-lo sem usar as potencialidades? Ele é um torenkai, isso quer dizer que sua herança de sangue é a Terra, como consequência disso, se ele for um usuário, sua potencialidade será na área de reforço...
Uma sensação dolorosa subiu pela garganta ao imaginar isso. Certamente todas as Seis Bestas são formidáveis usuários keer. Mais uma vez respirei bem fundo, deixando o ar sair vagarosamente pelos lábios semicerrados. Bom, só tem um jeito de se conhecer as habilidades de um oponente desconhecido. Lutando com ele!
Lembrei de Gamel, das lâminas velozes, de suas incríveis habilidades e como foi arriscado para mim lutar contra um adversário desconhecido. Os locais perfurados pelo ex espadachim da Irmandade das Lâminas ainda incomodavam quando forçadas. Mas esse seria mais um preço que eu teria que pagar caso quisesse ter a chance de me encontrar com o Urso Pardo e resgatar o meu pai.
— Que comecem o Desafio Torenkai! — bradou o tribuno. O sinal para o início do embate veio antes que eu me considerasse pronto. A multidão explodiu assim que o Lobo Cinzento avançou sem floreios pela linha central do grande circulo.
Com pressa parar terminar com aquilo rapidamente, o guerreiro torenkai adiantou-se com passadas largas em nossa direção. Os olhos fixos em mim como um caçador ao escolher sua presa. Alerga estava atrás de mim uns três metros e a uns dois passos da linha que margeava a circunferência. Uma boa distância, pensei.
Dei um passo para a esquerda, apenas com o intuito de observar a reação do Lobo Cinzento. Ele continuará caminhando em minha direção ou se voltará para a Alerga? O caçador pareceu não se importar com o meu movimento e manteve-se no trajeto inicial. Aos seus olhos, provavelmente nenhum dos alvos parecia ser um grande desafio.
Dei outro passo para a esquerda e notei uma leve variação na expressão do guerreiro felpudo. Assim como eu queria, London foi ficando cada vez mais longe da Alerga. Certo de que ele não mudaria de direção, mas continuaria vindo ao meu encontro, fixei-me com os dois pés sobre o chão batido e flexionei um pouco as pernas. Será melhor que tenhamos o primeiro contato aqui dentro da minha metade. Caso ele me surpreenda de alguma forma, terei todo o percurso até o lado oposto do círculo para pensar em uma reação.
O lobo avançou sem hesitar e quando chegou na distância de um braço, esticou a mão em direção à minha gola. Seu gesto foi bastante displicente, desprovido da perícia anterior. Desviei-me sem dificuldades numa passada larga para trás. London espremeu os olhos e mais uma vez se aproximou em nova investida. Escapei sem problemas mais uma vez. Ele não está levando isso a sério, conclui.
Mais um passo para trás, até ficar rente à linha de base da circunferência.
Com a fisionomia levemente irritada, o homenzarrão avançou mais uma vez com um pouco mais de velocidade e esticou os dois braços numa tentativa de me agarrar. Esperei até que seu corpo estivesse inteiramente curvado e no momento certo, antes que suas mãos envolvessem meu corpo, rolei por baixo dele e tomando impulso lancei o meu próprio corpo contra a cintura do corpanzil. O resultado foi exatamente conforme o esperado. O Lobo Cinzento cambaleou trôpego para frente.
A multidão estancou assombrada assim que avistou o guerreiro torenkai com os dois pés para fora do circulo. Seus olhos esbugalhados foram do lobo para mim com abismado espanto.
Olhei para trás e Alerga estava de igual modo surpresa. As outras quatro bestas admiraram-se no início, mas depois caíram na risada chacoteando London. O semblante do guerreiro imediatamente ganhou novas linhas. Ele não parecia irritado, pelo contrário, seus lábios espremeram-se numa linha fina, e então, acenou com o queixo positivamente para mim como se me congratulasse pelo movimento. Sem demoras, avançou novamente para dentro do círculo, desta vez, porém, com disposição corporal diferente.
