A Fuga
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Pequenas aberturas no alto das paredes deixavam vazar algumas réstias de luz. Eu não sabia que horas eram, se estava cedo ou tarde, só que ainda era dia. Pelos meus cálculos, esse deveria ser o quarto dia desde que havia sido capturado.
Assim que deixei a cela, tive que pensar rápido em como faria para encontrar o meu pai. Eu não conhecia o Castelo de Pedra e isso dificultaria muito a situação. Ele pode estar em uma das celas, arrazoei e avancei trôpego pelo corredor olhando em todas as câmaras observando com cuidado pelas grades. Havia inúmeras delas, quase todas cheias com homens e mulheres. Fiquei surpreso ao ver até mesmo crianças ali. Poucos deles estavam presos por correntes. A maioria estava livre dos cadeados nas mãos e nos pés.
Um odor forte de mijo seco e excremento impregnou-se em minhas narinas deixando-me com náuseas. Imediatamente inibi o olfato e continuei andando, ainda enjoado só pela recordação do mal cheiro.
Ao chegar no final do corredor sem encontrar sequer pista de onde estava o meu pai, uma nota de tristeza assenhoreou-se sobre o meu ânimo deixando-me sem saber o que fazer.
- Garoto - Ouvi uma voz masculina me chamando por trás. Virei-me imediatamente e notei a figura de um homem sem camiseta e com várias cicatrizes estampando o seu corpo. - Me leve com você - disse. - Eu posso ajudar. Sei onde Mainz está.
- E como você sabe que procuro por ele? - questionei, desconfiado.
- Tenho ouvidos treinados e atentos, meu jovem - respondeu. - E a acústica daqui não favorece muito a privacidade, não é mesmo?
Tive que concordar. O local era todo fechado e com paredes grossas garantindo um bom isolamento acústico. O menor dos sons reverberava nas paredes ricocheteando em forma de eco.
Aproximei-me das grades e a figura do homem ficou nítida diante dos meus olhos. Ele tinha pele parda e cabelos castanhos ondulados ocultando-lhe o lado esquerdo da face.
Sem tempo para pensar em uma estratégia melhor, tive que tomar uma decisão rápida. Esse cara deve ser um criminoso perigoso, concluí, olhando para a grossura das correntes que o prendiam. Se isso for verdade então eu sou a única chance que ele tem de sair daqui. Uma dura lembrança bateu em minha consciência deixando-me uma sensação de amargura. Não posso confiar nele, não posso confiar em mais ninguém.
- Vamos garoto - persistiu o homem. - Você me tira daqui e eu te mostro onde está Mainz...
- E como posso crer em sua palavra, nem mesmo sei se você o conhece? - argui analisando se ele de fato poderia cumprir a sua promessa.
- Só alguém que já tenha morrido há cinquenta anos que não sabe quem é a Lâmina Letal...
- E como você sabe onde ele está se você está aqui?
- Por que só existe um lugar seguro em todo esse castelo para trancafiar um manipulador do metal do calibre de Mainz - garantiu. - E eu sei onde é esse lugar.
As respostas do homem realmente demonstravam que ele conhecia o meu pai. Analisei a entrada da cela e notei que ela era trancafiada por um ferrolho e uma grossa trava de aço. O que você está fazendo?, questionei-me ao mesmo tempo em que derretia a fechadura.
Abri a cela sem grandes dificuldades, evitando ao máximo desperdiçar energia. Aproximei-me do homem com bastante cautela. Ele estava com os pés descalços e o corpo desnudo, vestido apenas com uma calça clara que dava no meio de suas canelas. A face expressiva e de linhas fortes voltada para mim com seriedade agora revelava uma cicatriz repuxando sua pele ao lado da boca onde outrora o cabelo escondia. Seus olhos cor de mel se iluminaram ao notar a minha aproximação. Os cabelos oleosos e a aparência maltrapilha eram de dar arrepios. Os lábios secos e feridos denunciavam que ele deveria estar ali há um bom tempo.
Seja lá o que ele tinha feito, a forma como estava enclausurado revelava o cuidado e a cautela com alguém extremamente perigoso.
