Despedida
Quando chegamos os encontramos sentados na escadinhola. Papai pressionava um pano umedecido contra o peito ensanguentado e apresentava uma nova cicatriz na face atravessando-lhe a maçã do rosto. De primeira vista, não pareciam ser ferimentos profundos. Ele olhava desconfiadamente para o Mapinguari que estava logo adiante, parecendo dar a mínima para a cisma do velho guerreiro.
— Onde estão os inimigos? — perguntei ao me aproximar, não vendo nenhum adversário vivo ou morto.
— O grandão aí levou todos os corpos... Para onde eu não sei — respondeu Leo prontamente encolhendo os ombros estando sentado no topo da escada uns quatro degraus acima do meu pai.
Observando em volta, era fácil perceber que o cenário revelava rastros de uma intensa batalha. Até o corrimão da escadinha estava partido ao meio e, como ele, alguns degraus.
Sem pronunciar palavras, Curupira aproximou-se do gigante que parecia uma estátua em frente ao bangalô. O pequenino afagou com as mãos os pelos da perna da fera envolvendo-a num abraço amistoso.
— Você está bem grandão? — Quis saber. A besta da terra deu um gemido plangoroso em resposta.
Ao ouvi-lo, Curupira curvou sua cabeça com os olhos fixos no chão.
— O que houve? — indaguei.
Depois de um silêncio lúgubre, respondeu:
— Alguns dos nossos amigos deixarão muitas saudades — disse e encarou-me erguendo levemente a cabeça. Seus olhos estavam marejados.
— Sinto muito — expressei quase num sussurro, entendendo que alguns dos animais convocados para a batalha haviam morrido durante a luta.
Um sentimento incômodo sobrepujou-me ao perceber que nós levamos aquela batalha à floresta.
Sem conseguir continuar a encarar o Curupira, caminhei até meu pai e Leo e sentei-me num degrau na base da escada juntamente com eles. Com o corpo extenuado, repousei a lâmina flamejante sobre o degrau de madeira e relaxei os braços.
Leo olhou para a espada e mordiscou os lábios. O borrão rubro escuro ainda manchava a lâmina vermelha que era pouco mais clara que o sangue. Ele gesticulou com a cabeça como quem sem palavras agradecesse por ainda estarmos vivos.
Eu fiz o mesmo.
— Vocês estão bem? — perguntei.
— Estamos — respondeu Leo. Papai apenas acenou com a cabeça com os olhos fixos em seu ferimento.
Eu estava decidido a perguntar-lhe sobre quando ele havia conhecido mamãe e quais foram as suas motivações em decidir me criar como filho. Aliás, muitas dúvidas ainda assolavam-me, como, por exemplo, como ele soube que eu era... diferente? Por que esses anos todos ele havia escondido tudo isso de mim me fazendo acreditar que ele era o meu pai verdadeiro?
Outra pergunta ainda mais dolorosa me assombrava de forma que eu preferia evitar pensar nela... Se ele não é o meu pai, então, quem...
— Parece que vocês não tiveram muitos problemas com os naelins — perguntou Leo arrancando-me de meu devaneio. — Digo... vocês nem ao menos estão... feridos! — afirmou olhando-me de cima abaixo e depois para a espada.
Eu não estava interessado naquele assunto, então apenas arqueei as sobrancelhas e respirei fundo.
Fitei meu pai novamente e lembrei que ainda tinha a questão sobre o oráculo mencionado por Curupira. Tive vontade de perguntar ali mesmo, mas o clima do momento dizia que aquela não era uma hora oportuna. Decidi protelar, estranhamente aliviado, usando aquilo como pretexto para a minha falta de coragem, que emergiu assim que meus olhos pousaram sobre o velho guerreiro de semblante sisudo. Só de pensar em o amolar com perguntas naquele momento as minhas pernas já ficavam moles e lânguidas.
Então, ficamos ali parados em silêncio durante um bom tempo enquanto a escuridão avançava com as suas sombras noite adentro.
Meu corpo estava extenuado e eu não era o único que estava assim.
Passado algum tempo, Curupira convidou-nos a entrar em sua pequena casinha a fim de descansarmos. Foi o que fizemos sem resistência.
Todos adentramos e nos acomodamos pelo chão de madeira, que, embora não fosse tão confortável, era bem melhor do que o relento.
— Durmam — recomendou o pequeno. — Eu ficarei de vigia.
— E quanto a você? — questionei e abri a boca num bocejo longo.
— Oh, eu ainda tenho energia de sobra — falou num risinho de olhos apertados.
— M-Mas você também...
Ele agitou as mãos rechaçando minhas condolências e saiu pela portinha sem dar explicações.
Não demorou muito e caí num sono profundo. Papai e Leo fizeram o mesmo, cada um num canto da casa.
Poucas horas depois fui despertado por um cheiro que me fez salivar. Ao inclinar com a cabeça, percebi que papai e Curupira conversavam aos sussurros. Eles silenciaram tão logo notaram-me acordado.
