Cama Macia e Refeição Quentinha


Entramos na cidade. Leo montado confortavelmente como um fidalgo e eu puxando como um cavalo do cavalo. 

Minhas pernas... Meu corpo...

O sol estava exatamente acima de nós ardendo por sobre o capuz. O corpo todo suado e empoeirado. A boca seca e a barriga vazia demais para eu ter forças para reclamar.

A cidade estava a pleno vapor. Crianças correndo, vendedores vendendo e animais berrando. As construções não eram tão suntuosas como em Doran, mas tinham sua respectiva beleza. Os edifícios eram costurados por ruas largas, que ligavam a cidade como um todo num emaranhado confuso, mas prático.

Lojas e comércios espalhados por todos os cantos. Pessoas andando despretensiosamente por todos os lados. Uma árvore enorme e frondosa se estendia do centro da cidade como um baluarte imenso. Sua copa era toda enfeitada por bandeiras e penduricalhos. O tronco era protegido por uma cerca e bem na frente uma área aberta de terra batida com um círculo de cimento em seu contorno.

Conforme íamos avançando, os olhares curiosos se debruçaram sobre nós. Estranhamente eles nos encaravam com expressões variadas, mas não ofensivas. 

Dando a volta por trás da grande árvore um prédio em particular me chamou a atenção. Hospedaria Boi Gordo estava escrito em uma placa acima em letras bem grandes. A estrutura contava com uma taverna em baixo e uma hospedaria na parte de cima.

Instintivamente comecei a seguir para lá. Sonhando com comida e cama.

— Lá não! — censurou Leo com voz firme.

— Mas... — Antes que eu pudesse colocar alguma objeção ele me dirigiu um olhar empertigado e estufou o peito. — Como quiser, senhor! — respondi e respirei fundo.

— Siga por aquela rua. — Ele apontou para uma ruela mais estreita com início na esquina da rua do Boi Gordo.

Respirei fundo mais uma vez e fiz como ordenara.

Essa rua era pouco movimentada e com bem menos comércio. Bem na frente, no lado direito um letreiro bem menor dizia Pousada Caneco Cheio

— Ali. — Leo apontou para o modesto edifício e gesticulou com a mão para que eu seguisse até ele.

Leo desmontou e ficou lado a lado comigo.

— Não me olhe diretamente nos olhos. Não me dirija a palavra sem antes ser requisitado. — Sua voz saiu baixa, quase um sussurro.

Entendendo que aquilo deveria fazer parte da etiqueta dos purians, apenas acenei com a cabeça concordemente. Fiz menção de tirar o capuz, mas Leo me deteve com um aceno de mão.

Deixamos o meio cavalo na entrada e avançamos por uma porta de madeira vai e vem, que nos conduzia direto para a taverna.  Havia apenas um homem de bigodes fartos atendendo no balcão e outro servindo às mesas.

O recinto estava praticamente vazio salvo um gato pingado e sem música ambiente. Alguns homens roliços e peludos enchiam a cara com seus canecos fartos enquanto conversavam de forma espalhafatosa. A iluminação era parca com apenas duas janelas para todo o local e um candelabro velho, mas apagado pendia do teto. O lugar recendia a álcool e madeira velha, mas eu estava cansado demais para prestar atenção nestes detalhes.

Leo foi diretamente para o bar. O homem por detrás do balcão o saudou com um aperto de mãos modesto como se já o conhecesse. Sem muita conversa e demostrando-se intensamente afadigado, Leo pediu um quarto e solicitou que um guisado com batatas para dois fosse entregue lá. Tudo foi muito rápido como deveria de ser. Com as chaves nas mãos do Leo e um ligeiro aceno de queixo nos retiramos em direção aos aposentos.

Subimos por uma escada lateral de madeira que contornava o bar e dava de cara com um corredor com quartos de ambos os lados. O ranger da madeira  envelhecida ao ser amassada por nossos pés dava uma sutil sensação de desconforto. As madeiras dessa espelunca devem estar todas podres, murmurei em pensamento.

— Aqui está... — ciciou Leo, parado com um olhar nostálgico diante da porta velha no meio do corredor. Uma plaqueta de latão pensa presa por um prego enferrujado revelava o número nove em um preto desbotado.

— Por que essa e não aquela hospedaria? — perguntei, referindo-me à Hospedaria Boi Gordo. O arrependimento veio logo em seguida quando o Leo se deteve a abrir a porta para responder a minha pergunta.

— Aqui é uma região mais afastada do centro. Mais longe do centro, menos pessoas. Menos pessoas, mais discrição. — Ele arqueou as sobrancelhas e jogou a cabeça levemente de lado.

Sem muita disposição para argumentar e com pressa de colocar os pés pra cima, fiz cara de entendido e gesticulei para que ele abrisse a porta antes que eu dormisse ali mesmo.

Cerimonialmente Leo enfiou a chave na tranca e abriu a porta. Assim que a porta foi se abrindo a visão mais próxima do paraíso que eu poderia ver naquele momento se revelou diante dos meus olhos. O quarto era pequeno, é verdade, mas aconchegante. Duas camas paralelas com travesseiros e lençóis cor de pele. Num andar quase que hipnótico caminhei até a cama da janela e desmoronei de capa, calçados e tudo. Cama macia, agradeci, cansado demais para sentir fome.

