Cicatrizes
Depois de um bom tempo sentado de frente para o Leo acabei pegando no sono. Quando despertei o dia já havia ido embora.
Sem o ímpeto de seu fulgor, o sol já se arrastava lentamente em direção ao seu endereço por detrás da Lua, que resplandecia majestosa no centro do céu crepuscular.
Ainda descíamos rio abaixo rumo a um destino desconhecido para mim. Jamais havia saído de AnZare, com exceção de nossa ida à Doran e a sensação de vislumbrar o novo, mesmo diante de todo o ocorrido, deixava-me estranhamente entusiasmado.
O Kulan é o maior de toda Toren, nascendo aos sopés das montanhas em AnZare e descendo em direção ao sul. Já nos limites de AnToren, o rio faz uma curva para oeste onde se encontra com outro rio chamado Língua da Cobra, que delineia a fronteira de ArToren.
Embora não conhecesse pessoalmente nada além do quintal de casa, conhecia a geografia de Toren tão bem quanto a palma da minha mão. Na verdade, tinha gravado na memória os mapas de cada centímetro de toda Anur, graças aos caprichos de mamãe.
Percebi que o pequeno barco rumava em direção às margens do rio onde havia uma prainha de areia branca contrastada pelo verde da selva. Ao nosso redor, nossa visão ficava limitada por um conjunto de enormes árvores que ladeavam contornando o flúmen.
Assim que chegamos perto o suficiente da margem, papai saltou do barco. Com as águas batendo-lhe nas coxas, puxou a embarcação por uma corda até a terra firme, onde, cravando no chão de areia uma pequena estaca pontiaguda, amarrou a corda ali.
Leo acordou em seguida e papai fez sinal para que descêssemos. Depois, o homem com o corpo todo dilacerado por diversos cortes ordenou que esperássemos ali e entrou no meio da mata fechada. Poucos minutos depois retornou com um punhado de lenha e acendeu uma fogueira. E então, pegou seis galhos maiores, besuntou-lhes a ponta com uma espécie de resina e depois ateou fogo em cada um deles.
Acesos os archotes, papai fincou-os no chão ao redor de nós fazendo uma espécie de círculo.
- Isso nos manterá aquecidos e seguros durante a noite - afirmou.
Leo e eu assentimos com a cabeça.
- Esperem aqui - ordenou papai e se embrenhou no meio da selva fechada novamente.
A noite caiu com força e uma neblina densa cobriu a superfície do rio. O som acrídeo encheu o ar misturando-se com o murmúrio das árvores ao terem seus galhos chacoalhados pelo vento noturno.
Um ar cálido e cortante invadiu a atmosfera fazendo eriçar em todo o meu corpo pequenas bolinhas.
- Frio - falei como quem não tivesse assunto e vi uma nuvem de fumaça sair da minha boca.
Leo espremeu os lábios e gesticulou a cabeça. Com a mão esquerda comecei a esfregar o corpo na tentativa de aquecê-lo através da fricção.
Ambos permanecemos calados, ouvindo apenas o som noturno da floresta e do crepitar do fogo que devorava ansioso a lenha seca.
- Como conseguiram vencer Alizah, o Dragão e o Naelin? - questionou Leo quebrando o silêncio.
- Minha mãe derrotou Alizah e o Dragão - respondi sem detalhar o que ocorreu.
- A Rainha do Bosque do Dragão - afirmou Leo com tom de admiração na voz.
- Então você já sabia? - indaguei.
- Sabe - começou a dizer e desviou o olhar para o chão -, minha família sempre serviu a sua. Meus ancestrais sempre serviram aos descendentes de Cinnabari. E não somos os únicos. Saiba que foi necessário um grande número de pessoas para mantê-los seguros todos esses anos - concluiu e voltou os olhos para o fogo, numa expressão reflexiva.
Não precisou dizer muito e eu entendi. Sem saber o porquê, ali, em meio aquelas poucas palavras, soube que o Leo havia perdido toda a sua família na tentativa de proteger a minha. Me senti culpado por isso e as palavras fugiram-me da boca.
- Eu sinto muito - declarei com pesar. Foi a única coisa que consegui dizer.
- Não sinta - ele assegurou e fitou-me nos olhos. - Eles tiveram uma morte honrada. Cumpriram seu propósito.
- E qual era o propósito deles? - perguntei por puro instinto.
Assim que as palavras chegaram-lhe aos ouvidos, Leo desviou o olhar novamente e pareceu hesitar.
- Por que hesita? - questionei.
- Não cabe a mim dizer - Leo respondeu num lamento melancólico.
- Isso tem a ver comigo? - falei e procurei melhor as palavras. - Quer dizer, isso tem a ver com o que eu sou?
Ele apenas aquiesceu, mas não disse mais nada sobre o assunto.
Esse mistério já está começando a me deixar irritado, disse para mim mesmo. Parece que todos escondem algo de mim.
- E o naelin?
- Hã? - A pergunta me pegou de surpresa.
- Como derrotaram o naelin? - insistiu, Leo, tentando mudar de assunto.
- Eu... - disse e olhei para a minha mão esquerda. - Não sei como, mas... - Na tentativa de explicar o que ocorrera, deparei-me com a realidade. Nem mesmo eu sabia o que havia acontecido.
- Você o derrotou? - perguntou ele.
