O Bosque do Rei

Logo pela manhã um oficial do exército do rei veio me buscar. O dia ainda nem havia surgido por inteiro e uma espessa neblina branca cobria toda a cidade das árvores. Sempre odiei acordar antes do sol nascer, mas como dormi o dia anterior inteirinho, já estava desperto há mais tempo que gostaria.

— Eu sou Gunda, Terceiro Bastão do Regimento Carvalho Forte e vim buscar o Grande Lobo Branco — disse o oficial abruptamente com voz animada assim que Jared o atendeu na porta.

Seus olhos arregalaram-se surpresos logo que atravessei o umbral do corredor que separava o pequeno quarto da cozinha surgindo à esquerda da entrada principal da casa.

— Você deve ser o Grande Lobo Branco — falou o homem esticando levemente o canto da boca peluda do alto dos seus quase dois metros olhando para baixo. Suas sobrancelhas espremeram-se num emaranhado de pelos.

— Pode me chamar de Ravel, Gunda — comuniquei, sem uma gota de formalidade no tom.

O som de seu nome soou engraçado na boca. Tive que reprimir um riso inoportuno afim de evitar constrangimentos. Mas que mãe coloca o nome numa criança de Gunda, pensei, ainda lutando contra os lábios que insistiam em se esticar enquanto a mente traiçoeira teimava em trocar o G por B.

— Como quiser, senhor — concordou o oficial ainda me varrendo com os olhos e abriu espaço para que eu passasse pela porta.

Fiquei um pouco constrangido ao ser chamado de senhor por um homem com o triplo da minha idade e o dobro do meu tamanho, mas não fiz questão de corrigi-lo desta vez.

Jared me lançou um olhar espremido e balançou a cabeça numa postura inquisitiva. Ouvi sua voz falha no meu subconsciente dizendo: "Não vá se meter em encrenca, menino, hã!"

Respondi com um aceno e um sorriso amarelo antes de ser escoltado pelo oficial através das entranhas da opulenta Cidade das Árvores.

O friozinho matutino acariciou-me a pele que arrepiou-se ao seu toque exibindo fileiras de pelos translúcidos espalhados pelo corpo. Como faz frio aqui, pensei, acostumado com as altas temperaturas de AnToren. As folhas verdes das árvores gotejavam molhadas pelo orvalho que cobria todo o jângal. A madeira úmida recendia uma mistura agridoce bastante peculiar daquela região.

Descemos por toda a estrutura da cidade até alcançarmos o solo. Lá nos aguardavam outro oficial e a jovem de cabelos dourados. Com eles, mais quatro cavalos amarrados no tronco de uma árvore menor.

— O Grande Lobo Branco — disse o outro oficial assim que nos aproximamos com uma ênfase desnecessária no grande, mas sem demonstrar desrespeito na expressão.

Aqueles homens não estavam no arvoredo no dia do desafio. Eles não tinham assistido o duelo entre London e eu. Era de se esperar que se surpreendessem assim que repousassem seus olhos curiosos sobre minha aparente forma frágil.

Alerga parecia muito tímida, evitando olhar-me nos olhos. Não é de se admirar, certamente sua personalidade é fruto de todos os anos sendo vítima das mais variadas gozações. No entanto, o que importava agora é que ela estava livre de tudo aquilo e poderia desfrutar de uma vida mais justa dali para frente. Uma sensação enorme de satisfação sobrepujou-me ao pensar sobre isso.

— Olá — falei aproximando-me dela, quase hipnotizado pelo conjunto de fios dourados escorrendo de sua cabeça e emoldurando seu rosto em forma de diamante com o queixo levemente alongado.

Seus olhos verdes se encontraram com os meus num aceno singelo e imediatamente desviaram-se.

— Vejo que você também ganhou uma. — Levantei o braço revelando a pulseira amarela presa ao pulso.

Ela olhou de soslaio para o meu braço e depois para a própria pulseira verde e agradeceu em meio a um sorriso tímido.

No Vale do Precipício havia notado que sua pulseira se prendia ao tornozelo esquerdo e, seja lá o que queira significar isso, não devia ser boa coisa. Mas isso não importava mais, fazia parte do passado dela e eu tinha contribuído para que isso mudasse definitivamente.

Foi a primeira vez que usei minhas habilidades a favor de outra pessoa e isso me proporcionou um sentimento esquisito de satisfação, embora, é claro, eu mesmo tivesse pretensões com o desafio. No fim de tudo, ambos lucramos.

— Melhor nós irmos — disse Gunda, arrancando-me da hipnose. — Teremos uma longa viagem pela frente. — Ele montou em seu cavalo e todos fizemos o mesmo.

A viagem durou cerca de duas horas. Alerga e eu ficamos em silêncio durante todo o percurso. Ela parecia evitar conversar e eu não tinha ideia de qual assunto falar. Ainda tinha o fato de temer importuná-la com inconveniências.