Dormi como um bebê num período de duas horas seguidas. Ao abrir os olhos dei de cara com o Leo. Estava sentado na ponta da própria cama segurando com as mãos o medalhão preso em um cordão escuro. Seu semblante estava caído e os olhos marejados.

— Está tudo bem? — perguntei.

Ele se assustou e limpou os olhos com o antebraço no mesmo instante. Permaneceu em silêncio por alguns segundos como se examinasse o pequeno objeto redondo.

— Nós sempre ficávamos neste quarto — disse. — Ele sempre ficava nesta cama. — Fez sinal para a cama onde eu estava. — Dizia que precisava ficar perto da janela, pois costumava a sentir falta de ar à noitinha.

Compreendi que falava a respeito do Sr. Loan. Eles sempre viajavam juntos.

— Eu sinto muito. — Tentei oferecer-lhe as condolências por sua perda.

Ele apenas acenou com a cabeça e espremeu os lábios.

Leo havia perdido tudo. Tanto seu pai e sua mãe morreram tentando me proteger. Era impossível não sentir uma centelha de culpa por tudo aquilo, mas o que eu posso fazer? Sabia que nenhuma palavra ou atitude poderia de alguma forma atenuar a sua dor.

Sua situação era bem pior do que a minha. Ainda tinha uma fagulha de esperança de que tanto meu pai quanto minha mãe estivessem vivos, mas ele... A imagem da cabeça decapitada do Sr. Loan rolando e parando na nossa frente com os olhos abertos. As palavras de Alizah a respeito de como matara a Sra. Lia. Todas essas lembranças foram emergindo como fantasmas atormentadores.

Segurei minhas próprias lágrimas entendendo que aquele era um terreno arenoso. Qualquer palavra mal colocada, em vez de abrandar a sua dor, poderia causar efeito contrário. Ficamos calados durante alguns minutos enquanto as lágrimas desciam copiosas pelos olhos do Leo.

— Já estiveram aqui outras vezes? — perguntei, na tentativa de suscitar alguma lembrança boa de seu pai. Eu fazia isso quando sentia falta da minha mãe. Às vezes dava certo, embora na maioria delas não.

— Sim — ele respondeu. — Três vezes ao todo.

— Seu pai foi um homem incrível — falei, lembrando do jeito divertido e desajeitado do Sr. Loan.

Leo apenas gesticulou com a cabeça, sem esboçar maior reação. Os olhos fixos no medalhão.

— O que significa esse entalhe? — questionei, observando a figura característica de um tatu impresso na madeira.

— Este é o brasão da minha família — respondeu, prontamente com voz meio embargada. — Sabe o que mais me impressiona no tatu? — perguntou.

— Não. O quê?

— Esse pequeno animalzinho de hábitos solitários é um verdadeiro sobrevivente. Revestido por uma armadura são capazes de resistir ao ataque de diversos predadores. Sabe o que significa a palavra Tatu?

Meneei com a cabeça.

— Não faço ideia. 

— Vem de uma língua ancestral, de um dos primeiros povos a habitarem em Toren. Ta significa couraça e Tu encorpado, denso. Couraça encorpada — disse pausadamente. — Dá a conotação de algo resistente, impenetrável, intransponível — concluiu e fez mais um breve silêncio ainda olhando para o brasão. — Nós somos assim, os Onari.

— São mesmo — concordei, esforçando-me por oferecer-lhe um sorriso efetuoso.

Fomos interrompidos por três ligeiras batidas na porta.

— Atenda sem abrir toda a porta — orientou com seriedade.

Fiz como recomendara. Um homem forte, com músculos sobressaltados fugindo pela camisa segurava uma bandeja com as mãos. 

O cheiro do ensopado escapou de dentro de uma bandeja com tampa de metal e capturou a atenção da minha barriga. Olhei para o Leo e ele fez sinal para que eu abrisse a porta permitindo o homem entrar.

O garçom era meio grande para aquele serviço, mas até aonde pude observar, as pessoas eram todas enormes ali em ArToren. Enquanto eu observava assustado os músculos rígidos salientes do homem, ele entrou despreocupadamente equilibrando a bandeja com as duas mãos. Em seguida puxou um aparador que estava encostado na parede e colocou a preciosa refeição sobre ele. Duas cumbucas de barro e colheres acompanhavam. 

Sem dizer uma única palavra o homenzarrão serviu-nos e retirou-se.

Comida quentinha. Saboreei cada colherada como se fosse a última. Estava muito saboroso, o que contribuiu para que lambesse cada canto do vasilhame e melasse o dedo onde a língua não alcançava.

De barriga cheia e cansados, deitamos e dormimos.

Continua...

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Esse capítulo/episódio foi tranquilinho, né? 

Já adianto que o próximo vai deixar vocês estarrecidos e com um nó no peito de tanta adrenalina hahaha

Preparem o coração porque vai ser CHOCANTE!!! 😲😲😲

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