A Decisão do Guerreiro Solitário

— Acorda, Ravel! — disse a voz distante, quase um sussurro. — Acorda! — Senti dedos gelados batendo no meu rosto.

Aturdido pelo sono, abri os olhos e observei a face sisuda e velha do meu pai. Sua fisionomia revelava incomum circunspecção.

— O que foi? — perguntei ainda desorientado.

Esfreguei os olhos e vi o Leo de pé de costas para mim envolto em sua capa.

— Levante-se... Depressa! — sibilou Mainz.

Levantei-me rapidamente sem entender o que estava acontecendo.

— O que aconteceu? — questionei mais uma vez esperando por uma resposta.

— Fomos encontrados! — respondeu papai.

Um frio ligeiro subiu pela pele causando um pequeno tremor quando olhei na mesma direção para onde o Leo olhava e vislumbrei dezenas de silhuetas contornadas no meio da escuridão.

Desta vez a lua brilhava forte e sem restrição alguma e o pequeno pontinho luminoso avermelhado estava na metade de sua caminhada para oeste. Isto indicava apenas três horas da madrugada.

Assustado, percebi o corpo tremendo — parte por causa da baixa temperatura e parte por causa do medo. Enrolei-me na capa como se de alguma forma ela pudesse me proteger tanto do frio como do perigo.

— O que faremos? — A voz saiu entre pigarros e afônica por ter sido despertada antes da hora.

— Eles são muitos! — testemunhou Leo.

Imediatamente, quase que por instinto, entrei em modo sensorial. A visão outrora indistinta, agora potencializada pelo keer captou com perfeição a fisionomia dos adversários a pouco mais de quatro quilômetros de distância.

— Cinquenta! — notifiquei. — A maioria deles estão sobre cavalos, dez Turins sobre os chacais e um... — Mal pude acreditar quando constatei.

— Um o quê? — Papai quis saber.

O tremor no corpo foi subindo impulsivamente. Leo virou-se e olhou-me nos olhos com expressão de assombro como se aguardasse por uma notícia espantosa.

— Um Naelin vestido em uma armadura vermelha — informei.

Leo empalideceu. Até papai demonstrou certa preocupação, o que aumentou depois que contei o resto.

— Ele está montado em um Leão de Fogo! — revelei com assombro.

— Zaroc! — informou papai.

— O senhor o conhece, pai?

— Sim — confirmou. — Ele é irmão do Balrók!

Imediatamente os olhos do Leo se arregalaram em puro horror.

O Assolador de Hazentur! — disse ele.

O rosto de Mainz pareceu perder o sangue ao ouvir isso. Jamais o havia visto daquela maneira.

Isso tudo indicava que estávamos diante de um adversário terrível.

— Não podemos enfrentá-los — afirmou papai. — Não todos nós.

Ainda olhando para o horizonte na direção dos inimigos o velho se aproximou e colocou a mão direita sobre meu ombro esquerdo.

— Ravel e Leo — disse e puxou levemente meu ombro até que eu ficasse de frente para ele. — Vocês precisam ir. Não podem mais ficar.

— Como assim Leo e eu precisamo ir... E o senhor?

Pôs a mão esquerda em meu ombro direito ajeitando meu corpo de frente com o dele. Abaixou-se colocando um dos joelhos sobre o chão até ficarmos face a face.

— Eu ficarei! — Seus olhos cintilaram por um momento. Uma leve impressão de ternura transmitida na voz.

— Nós ficaremos e lutaremos com o senhor! — respondi com determinação, mas com o coração acelerado e o corpo lânguido. Piscando repetidamente para impedir que as vistas ficassem embaçadas por causa das lágrimas que teimavam em brotar sem serem convocadas.

— Vocês não podem. Precisam chegar até o Arvoredo Torenkai.

— Então... vamos todos juntos! — retruquei.

— Não conseguiríamos escapar assim — disse erguendo os ombros. — Eu preciso ficar... Essa é a nossa melhor chance.

— Mas...

— Escute, Ravel! — O cenho do velho carregou-se em uma linha dura. Num lampejo, a face que antes tracejava brandura agora exibia os tão conhecidos riscos sisudos de sempre. — Nós não temos tempo a perder! — bradou apertando firme com os dedos contra os meus ombros.

A mudança de expressão do velho trouxe-me novamente à realidade emergente do momento. Eu não queria dar ouvidos à logica da decisão de Mainz, mas precisava.

— Vão até o Arvoredo Torenkai — ordenou. — Lá vocês deverão procurar pelo grande Urso Pardo. Ele saberá o que fazer...

