Luto


Acordei no meio da noite, assustado e deprimido. O corpo inteiro doía e as lágrimas jorravam bruscamente. Os olhos castanhos e os cabelos engraçados assaltavam minha memória, e então, a imagem era substituída por olhos frios e sem vida. Leo!

Subitamente perdia os sentidos e apagava. Isso aconteceu várias vezes durante toda a noite enquanto eu permanecia estático, sem sequer poder me mover.

Quando o sol apontou no oeste acordei aturdido e inclinei um pouco a cabeça, como se despertasse de um pesadelo. Porém, bastou olhar em volta para perceber que um pesadelo pareceria um sonho feliz diante da dura realidade que me cercava.

Meu melhor amigo estava morto. O único amigo que tivera a vida toda. E nada poderia mudar isso.

O peso desta verdade assolou-me mais do que qualquer um dos meus ferimentos.

O corpo todo debilitado não me permitiu sequer sair do mesmo lugar. As pálpebras pesavam quilos. Apaguei novamente.

Horas depois despertei completamente desorientado. O corpo sacolejava de um lado para o outro. Os olhos semi-serrados devido a forte claridade contemplaram o horizonte passando lentamente para trás. Desta vez, a luminescência amarelada colocava-se bem no meio do céu.

Ouvi um burburinho de vozes distantes. Os sentidos confusos demais para identificar qualquer inteligibilidade.

O vozear continuou zunindo incompreensível. A mente azoinada forçou em busca de algum entendimento e, com muita dificuldade, consegui pescar algumas palavras desconexas.

— Caído... sangrando — disse uma voz feminina.

Tentei erguer a cabeça na direção da voz, mas foi como tentar mover uma montanha.

— Todos mortos... — falou alguém num ruído grave compassado.

O corpo sacudindo de um lado para o outro agonizava de dor. Tempo depois pude sentir que o sacolejar era causado por pequenos impactos ritmados. Cavalo?, supus...

Os ouvidos esforçaram-se em busca de alguma compreensão.

— Será que foi ele? — perguntou o homem.

— Como poderia? — objetou a mulher. — O menino é só pele e ossos, coitadinho! — Essa foi a frase mais nítida que consegui captar.

Quem são essas pessoas? Para onde estão me levando? Fui capturado?

Os sentidos começaram a desorientar-se de novo. O mundo girou vertiginosamente e perdi a consciência mais uma vez antes de conseguir capturar qualquer informação relevante que pudesse lançar luz sobre o que estava acontecendo.

Despertei-me outra vez, ainda zonzo. O dia já havia ido embora. A dor aguda na boca do estômago se destacava entre as outras. Tive frio, então percebi que estava enrolado em uma manta. Dentes apertados. O corpo tremulava por inteiro.

— Acha que ele vai sobreviver? — questionou a voz masculina.

— Não sei — respondeu a mulher. — Está muito quente e perdeu muito sangue — constatou com consternação.

Percebi que o sacolejar havia cessado. Tive a clara sensação de estar sendo carregado por braços bem fortes. Abri os olhos o máximo que pude e notei com as vistas embaçadas os fios longos de uma barba bem rotunda.

— Q-Quem... — Tentei dizer algo, mas a voz fora impedida por um nó na garganta.

— Ele está acordando — disse alguém ao lado. Talvez a mesma mulher de antes.

Meus olhos só vislumbravam vultos disformes. Lutei novamente para dizer algo, mas outra vez não consegui.

A mente parecia ligar e desligar sucessivamente de tempo em tempo. Busquei o céu com os olhos, mas tudo o que pude contemplar foi uma cortina verde formada pelo conjunto de milhares de folhas.

Árvores? Onde estou?

Senti o corpo balançar mais uma vez como se estivesse sendo carregado através dos degraus de uma imensa escada.

Pequenos pontos alaranjados tremulavam espalhados por todos os lados iluminando o local.

Acho que cochilei brevemente e espertei.

— Pode ser perigoso — falou a voz grave em tom de censura.

Senti dedos quentes em minha testa...

— Está ardendo em febre. Não podíamos deixá-lo lá para morrer, hã?

— Mas ele pode ser um assassino — objetou uma voz masculina.

— Olhe só para ele? Tão franzino... — Percebi um toque suave afagando meus cabelos. A cabeça latejava dolorida. — É só uma criança. Provavelmente só mais uma vitima de um bando de salteadores... Você sabe como as estradas estão perigosas ultimamente.

Com muito esforço, desta vez consegui erguer um pouco a cabeça na direção de onde vinha a voz feminina. Não sem dificuldades e nem com a clareza desejada, avistei um emaranhado de cabelos compridos e volumosos que emolduravam um rosto pardo.

— Jados, veja... Ele acordou! — disse a mulher com os olhos esbugalhados em minha direção.

Reuni todas as minhas forças e lutei para formular algumas palavras...

— Onde... eu estou?

— Num lugar bem seguro, rapaz. Ninguém te fará mal aqui — respondeu prontamente.

A notícia soou reconfortante. Tudo o que fiz nos últimos dias fora fugir de quem queria me fazer mal.