- De pressa, garoto, antes que alguém venha - acelerou-me.
Decidido, sem saber se estava agindo certo, tive que arriscar. Segurei as correntes que o prendia uma em cada mão. Os olhos do prisioneiro arregalaram-se quando o metal gelado começou a diluir-se sob as minhas mãos.
Derretidas as correntes, os braços do homem caíram livres. Eles os chacoalhou e conferiu as mãos diante dos olhos. Soltei as cadeias dos pés e sem perder tempo, com a ajuda da parede o homem se colocou de pé.
- Acha que pode lutar? - perguntou, fitando-me de cima a baixo.
Gesticulei que sim.
- Assim que sairmos daqui centenas, talvez milhares de soldados estarão entre você e Mainz.
Uma pontada gélida subiu pelo estômago. As chances eram poucas, mas eu estava determinado. Sairia dali com Mainz, ou, então, não sairia.
- Você vai comigo - afirmei com austeridade encarando-o nos olhos.
- O quê? - objetou, arqueando as sobrancelhas. - Isso não estava no combinado. Eu vou te mostrar aonde está Mainz e depois seguirei o meu caminho.
- Me diga...
- Erdom! - antecipou-se diante da minha hesitação.
- Me diga, Erdom - continuei. - Como sairá daqui? Uma centena, talvez milhares de soldados estarão entre você e a sua liberdade - argumentei. - Acha que terá alguma chance de sair daqui vivo sozinho?
Ele hesitou, considerando o que eu disse.
- Vamos resgatar Mainz - comuniquei. - E depois disso nós três sairemos daqui juntos. Três guerreiros terão maiores chances do que apenas um, concorda? - argumentei e levantei a mão direita. Com a palma virada para cima inflamei até que uma labareda de chama avermelhada bruxuleasse entre os dedos iluminando o rosto de Erdom, que pareceu impressionado.
- Eah - disse, vacilante, ainda com os olhos fixos no fogo. - Acho que você tem razão - concordou de pressa sem contra argumentar.
Imediatamente extingui a chama vermelha e virei-me, pronto para seguir pelo corredor até a saída.
- Espere - Erdom falou. - Não é bom sairmos desta forma. Antes precisamos criar uma distração, algo que os ocupe e desvie as suas atenções de nós dois.
- E o que você sugere que façamos? - perguntei voltado de frente para ele.
- Vamos soltar todos os prisioneiros - sugeriu. - Dezenas de fugitivos soltos pelo castelo certamente será uma distração de respeito - argumentou, espremendo os lábios em um riso contido e as mãos abertas.
Uma ótima ideia, conclui. Vários prisioneiros espalhados pelo castelo não só criaria uma distração perfeita, como também, fragmentaria o foco de atuação do exército do castelo em vários grupos de contensão.
Após concordar com a ideia de Erdom, saímos abrindo todas as celas do corredor. Enquanto eu abria as fechaduras, ele orientava para que os demais prisioneiros fizessem silêncio a fim de não chamarmos a atenção indesejada. Aquela tarefa foi custosa demais e gastei um bocado de energia, entretanto, aquilo seria extremamente necessário para que obtivéssemos resultado favorável.
Soltos os presos, avançamos pelo corredor, com Erdom e eu indo a frente dos mais de trinta prisioneiros que nos seguiam, assustados. Logo ao dobrarmos uma esquina ao final do corredor, nos deparamos com três guardas que conversavam distraídos.
Erdom fez sinal de silêncio para a turba e abriu a mão recomendando que parássemos. Em seguida gesticulou com o indicador sobre o peito e apontou para os soldados fazendo sinal para que aguardássemos novamente.
Ele avançou esgueirando-se pelas paredes de pedra, quase camuflado devido às matizes coloradas muito próximas da cor de sua pele. Assim que se aproximou o suficiente, Erdom se precipitou contra os guardas e os tombou com apenas três movimentos precisos e extremamente velozes.
Um portão grosso de ferro maciço cerrava o corredor das celas separando-o dos demais ambientes do castelo. Eu não sabia o que realmente nos esperava, mas, também, não tinha dúvidas que inúmeros soldados nos aguardavam do outro lado.