Além disso, os leves tremores pelo corpo eram indicativos suficientes para me fazerem manter a boca fechada. E foi o que eu fiz, pensando que pareceria um idiota se puxasse qualquer assunto, ou um imbecil caso ficasse em silêncio. Escolhi ser um imbecil, um imbecil mudo, por sinal.

Os dois oficiais foram a frente e logo uma grandiosa silhueta em tonalidades de vermelho escuro apareceu no horizonte.

— O que é aquilo? — perguntei, impressionado.

— Aquela é a Grande Muralha Torenkai — Gunda revelou por cima dos ombros.

— Vinte metros de altura e seis de largura — completou o outro oficial, com estudado orgulho.

— Do que é feita? — questionei, boquiaberto, conforme nos aproximávamos, estranhando as nuances rubras da opulenta construção. Não deve ser de pedra, imaginei.

— De madeira, oras. O que mais poderia ser? — respondeu Gunda, olhando-me por cima dos ombros com o sobrolho carregado.

— Mas madeira não seria um material impróprio para uma muralha de proteção? — indaguei com cuidado, sem querer parecer ofensivo.

Ambos os oficiais se entreolharam e depois riram alto. Quase caí do cavalo com o estardalhaço causado pela gargalhada.

— Rá... É Pau-Brasil, Garoto — replicou Gunda numa trovejada. — É tão forte como uma rocha.

— Além disso é um material ignífugo — acrescentou o outro.

— I-Igni o quê? — perguntei, não compreendendo a palavra.

Ignífugo — repetiu o homem devagar. — Significa que é resistente ao fogo.

Essa me surpreendeu. Eu tinha uma árvore de Pau-Brasil plantada bem no quintal de casa a vida inteira e não sabia de suas peculiaridades anticombustíveis.

Conforme nos aproximávamos a muralha crescia adiante como uma verdadeira montanha vermelha. De um lado e do outro seus limites se perdiam revelando sua enorme dimensão. Pequenas torres com janelas quadradas estavam espalhadas regularmente por toda extensão da construção. Nos intervalos entre uma torre e outra esticavam-se ameias e merlões com formato pontiagudo.

Um suntuoso portão único instalado em um recuo na muralha carregava um símbolo em seu seio — uma enorme árvore de Pau-Brasil.

— Aquele é o símbolo do Bosque do Rei? — questionei.

— Não! — respondeu Gunda, de costas. — Esse é o simbolo de toda ArToren, revelou com certa dignidade.

— Representa a força e a resistência do povo torenkai — acresceu o segundo oficial com voz ostentosa.

Assim que nos aproximamos o suficiente, percebi o movimento de alguns soldados pelas ameias. Outro oficial de dentro de uma das janelinhas fez sinal para que abrissem o portão logo que Gunda fez um sinal de mão.

O som de engrenagens girando soou ao mesmo tempo em que a enorme porta de madeira começou a subir. A base do portão era cheia de dentes que se prendiam ao solo dando a impressão de uma enorme bocarra revelando sua garganta conforme a mandíbula superior ia se abrindo.

Ao passar pelo portal entramos por um pequeno túnel estreito que dava acesso a um espaço aberto. Meus olhos mal puderam acreditar no que viam. Árvores de Pau-Brasil se espalhavam por todos os lados. Continuamos avançando sob o olhar coscuvilheiro de inúmeros torenkais que nos seguiam com os pescoços. Algo bem específico, porém, me chamou a atenção. Havia muitos soldados divididos em vários pelotões. Alguns portavam espadas, outros lanças e bastões, mas todos eles vestiam-se com uma armadura completa no peculiar tom avermelhado, desde o elmo na cabeça até as caneleiras contrastadas por botas de couro negro.

Várias cabanas se espalhavam por todo o território. O som de martelos resvalando em metal, o crepitar dos cascos dos cavalos ao amassar o solo e o volume misturado de vozes falando ao mesmo tempo formavam a algazarra de uma recepção bastante calorosa. Assim que nossos cavalos iam adentrando, todos, tanto soldados como cidadãos aparentemente comuns iam perfilando em extensas paredes nos abrindo passagem.

Conforme passávamos os torenkais se entreolhavam e cochichavam uns nos ouvidos dos outros. Nem preciso mencionar que eu era o centro das atenções. Pelo menos, suas fisionomias não revelavam mais a tão marcada hostilidade de outrora, apenas curiosidade. Ouvi por uma dezena de vezes enquanto passava a expressão Lobo Branco. Entretanto, o povo parecia meio confuso, provavelmente pela dificuldade de associar a referência do Grande Lobo Branco, vencedor do Desafio Torenkai, com a minha aparência.

Adiante, algo ainda mais impressionante capturou minha atenção. Um suntuoso castelo de madeira envolto por um muro menor e com três torres se delineava ao fundo. Aquela parecia a direção para onde os oficiais estavam nos levando.

Os oficiais avançaram por sobre uma rampa que conduzia a uma plataforma bem diante da entrada do castelo guardado por uma porta dupla com a parte superior oval. O mesmo símbolo de antes estampava a madeira do portal e se espalhava por outros lugares da cidadela.

