A Última Besta da Terra

O grupo onde estava o tal homem era o mais numeroso. Com muita dificuldade avançamos por entre a multidão até alcançarmos a segunda fileira. O homem sobre a plataforma de madeira vestia-se de branco. Uma camisa larga com mangas até os cotovelos e uma calça também larga que descia até o meio de suas canelas. O cinto de couro velho preso em sua cintura carregava um coldre com uma adaga enfiada do lado direito e uma bolsa também de couro do lado esquerdo.

O homem estava sentado com uma perna dobrada com o calcanhar pra dentro e a outra perna apoiada no chão de madeira deixando seu joelho alto. Ele segurava um odre com a mão direita repousando o cotovelo sobre o joelho direito e gesticulava com a mão esquerda, a qual estava livre.

A multidão em sua volta parecia enfeitiçada, um exército de pedra. Quase não se mexiam ou respiravam. Estavam todos concentrados, quer dizer, mergulhados na história que o homem contava.

Então, Leo e eu nos sentamos e começamos a ouvir a história.

— Garras afiadas, enormes! — falou enquanto arregalava bem os olhos e imitava uma garra com a mão esquerda e gesticulava pelo ar como se estivesse arranhando uma presa invisível.

— Ohhh! — exclamou a multidão impressionada. Alguns colocavam as mãos sobre a boca em sinal de espanto. Outros retorciam o semblante e levavam as mãos aos ouvidos demonstrando aflição.

— Seus braços eram compridos e fortes como troncos de uma árvore. Mas vocês querem saber o que achei mais impressionante na besta? — perguntou causando alvoroço na multidão que respondeu em uníssono um sonoro sim.

O homem tomou um gole da bebida que havia no odre e com expressão pálida disse:

Seus olhos!

Depois disso ele fez um breve silêncio. Tomou mais um gole da bebida e com a mão esquerda tirou os cabelos da face. Sua pele era queimada do sol. Seus cabelos negros ondulavam até alcançarem os ombros. Seus olhos eram castanhos cor de terra molhada e uma barba falhada salpicava seu rosto magro.

A multidão quebrou o silêncio insistindo para que ele continuasse.

— Vocês querem saber por que fiquei impressionado com os olhos da fera?

SIM — gritou a multidão quase enlouquecida.

— Eu não tenho certeza se vocês estão preparados para ouvir — contrapôs com ar de desdém. — Alguns de vocês perderão o sono e molharão suas calças se eu lhes disser. — Balançou a mão esquerda com a palma virada para a multidão.

Conta logo — vociferou alguém da multidão.

— Desembucha — clamou outro.

Conta... conta... conta... — Um grupo começou com o coro enquanto marcavam o ritmo com palmas. Quando percebi, Leo e eu já havíamos sido contagiados pela multidão somando-nos ao grande coral.

Então ele se colocou de pé e fez sinal com a mão para que a multidão fizesse silêncio.

— Ele não tinha dois olhos. — Ele falou e fez silêncio por alguns segundos antes de prosseguir. — Apenas um único e enorme olho castanho no meio da cara — contou com aspecto de terror fazendo o número um com a mão livre agitando-a perante a multidão. — E isso não é tudo! — Fez sinal com a palma da mão aberta para que a multidão esperasse.

Eu estava completamente envolvido pela história. Concentrado, percebi que o homem não tinha parte da orelha esquerda e seu rosto era todo marcado com pequenas cicatrizes. Isso tornava a história ainda mais interessante e assustadora.

— Sua boca era assombrosamente grande com dentes semelhantes à ponta de várias lanças. Mas havia algo de muito mais sinistro ainda em relação à sua boca — falou fazendo cara de espanto. Fez uma breve pausa e continuou antes que a multidão se manifestasse. — Ela não estava na cabeça, mas na barriga.

—  Mapinguari — gritou alguém do meio do aglomerado de pessoas.

O contador apontou o dedo para o homem que tinha gritado e anuiu com a cabeça espremendo os lábios.

— Naquela hora eu percebi que estava diante de um ser terrível, uma besta da terra.

— Isso é conversa — exclamou alguém. Um burburim se iniciou e o povo pareceu se dividir.

— Deixem o homem continuar — retrucou um com voz severa.

— Então prove! — argumentou outro.

— Isso. Prove! — concordou a multidão agora inquieta.

O homem gesticulou com as mãos fazendo sinal para que a multidão se acalmasse de maneira que ele pudesse prosseguir. Houve uma breve discussão, mas todos concordaram em deixar o homem continuar.

— Eu posso provar — afirmou com voz de suspense. — Vejam a sua prova — falou e em seguida jogou o cabelo para trás com a mão esquerda e mostrou o toco de orelha, as cicatrizes no rosto, virou-se de costas, levantou a camisa e revelou quatro grandes vergas escuras nas costas como se tivesse levado um golpe com as garras da fera.

— Onça! — Alguém interpôs com voz de deboche.

— Queria eu que isso tivesse sido feito por uma onça. Mas não o foi — retorquiu com o sobrolho carregado como se estivesse rememorando a cena do ataque em sua cabeça.

— Todos sabem que as bestas sumiram de Toren há muito tempo — questionou alguém ganhando o apoio rápido de alguns do grupo.

— Nunca ninguém jamais escapou com vida de um mapinguari — argumentou um homem velho que estava do meu lado.

— Então eu fui o primeiro — rebateu com confiança o homem das cicatrizes.