Um frio inquietante começou a subir pela espinha imaginando o que nos aguardaria além daquele portão.
- Meu amigo aqui abrirá aquele portão ali - disse pousando uma mão sobre o meu ombro e o indicador da outra sobre o meu peito. - Depois disso, será cada um por si. Se ficarmos juntos, seremos facilmente dominados, pois como eles são mais numerosos do que nós, seremos cercados em poucos minutos.
- E se corrermos por todos os lados, vamos dividir sua força e número, aumentando as possibilidades de que alguns de nós consigam realmente fugir - acrescentei. Erdom anuiu com a cabeça reafirmando meu argumento.
- Alguns de nós? - objetou outro homem, de aspecto senil e mal encarado.
- Ou alguns de nós, ou nenhum de nós! - afirmou Erdom, encolhendo os ombros. - Ou vocês podem voltar para a cela caso prefiram...
Todos emudeceram diante das alternativas apresentadas. A maioria não iria longe. Boa parte deles apresentava aspectos de inanição. Mordisquei os lábios diante da vã esperança que nutriam, mas eu não podia fazer nada a respeito naquele momento. Agarrei-me à ideia de que se estavam presos era porque deveriam ser malfeitores e prossegui, esperando que essa verdade atenuaria a cruel realidade que nos esperava. O objetivo era fugir, mas o mais provável era que a maioria deles teria seu fim logo depois de cruzarmos aquela porta. Uma culpa angustiante começou a crescer em minha consciência. O que você está fazendo? Vai usá-los como meras marionetes?
Antes, porém, que o dilema crescesse e se tornasse insuportável impedindo-me de prosseguir, respirei fundo e suprimi meus sentimentos, deixando apenas a razão fria e oca, desprovida de qualquer empatia.
Erdom virou-se de costas para os demais e deu dois tapinhas em meu ombro, apontando para o portão.
- Agora é a sua vez!
Conforme eu caminhava a multidão se alvoroçava pelas minhas costas.
- Lembrem-se - disse Erdom. - Se quiserem fugir, corram para todos os lados. Andem no máximo em duplas.
Esperto, pensei. Isso aumentará as nossas chances quinze vezes mais.
Continuei caminhando moderadamente até a saída imaginando diversas possibilidades sobre o que enfrentaríamos. Era o máximo de estratégia que eu poderia criar para aquele momento.
A fechadura de metal era ainda mais grossa do que todas as outras, então, tive que reunir um número maior de partículas para conseguir derreter a espessa trava metálica. O corpo sentiu a energia deixando-o e as vistas embaralharam-se um pouco, mesmo assim continuei até atravessar toda a barra de metal.
Erdom fez sinal para que eu esperasse. Fiquei de um lado do portão e ele do outro.
- Vamos abrir e deixá-los sair primeiro - avisou baixinho, fugindo dos ouvidos da turba. - Serão as nossas iscas. - Erdom crispou os lábios e encolheu os ombros.
Isso nos dará a chance de analisarmos o que nos espera lá fora. Mais uma vez a atitude de Erdom revelada a astúcia de um homem cauteloso. Com os sentimentos extinguidos a razão apontava para a lógica da escolha enquanto ignorava o dilema moral ali proposto. A noção de que aquilo era errado ainda estava lá, mas com as emoções anuladas apenas as probabilidades importavam. A conta seria cobrada depois, e eu já sabia disso quando tomara a difícil decisão.
- Estão prontos? - perguntou Erdom olhando para os prisioneiros que esperavam pela abertura do portão. Alguns carregavam em seus semblantes as marcas de uma fisionomia determinada, porém, a maioria estava apavorada revelando isso claramente por suas expressões corporais.
O homem cheio de cicatrizes olhou para mim e acenou com a cabeça e eu devolvi positivamente com olhar sereno. Ele enrugou a testa visivelmente surpreso com minha reação tranquila. Erdom, por sua vez, parecia encarar a situação com gravidade, mas nitidamente preferia o risco de morrer em busca da liberdade do que permanecer como prisioneiro.
O homem levantou a mão direita e depois de contar até três com os dedos, gritou:
- Agoooora!