— Bom movimento, rapaz! — London disse, sua voz firme e afiada ao mesmo tempo.
Acenei com a cabeça em reposta.
Sem cerimônias, o lobo selvagem vergou um pouco seu corpo e atirou-se em minha direção. Em dois passos velozes ele me alcançou com a mão sobre o meu ombro direito. Sacudi o corpo me livrando da sua pegada e saltei num giro lateral por cima do seu braço esquerdo que voava ligeiro em direção à minha gola. Assim que aterrissei rolei novamente para escapar das garras do lobo que me buscavam pelo alto.
Seu pouso gracioso tanto amorteceu a queda quanto tomou impulso para um nova investida. Desviei-me de um punho e contive o outro com o antebraço direito. A perna do adversário rasgou o ar numa chicotada giratória, que passou no vazio enquanto eu esquivava-me com um salto para trás apoiando com as duas mãos no chão.
Um explosão de ataques se precipitou contra mim sem que houvesse tempo para fugir, apenas esquivar e defender. Permanecemos assim por alguns segundos. A velocidade dos movimentos aumentando cada vez mais conforme cada ataque ia sendo desviado ou repelido. Uma abertura surgiu pelo flanco esquerdo do oponente quando um cruzado de direita atravessou sibilando pelo ar por cima da minha cabeça. Com precisa agilidade, pisei sobre a coxa direita do corpanzil para pegar impulso e voei pelo ar em um giro acrobático por sobre o homem até pousar suavemente sobre o chão de terra minimizando o impacto com os músculos das pernas devidamente flexionadas.
A essa altura um silêncio perene e esmagador se apoderava da multidão estarrecida que observava a batalha como se estivessem diante de uma assombração. Alguns cobriam suas bocas abertas com as mãos, outros seguravam os rostos com as palmas das mãos abertas e olhos esbugalhados. Alguns esfregavam os olhos como se observassem uma miragem e depois assumiam expressão ainda mais gélida. Depois disso se entreolhavam e novamente se voltavam para o círculo do desafio como se estivessem a se certificar de que todos estavam contemplando a mesma cena. Mas a reação igualmente sarapantada dos demais espectadores não deixava dúvidas, aquilo era mesmo real.
Até mesmo os outros guerreiros integrantes das Bestas de ArToren mal podiam acreditar no que estavam vendo. Antes sentados e relaxados em volta do círculo, agora tensos e com os semblantes acentuadamente terrificados.
O Lobo Cinzento virou-se de frente para mim com olhar circunspecto. Provavelmente entendendo o tom da batalha até aquele momento. Ele era mais forte e eu mais ágil. Meus golpes não poderiam causá-lo significativo dano, porém, seus movimentos não eram rápidos o suficiente para me atingir. Se continuássemos assim, a luta se arrastaria por horas até que a resistência de um de nós se esgotasse revelando o vencedor.
Levantei-me firmando o corpo sobre os pés. Agitei os braços vermelhos e doloridos. London sorriu. Fiz o mesmo.
Alerga estava congelada atrás de mim. A expressão da incredulidade estampada no rosto. Os três homens sobre o palanque estavam lívidos, provavelmente por se darem conta da possibilidade de terem de conceder às condições estabelecidas para o embate. Minha vitória já não era tão impossível quanto todos imaginavam no começo.
— Você luta muito bem, criança! — afirmou o Lobo Cinzento. Sua face tracejando admiração e reconhecimento. A figura entediada de outrora dissipada como fumaça esparsa pelo vento.
—Digo o mesmo sobre você, Lobo Cinzento! — devolvi, um tom levemente conspícuo na voz, mas ainda reverente ao grande guerreiro.
— Infelizmente nossa brincadeira vai terminar logo — declarou, abrindo um sorriso arguto.
Espremi os lábios e arqueei as sobrancelhas em resposta. O que ele pretende fazer?