— Café? — perguntei incrédulo, disfarçando. Há dias não tomava um dejejum decente.
— Também — respondeu Curupira com voz serena. — Venha. Junte-se a nós!
Levantei-me de pressa e ao olhar para a mesa o coração até acelerou. Além do café, queijo fresco, pão, manteiga e leite completavam o cardápio.
Leo uniu-se a nós logo em seguida acordado pelo arrastar de cadeiras. Seus olhos cravaram-se arregalados para a mesa. Diferente de mim, nem precisou de convite. Apenas sentou-se e começou a devorar tudo a sua frente.
O sol atravessava com força a modesta abertura da janelinha e se projetava sobre a casinha iluminando-a por completo enquanto comíamos calmamente cada guloseima posta sobre a mesa, que não demorou muito para esvaziar-se por completo.
Fartos, ficamos quietos, reflexivos, sem pronunciar palavra alguma. Também parecíamos evitar o olho no olho.
— Vocês precisam ir — recomendou Curupira num tom amistoso. — Mais deles virão. E depois mais e mais...
Mainz aquiesceu e começou a se levantar sem floreios.
— Eu os fiz saber a vontade de Pantanus sobre qual caminho vocês devem percorrer — falou e olhou para mim e depois para o meu pai. O velho pareceu querer dizer algo, mas conteve-se. — Eu não irei interferir. Como havia dito anteriormente, vou ajudá-los a atravessar a floresta, depois — falou e ergueu as mãozinhas com as palmas abertas —, cada um de vocês seguirá o seu próprio caminho, conforme sua própria consciência — assinalou e abaixou as mãos.
— Vamos meninos. Arrumem suas coisas — ordenou papai. — Logo partiremos.
Leo e eu obedecemos prontamente e levantamos de pressa. Ao passar os olhos sobre Curupira, percebi que ele estava me encarando. Com o sobrolho arqueado, o guardião da floresta parecia querer me fazer relembrar de suas recomendações.
Com o coração apertado continuei a arrumar as nossas coisas, que não passavam de algumas poucas sacolas de pano e couro velhos.
Assim que terminamos, Curupira partiu para a porta.
— Vocês estão prontos? — perguntou.
Papai gesticulou a cabeça em resposta.
— Então venham comigo — orientou o pequeno de pés invertidos. — Eu lhes mostrarei o caminho.
Caminhamos por três horas seguidas e sem descanso. Todos seguíamos o Curupira, que velozmente se movia pela mata. Mapinguari ficou sob advertência do pequenino com a instrução de proteger a entrada da Floresta Sagrada.
Depois de atravessarmos o extenso labirinto verde, a muralha de caules robustos e suas copas frondosas deram lugar a um gigantesco prado verde que se estendeu adiante.
A campina parecia não ter fim. Aquilo desmotivou-me um pouco, pois sabia que não atravessaríamos aquilo sem enfrentar mais umas boas horas de caminhada.
— Bom, daqui em diante vocês seguem sozinhos — disse o Curupira.
Leo e eu ficamos sem reação, e agradecemos o pequenino.
Também agradeceu de modo bastante desconfiado, o velho espadachim que ainda carregava o casulo com alças presas aos ombros.
Antes, porém, que um clima amistoso se estabelecesse, o guardião da floresta nos encarou uma última vez numa expressão dura.
— Eu espero que vocês não sejam burros o suficiente para desprezar os conselhos do grande Pantanus — disse na sua já conhecida postura blasonadora. Antes que digeríssemos suas palavras, emendou, olhando para o meu pai: — Não vá colocar esse menino no meio de uma guerra movida por interesses egoístas — asseverou exasperado. — Não foi por esse motivo que você foi escolhido para guiá-lo. Lembre-se do oráculo, lembre-se daquele dia, lembre-se da missão que recebera.
Mainz pareceu engolir a seco aquelas palavras e, como alguém decidido e inabalável, ajeitou as alças sobre os ombros, virou o corpo de costas para a floresta, e caminhou com passos pesados. Fosse o que fosse, nada demoveria o lendário espadachim de suas intenções, nem mesmo a recomendação do grande Pantanus, Guardião e Ser Vivente da Terra.
Ainda houve tempo de mais um olhar reprovador da pequena criatura, que com cenho carregado, meneava a cabeça enquanto eu firmava as sacolas sobre o ombro, e seguia o velho guerreiro, e seguia o meu pai...
Abaixei a cabeça e contemplei a grama por debaixo dos pés. Quando olhei novamente para trás, o Curupira já havia desaparecido.
Uma dorzinha aguda invadiu meu coração palpitante: Será que nos veremos novamente?
Continua...
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Aiaiai... No que será que o Ravel vai se meter? Encontrará ele coragem para desafiar Mainz e interrogá-lo a respeito de suas intenções? E Luriel, será que um dia ela despertará deste sono profundo?
Enquanto o próximo capítulo não sai, que tal você dar uma forcinha e curtir todos os outros capítulos que ficaram para trás sem a estrelinha? Ajudaria muito ^^
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Até mais galerinha! 👋👊
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