A aglomeração começou a se agitar em discussão. "Eu acredito", alguns diziam. Outros, porém, fechavam o semblante em sinal de reprovação. Alguns pareciam incrédulos e outros ainda pareciam não tomar partido para nenhum dos lados.

Então um dos que estavam com fisionomia inquieta, parecendo querer saber mais detalhes, perguntou:

— E como foi que você se livrou dele?

— É... como foi? — Apoiou outro.

Todos, então, direcionando sua atenção ao homem sobre a plataforma, entraram no embalo e começaram a questionar sobre a maneira como ele havia escapado com vida da temível besta fera.

O homem deu um passo para trás, acariciou o queixo com a mão esquerda e dirigiu um olhar circunspecto para a multidão que ansiosa aguardava por uma resposta.

— Eu usei meus poderes — assegurou com certa bravata.

Um misto de espanto e curiosidade se apoderou do ajuntamento que começou a contemplar o homem com olhar analítico.

— E qual é o seu poder? — Um homem velho e magro indagou, rindo.

— Isso, qual o seu poder? — insistiu outro.

O homem de vestes brancas largas e cabelos negros assumiu uma postura ufana. O sol por detrás de sua cabeça aumentava sua blasonadora atitude. A multidão calou-se. Até mesmo o vento parou. Apenas o compassado e ritmado som da respiração alheia se fazia ouvir. O contador deu uma jogada de cabeça para o lado tirando o cabelo da face e confessou em tom firme:

Eu manipulo o fogo!

Todos fizeram um profundo silêncio parecendo refletir sobre o que fora dito e depois o mar de vozes inundou novamente a turba que discutia entre si. Uns riam, outros demonstravam incredulidade. Alguns faziam sinal de enxotar com as mãos enquanto outros ficaram reflexivos. O povo demonstrava bastante inquietação rejeitando avidamente a afirmação do homem.

Então eu perguntei para o Leo se ele sabia o real motivo da agitação.

Ninguém manipula o fogo — respondeu meneando a cabeça com descaso.

Eu, pra variar, não entendi o significado de ninguém manipula o fogo, mas como Leo não prosseguiu, mesmo descontente, permaneci calado.

— Quer dizer — prosseguiu Leo —, ninguém exceto Tarus, o portador da pedra do fogo.

Enquanto isso, a multidão parecia raivosa e enlouquecida.

Mentira! — Alguns começaram a gritar.

— O vinho subiu pra cabeça dele — gritou um homem corpulento enquanto ria de forma desengonçada.

— Vocês não acreditam? — perguntou o homem das cicatrizes. Novamente ele gesticulou com as mãos até conquistar a atenção do tropel. — Eu posso provar — concluiu e espremeu os olhos com confiança como quem se prepara para um desafio.

A turba petrificou-se novamente aguardando ansiosamente pela demonstração de poder do homem sobre o elevado de madeira.  De repente, o contador se virou de costas e abriu os braços mantendo-os um pouco elevados. 

Na mão direita o odre de couro e a mão esquerda estava vazia. Ele levou o odre à boca e deu uma golada mais longa da bebida. Em seguida colocou a mão esquerda em frente à face, virou-se de perfil e chilreou algo com os lábios semicerrados.

A multidão impacientou-se com o ritual.

O homem de branco encheu o peito de ar, flexionou as pernas e...

— Fogo! — bradou alguém do meio da aglomeração.

O contador cuspira um jato de fogo de uns dois metros surpreendendo a multidão, que, paralisada, mal podia acreditar em seus próprios olhos.

A chama permaneceu por alguns segundos no ar, o bastante para calar a boca dos questionadores, e, então, cessou.

— Ohhh! — A perplexidade se apoderou de todos ali presentes, que silenciosamente assistiam o poderoso homem à sua frente.

Ninguém ousou dizer mais nada ao manipulador do fogo. Em seguida, uma calorosa salva de palmas irrompeu como um rio transbordando em meio à tempestade dissipando o silêncio que nos cercava.

Levantando o odre com a mão direita e cruzando a mão esquerda sobre a barriga, o contador fez uma polida mesura em sinal de agradecimento ao reconhecimento de seu espetáculo. Em seguida, gesticulou com a mão vazia para frente apontando a bolsa aberta que estava adiante. Não precisou falar uma só palavra. Todos entenderam. Uma cachoeira de moedas choveu para dentro da bolsa que rapidamente se encheu.

Depois disso, o único homem vivo a escapar com vida de um encontro com o temível Mapinguari para contar a história, jogou sua trouxa cheia nas costas e desapareceu pela cidade.

Leo e eu ainda ouvimos mais alguns contos como O Conto do Crocodilo e do Alfaiate, do Guerreiro Silencioso e do tradicional Boto Cor-de-Rosa, que uma vez por ano se transforma em um belo jovem, seduz e engravida donzelas e depois desaparece. Essa última contada por uma jovem encantadora de pele rosada a qual dizia ser filha do tal boto-homem.

Antes que déssemos conta, o sol já tocava a borda do céu a leste e preparava-se para retornar. "Estejam no arco de pedra antes do início do retorno do sol", dissera papai antes de sairmos. Descumprir essa ordem não seria muito inteligente de nossa parte. Mesmo querendo ficar, Leo me alertou que deveríamos voltar antes do retorno do sol e já estávamos em cima da hora.

— Não se preocupe — tranquilizou-me —, estaremos no arco conforme o combinado. Eu conheço um atalho — disse Leo.

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