Imediatamente London juntou as mãos sobre a boca. Um arrepio ligeiro escalou a minha espinha. A reação dos outros guerreiros revelando a seriedade da decisão do Lobo Cinzento, que murmurou algumas palavras em sussurros entredentes.
Imediatamente um sorriso confiante cresceu nos lábios do guerreiro torenkai, como se estivesse prestes a colocar um ponto final naquela batalha. Porém, antes que ele agisse colocando seu plano em prática, levantei as mãos igualmente sobre o rosto para a surpresa de London, que converteu rapidamente o sorriso em espanto.
— Eloi Keer EN — conjurei baixinho e logo em seguida senti o poder do keer como líquido quente espalhando-se por todo o meu corpo.
Os olhos do Lobo Cinzento arregalaram-se e o sobrolho engelhou-se como uva seca. Gorel, o Gorila Poderoso saltou levantando-se de pressa com os olhos fixos sobre mim. Os outros reagiram analogamente de forma estranha e com fisionomia enregelada. Eles olharam uns para os outros e depois focaram a atenção em mim novamente numa máscara de madeira rígida. Não parecia que eles estavam surpresos apenas pelo motivo de eu ter conjurado o keer. Havia algo mais, que não pude captar. Algo que eles pareciam sentir, mas eu não sabia identificar o que era.
Quase distraído, não fosse pelo modo sensorial inflamado não teria percebido a movimentação do adversário que se precipitava contra mim de forma abrupta. Com os músculos retesados e certamente potencializados, o Lobo Cinzento desferiu um soco tão potente que zuniu ao perfurar o ar. A sequência do que aconteceu, entretanto, fez com que alguns do meio da multidão perdessem as forças das pernas e caíssem apavorados com as mãos apoiadas sobre o chão. Jumah, a Onça Selvagem e Jarak, a Serpente Veloz cobriram a boca com a mão. Gorel levou as duas mãos à cabeça e Dantos perdeu a respiração sem compreender o que seus olhos viam.
Os homens sobre a tribuna empalideceram ainda mais quando seus olhos contemplaram incrédulos o soco potencializado do Lobo Cinzento defendido com apenas uma das mãos. O golpe fora impressionantemente poderoso, mas não o suficiente para atravessar o meu bloqueio. Na sequência, antes que London e todos os demais tivessem tempo para processar o que estava acontecendo, um chute giratório com incrível violência atingiu o Lobo Cinzento na altura do peito arremessando-o como um projétil no meio da multidão aterrorizada.
Dois a zero!
Aquilo parecia inacreditável para o povo torenkai. No início, todos demonstravam-se bastante seguros de que o lobo esmagaria o rato, o caçador abateria a presa. Agora, no entanto, contra todas as probabilidades, um de seus maiores guerreiros havia sido atirado longe por uma criatura de aparência débil e raquítica aos padrões do seu povo. Já não havia mais a certeza da vitória, e as garantias de que seu povo se livraria de dois incômodos de uma única vez, abria as portas para que começassem a nos considerar como membros honoráveis de sua comunidade.
Alerga continuava paralisada, e não era para menos. Entretanto, uma luzinha de esperança começava a se acender em sua face quando seus olhos verdes pousaram sobre os meus. Ainda que a luz fosse parca, naquele momento não havia mais nada que eu desejasse tanto, a não ser, mantê-la acesa e cada vez mais constante.
Não demorou e o Lobo Cinzento emergiu do meio da multidão caminhando ofegante para dentro do círculo novamente, desta vez, sua confiança parecia estar um pouco abalada. Mesmo assim, ele atravessou as linhas brancas desenhadas no chão em forma circular com um sorriso perspicaz nos lábios. A serenidade de outrora não era mais tão evidente e um aspecto diáfano de uma crescente irritação começava a se desenhar em seus traços. Eu havia puxado o rabo do lobo e isso o deixara furioso. A confiança ainda me envolvendo como um baluarte, contudo, o que veio a seguir arrancou-me completamente o ar dos pulmões.
Continua...
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