Ambos empurramos o portão com força liberando a saída para a multidão que avançou bradando, como se o grito fosse dar-lhes algum tipo de força especial.
Erdom e eu aguardamos no mesmo lugar, avaliando o cenário em busca da melhor alternativa.
Como prevíamos, dezenas de soldados transitava por uma espécie de saguão, que interligava vários outros corredores.
A turba de prisioneiros se dispersou para todos os lados conforme o combinado dificultando muito a ação dos guardas. Boa parte deles, entretanto, não conseguiu avançar mais do que trinta metros sem que fossem devorados antes pelos sabres famintos dos soldados do castelo.
Um banho de sangue inundou rapidamente o ambiente tingindo o chão de um vermelho vívido e escorregadiço.
Erdom deu sinal e corremos por um corredor lateral. Dois guardas transitavam por ele correndo em direção à entrada do cárcere, mas foram surpreendidos antes por golpes poderosos do misterioso homem de pele parda coberta por cicatrizes.
Ele é um usuário de Reforço, concluí, analisando as habilidades do homem que seguia a adiante.
Após corrermos por alguns corredores, acessamos um pátio descoberto revelando o firmamento sobre nossas cabeças. O dia já ia para as suas últimas horas, pois o sol já iniciava o seu percurso de retorno.
- Ali - disse Erdom. - Mainz deve estar lá. - Ele apontou para uma enorme torre ao norte do castelo. - Vamos...
Ele disparou e eu o segui. Um grupo de oito soldados nos avistou e como estavam em nosso caminho, não tivemos outra alternativa a não ser enfrentá-los.
Rapidamente eles nos cercaram. Sabendo que não poderíamos perder tempo ali, deixei as pontas dos dedos inflamadas. Com os músculos do corpo levemente potencializados para poupar energia, desviei-me das espadas dos soldados sem maiores dificuldades enquanto perfurava os seus corpos com a extremidade das mãos iluminadas pela Chama Sagrada. Como verdadeiros punhais, os dedos deslizavam-se ligeiros atravessando a armadura e depois algum órgão vital dos oponentes com extrema perícia. Determinado, não desperdicei um único golpe, fazendo tombar os inimigos assim que os tocava. Têmpora, pescoço e coração foram os lugares mais visados.
Em questão de segundos, todos os soldados já estavam no chão, ou mortos ou agonizando enquanto a morte não chegava.
Os olhos do guerreiro maltrapilho fixiram-se em mim arregalados, e depois voltaram-se para o caminho adiante. Ele acenou com a cabeça e partiu na frente. Mais uma vez o segui.
Erdom virou um corredor escapando das minhas vistas por alguns segundos. Quando contornei a extensa parede de pedra que nos separara, deparei-me com Erdom imóvel com os olhos saltitantes paralisados em algo adiante.
Bem a frente de nós uma centena de soldados nos aguardava empunhando suas armas em riste e bloqueando o caminho para a torre onde estava o meu pai. No meio deles um homem magro de cabelos negros na altura dos ombros trajando nobres vestes brancas com detalhes em marrom.
Cazel, reconheci, paralisado ao contemplar a quantidade de soldados a nossa frente como uma enorme barreira.
Ainda assim eu estava determinado. Uma multidão estava posta entre o meu pai e eu, mas eu já havia anulado totalmente as minhas emoções e agora estava suprimindo qualquer pensamento de desistência. Apenas a razão permanecia, e ela me dizia não haver outra saída. Se eu não o resgatar agora ele morrerá e eu serei capturado. A conta era simples e isso me obrigara a agir rapidamente.
É impressionante como é fácil decidir quando se há apenas uma opção. Então eu fiz o que precisava ser feito, cerrei os punhos com força concentrado todo o meu poder e me preparei para o ataque.
- Vamos com tudo! - vociferei, sentindo inúmeras explosões por todo o meu corpo.
No entanto, o que veio a seguir me deixou completamente perplexo.
Continua...
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Eita... o que será que pode ter acontecido para deixar o Rav perplexo?
Alguém aí desesperado pelo próximo capítulo?
Já adianto que o próximo capítulo já está escrito e, modéstia a parte, está de parar o coração hahaha
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