Assenti concordemente.
- E como você... - Gesticulou com a mão como quem cortasse algo.
- Não foi assim. Quer dizer... algo aconteceu antes de eu... - Fiz sinal com a mão como se cortasse o próprio pescoço. Leo pareceu entender imediatamente.
- E o que aconteceu antes? - questionou.
- Fogo! - Olhei para a minha própria mão assim que pronunciei a palavra.
- Você? - indagou encarando-me com ar de surpresa, quase abrindo um sorriso.
Gesticulei com a cabeça positivamente.
- Sim, eu manipulei o fogo - afirmei confiantemente. - Mas você já deve saber a respeito disso, não é mesmo?!
Ele tentou disfarçar e desviou os olhos mais uma vez.
Assim que toquei no assunto, minha memória sensitiva trouxe à tona o sentimento que eu tive ao manipular o fogo e eu desejei ardentemente fazê-lo novamente.
- Foi incrível - falei. - Eu jamais havia experimentado algo igual.
- Uau... Posso imaginar como deve ter sido - disse Leo com revelado ânimo.
- Você quer ver? - perguntei, entusiasmado.
- Você consegue? - perguntou ele quase não podendo conter-se.
Então, eu estendi a minha mão para frente e concentrei-me na sensação que tive ao manipular o fogo, mas nada aconteceu. Continuei tentando por alguns segundos, entretanto, continuei sem obter resultado algum.
Foi aí que eu tive a brilhante ideia.
Não é possível manipular um elemento sem estar em contato direto com ele! Essas palavras brotaram em minha mente assim que lembrei da conversa entre mamãe e Alizah.
Com estudada segurança, fixei firmemente os olhos no fogo à minha frente. Eu estava confiante. Mais que isso, estava determinado. Sem titubear, estendi a mão lentamente em direção ao fogaréu.
Eu já podia experimentar novamente aquela sensação da chama entre meus dedos.
- O que você vai fazer? - indagou Leo, como se tentasse me deter. Mas não adiantou, eu estava decidido.
- Apenas observe - recomendei com certa bravata.
Logo em seguida meus dedos alcançaram o fogo. Fiquei surpreso com o que aconteceu.
- Aaaaai! - grunhi de dor.
- O que v... Está tentando se matar? - reprovou Leo e no mesmo instante revirou os olhos levando a mão à cabeça.
- Mas é que... - Em vão tentei explicar. - Eu pensei que...
- Não é assim que funciona, Rav - interrompeu-me, Leo. - Você precisa estar em modo ON para fazer isso. É impossível manipular um elemento sem o uso do keer - esclareceu.
- Mas é claro! - afirmei, envergonhado. Como eu não pensei nisso?, perguntei pra mim mesmo e dei um leve tapa na cabeça com a incrível sensação de estar parecendo um idiota.
Ambos caímos na gargalhada. Porém, rimos apenas por um breve momento e, então, poupo a pouco fomos recobrando a noção da situação em que nos encontrávamos.
- O que irá acontecer agora? - perguntei assim que o riso dissipou-se por completo.
- Eu não sei - afirmou Leo com a voz séria e serena ao mesmo tempo.
Logo depois papai retornou trazendo consigo um coelho selvagem abatido. Com uma pequena faca e tamanha habilidade, arrancou a pele do animal e tirou-lhe as entranhas. Assim que terminou de limpar aquilo que seria o nosso jantar, enfiou um graveto atravessando os orifícios do tapiti e o pendurou sobre dois galhos maiores suspendendo-o por sobre o fogo.
Assim que a carne estava assada o suficiente, papai dividiu em três partes. Comemos sem dizer uma só palavra.
Depois de comer, papai tomou um fio de sutura nas mãos e começou a costurar o enorme corte no peito como quem bordava crochê.
Aquilo parecia doer uma barbaridade, mas ele não pronunciou um único gemido. Nem mesmo fez careta enquanto transava a própria carne.
- É melhor dormirem um pouco. Levantaremos cedo. Ainda temos alguns dias de viagem pela frente - recomendou papai assim que terminou de suturar o enorme rasgo. A costura revelou a perícia de um homem tarimbado e experiente, que estava preparado para enfrentar qualquer tipo de situação adversa.
Ao observar aquele homem por alguns minutos, fui tomado por um sentimento estranho e, durante um bom tempo, indecifrável.
As centenas de cicatrizes que percorriam todo o seu corpo revelavam as marcas de um guerreiro experimentado. Ao contemplá-las, fui assaltado de perplexidade e espanto: Por quantas batalhas como essa ele deve ter passado?, pensei.
Mainz, a Lâmina Letal, o General dos Exércitos de Toren, o Maior Espadachim que o mundo já conheceu!
Sua destreza e segurança em tudo o que fazia somadas a incrível capacidade de lidar com qualquer situação, fazia com que cada vez mais crescesse dentro de mim uma pujante admiração por ele. Mesmo sabendo que aquele homem não era de fato o meu pai, jamais consegui pensar de outra forma. Nem mesmo depois de descobrir toda a verdade.
Obedecendo prontamente, Leo e eu nos acomodamos em volta do fogo. Após revirar por algumas horas sem sono devido ao grande fluxo de pensamentos, minha mente acabou vencida pelo corpo extenuado e abatido por causa dos ferimentos.
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