Ambos os oficiais apearam de suas montarias e sinalizaram para que fizéssemos o mesmo, e assim o fizemos. Guardas na entrada do palácio vieram receber-nos tomando os animais pelas rédeas.

— Não íamos para o Bosque do Rei? — perguntei baixinho aproximando-me de Gunda.

Tudo isso aqui é o Bosque do Rei! — Ele gesticulou com a mão apontando para os arredores. — Venha, o Rei está nos esperando — disse e prosseguiu, enquanto outros guardas nos abriam as portas.

Um vasto salão se revelou adiante. Dezenas de tapetes adornados escorriam pelos pilares laterais que contornavam o salão. O piso parecia ser de um tipo de madeira reluzente semelhante a um espelho. Um altar se elevava na parte norte do salão circundado por degraus revelando um trono ao meio. Sobre o trono, a figura imponente de um homenzarrão ruivo com uma coroa dourada sobre a cabeça e um manto vermelho derramado sobre os ombros. Na base da escada que conduzia ao trono do rei, havia mais três homens, os quais nos observavam atentamente conforme adentrávamos pelo grande salão principal.

Meu coração acelerou-se um pouco quando os dois oficiais se ajoelharam diante do altar.

— Majestade!

Alerga e eu fizemos o mesmo.

— Levantem-se. — Ecoou a voz poderosa e grave do rei em tom amigável. — Confesso que estava ansioso por te conhecer, Grande Lobo Branco. Agora, porém, confesso que estou um pouco surpreso.

Levantei-me sem saber o que fazer. Nunca estivera na presença de um rei antes e não tinha a menor ideia do decoro apropriado para a ocasião, sendo assim, decidi optar pela imitação. Por isso, fiquei atento aos outros oficiais analisando cada um de seus movimentos.

— Aproxime-se — ordenou o rei gesticulando com a mão em minha direção.

Fiz conforme sua vontade e avancei, inseguro.

O rei se colocou de pé fitando-me de cima abaixo.

— Pelos santos galhos do Grande Gorumbak — falou num estrondo de voz. — Você é só uma criança. — Ele abriu os braços e olhou para os outros homens a frente do trono e depois voltou-se para mim novamente. — Quantos anos você tem?

— Vou fazer quatorze anos, majestade — respondi, olhando-o nos olhos sem saber se estava agindo certo.

— Quatorze anos? — repetiu com incredulidade. — London vai ter que me explicar umas coisinhas — disse no meio de um sorriso vistoso.

Os outros homens riram juntamente com ele e eu permaneci congelado.

— Depois vou querer ver uma demonstração de suas habilidades, Grande Lobo Branco. Disseram que você se move mais rápido do que uma onça e tem a força de dez gorilas!

— Como quiser, majestade — respondi num tom monocórdio. — Mas receio de que essas informações a meu respeito sejam um pouco superestimadas.

— Vamos, garoto, deixe de formalidades. Você está em ArToren, entre torenkais, o povo mais espontâneo de toda Anur — disse, gesticulando com as mãos e tomou assento outra vez. — Bom, de todo modo gostaria muito de continuar a nossa conversa, mas infelizmente estou no meio de uma reunião de negócios — disse acenando para os outros três homens diante do altar. — Um dos guardas irá acompanhá-los até os seus aposentos e servi-los uma refeição bem gordurosa. Vocês devem estar famintos. Assim que possível mandarei chamá-los.

Assim que terminou de dizer estas palavras o rei acenou para um dos guardas, que atendeu imediatamente e nos conduziu pelo castelo até os nossos aposentos. Subimos pelas escadarias até acessar um corredor com portas de ambos os lados. O guarda com um molho de chaves nas mãos abriu uma porta de um lado do corredor e outra do outro. Após introduzir Alerga em um dos quartos e eu no outro, retirou-se deixando-nos a sós.

O quarto era imenso e uma cama de casal forrada com lençóis brancos e cheirosos me fez um ligeiro convite para o descanso. Uma cômoda, uma pequena mesa redonda com quatro cadeiras e um guarda-roupas vazio com apenas alguns lençóis e cobertores compunham a mobilha do aposento. Pensei em me jogar naquela cama e esticar os pés e o quadril cansados da longa viagem, mas fiquei com receio de manchar a alva roupa de cama com a fuligem da estrada impregnada em minha pele.

Um pequeno cômodo separado por uma cortina comportava uma pia, um vaso e, para a minha alegria, uma tina em tamanho confortável com alguns esfregões pendurados. Depois de um agradável banho de água morna com algumas ervas disponíveis, enrolei-me em uma toalha e pulei na cama.

Depois da refeição, levada por um dos guardas, sem ser convocado pelo rei, passei as próximas horas descansando e formulando um plano para agir assim que conseguisse alguma informação a respeito do meu pai. Para isso, antes, eu teria que encontrar o Grande Urso Pardo, o que para a minha surpresa não demorou muito para acontecer.

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