A imagem do Leo em meus braços subiu-me a mente novamente e senti as lágrimas brotarem.

— Agora descanse. Você foi muito ferido. Jados e eu vamos cuidar de você.

Sem forças, desfaleci mais uma vez vencido pela fraqueza e as múltiplas dores que espalhavam-se por todo o meu corpo.

Ao acordar mais uma vez consegui abrir os olhos com maior facilidade que antes. Uma senhora de uns cinquenta anos ou mais ressonava profundamente em uma cadeira de madeira ao lado da cama onde eu estava deitado.

Levei a mão até o estômago em resposta à dor e notei uma pequena protuberância. Aliás, havia o mesmo sobre a ferida abaixo, na barriga, e nas outras perfurações. O corpo estava praticamente encoberto por faixas.

Ao olhar ao redor notei que estava em um quarto todo de madeira iluminado pela acanhada luz de uma lamparina.

Gotas de suor pingavam da minha testa. Já não sentia tanto frio. Intentei levantar, mas não encontrei forças. A cama rangeu acordando a senhora de seu sono profundo. Seus olhos castanhos expressivos se encontraram com os meus.

— Oh, meu rapazinho. Não se esforce tanto, hã? — Ela levantou e com as duas mãos em cada um dos meus ombros deitou-me novamente. — Não vai querer que essas feridas fiquem sem cicatrizar, não é? — disse fitando-me com afeição maternal.

Deixei o corpo deitar sem resistência enquanto encarava a mulher ainda desorientado.

— Vamos, não precisa ficar assustado. O meu nome é Jared. Você está em minha casa. Meu marido e eu o encontramos semimorto na estrada e o trouxemos. Não precisa se preocupar...

— Onde estou? — Consegui perguntar, embora tenha soado quase como um sucinto murmúrio.

— Você está no Arvoredo — respondeu de forma objetiva.

Arvoredo Torenkai?

— Oras, e onde mais poderia ser? — respondeu e abriu um largo sorriso amarelado.

— Eu preciso...

— Você precisa descansar — interrompeu-me. — Agora durma. Estamos no meio da madrugada e não queremos acordar o Jados, não é mesmo? O bicho quando não dorme direito fica com um mal humor desgraçado. — Ela levou a mão à boca retendo uma gargalhada. — Eu vou ficar bem aqui do seu lado. Se precisar de alguma coisa é só me chamar. Tá bom?

Acenei levemente com o queixo e fechei os olhos. Sem saber quem eram aquelas pessoas e qual o objetivo delas em relação a mim, decidi descansar o máximo possível até recuperar minhas forças.

A visão da minha mãe, do meu pai e do corpo abatido do Leo aterrorizaram-me durante toda a noite. Senti um vazio intenso no peito e uma dor mais profunda do que qualquer outra que já havia experimentado em toda a minha breve vida. Procurei pela extensão do meu corpo, mas não era uma dor física. O peito apertado. A mente aturdida. Suprimi o pranto com a manta.

Eu estou sozinho!

A compreensão desta verdade traspassou-me mais profundamente do que qualquer lâmina inimiga. Porém, a pior constatação foi perceber que eu estava completamente desarmado contra esse inimigo. E isso me afligiu dolorosamente.

Segurando firme o cobertor sobre a cabeça lutei veementemente contra o desejo de ter morrido no lugar do Leo. Eu não consegui protegê-lo. Ele e sua família deram a vida por mim e eu não pude fazer nada.

Pressionei mais forte a manta contra o rosto sentindo ódio de mim mesmo. Você deveria ter morrido e não ele!

Porque você teve que morrer em meu lugar, Leo?

Imediatamente sua voz ressoou em minha memória:

"Por que é o meu dever proteger o Descendente do Dragão Vermelho", disse ele enquanto enfrentávamos o Mapinguari na Floresta Sagrada.

Naquele momento, em meio a tanta angústia eu recordei de mais algumas palavras esquecidas proferidas pelo Leo durante aquela batalha. Palavras que talvez pudessem dar algum propósito à minha existência.

"Há muito tempo o mundo aguarda pela esperança de dias melhores, pelo nascimento daquele que trará o equilíbrio e porá um fim aos tempos de guerra. Por isso eu não posso deixar você morrer aqui!", disse ele quando tomou minha frente contra a Última Besta da Terra.

Então é nisso que você acreditava, Leo? Mas como eu poderia ser a esperança de dias melhores? O que eu poderia fazer?

Ansiei em tê-lo ali comigo, para que eu pudesse perguntar-lhe sobre o real sentido de suas palavras, mas eu estava sozinho. O pranto tornou-se num abafado lamento enquanto eu meditava sobre o significado de tudo aquilo. A mente fervilhou ainda desnorteada e o corpo abatido e debilitado teimava em roubar-me os sentidos. Não demorou muito e adormeci novamente.

Continua...

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E o capítulo de hoje vai para a MariaEduardaSousaS3

Feliz aniversário, Duda. Você tem sido uma das grandes inspirações para o meu trabalho. Obrigado por existir! 🙏❤

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