Não houve mais tempo para que pudesse apresentar alguma objeção ou planejar outra estratégia na qual não precisássemos nos separar. Vertiginosamente o contingente inimigo avançou campo adentro lambendo velozmente as milhas que nos separavam.

O som do galope dos equinos espocando ao amassar o chão causou uma onda de choque em meu estômago como se as entranhas estivessem se rompendo por dentro.

— Escutem! — A voz firme e pesada capturando nossa atenção. — Eu não conseguirei deter todos eles — advertiu. — Vou me concentrar nos mais poderosos. Vocês serão perseguidos. Evitem o combate. Só lutem se forem alcançados — recomendou.

Ele foi até nossas coisas e sacou uma esfera de ferro de uns vinte centímetros de diâmetro de dentro de uma bolsa.

— Levem apenas as espadas. Apressem-se — ordenou e caminhou para frente ficando de costas para nós.

O velho mestre aaori juntou as duas mãos com a esfera metálica no meio. Após chilrear as palavras de conjuração a esfera desapareceu sendo completamente absorvida pelo seu corpo.

Então, como uma espécie de despedida ele olhou para trás.

— Eu encontrarei vocês na cidade. Agora vão! — disse e virou-se novamente para o prado a frente por onde vinham os inimigos.

Já era possível ouvir o som da marcha veloz da tropa inimiga que urrava em nossa direção. De costas para nós e de frente para os inimigos, o velho guerreiro retesou todos os músculos do seu corpo enquanto suas cicatrizes  reluziam ao toque da luz prateada da rainha da noite.

— Vão! — ordenou por cima dos ombros. — E não confiem em ninguém durante o caminho.

Em uma atitude inesperada Mainz respirou fundo e partiu em disparada ao encontro do exército.

Um impulso impeliu-me para o campo de batalha, mas a mão do Leo segurando meu braço me deteve.

— Precisamos ir, Rav! — falou demonstrando aflição. — Vamos agora!

Mancando, ele desatou as talas da perna fazendo cara de dor. Pegou sua espada e partiu em direção ao matagal que estava próximo a oeste.

Olhei para o casulo sentindo uma angústia fria se apoderando do meu corpo. As lágrimas rolando quentes pelo rosto.

Observei pela última vez o guerreiro solitário que avançava destemido para o campo de batalha. Então, ele saltou a uma altura sobre humana com suas pernas potencializadas pelo keer e se precipitou contra os adversários. Antes disso, no meio de sua descida, um enorme e afiado sabre surgiu em sua mão cintilando à luz do luar. Assim que seus pés tocaram o chão, uma dúzia de cavaleiros caíram abatidos, transpassados pela lâmina que zuniu feroz ao rasgar suas carnes.

Cercado pela hoste inimiga, a silhueta do maior espadachim de Anur, A Lâmina Letal, fora ocultada no meio da escaramuça obstruindo minha visão amplificada. No mesmo instante aflorei ainda mais a audição e ouvi os gritos de pavor ecoando lúgubres pelo céu noturno.

Em um lampejo de realidade, contrariando o desejo do meu coração, potencializei os músculos das pernas e direcionei o meu corpo para o lado oposto à batalha para onde o Leo me esperava. Você não pode abandoná-lo. Você o deixará morrer sozinho?

Lutando para calar as vozes dentro da mente parti resignado enquanto não havia sido descoberto pelos perseguidores. Ele não irá morrer. Prometeu nos reencontrar.

Instintivamente, ainda relutante, virei o rosto em busca de vê-lo mais uma vez. Como um último presente do Criador eu o vi quando seu corpo se projetou mais uma vez para o alto e desceu. Com impressionante força e precisa agilidade um único golpe atravessou ao meio três inimigos.

A visão de certo modo me trouxe a coragem e determinação que precisava. Ele é invencível, pensei. Jamais será derrotado.

Esforcei-me para acreditar nisso com todas as forças e segui em direção à mata.

— Vamos! — disse Leo assim que o alcancei. — Se andarmos em linha reta por esta direção chegaremos em ArToren ao amanhecer. Lá estaremos protegidos.

Então nós corremos como se dependêssemos disso para sobreviver. E dependíamos. Mergulhado em modo EN anulei completamente as emoções permitindo que apenas a frieza da racionalidade guiasse meus passos. Rapidamente a dor, o cansaço e até mesmo o desejo de ficar e lutar foram suprimidos, violentamente estancados e ignorados. Calei a voz do meu coração, que debateu-se contrariado, e o cerrei no mais profundo do meu ser.

Afastamo-nos rapidamente do campo de batalha. Não podíamos seguir em grande velocidade devido às debilidades do Leo, ainda ferido. Ainda assim, graças aos músculos das pernas e dos braços potencializados pelo keer, pude ajudá-lo fazendo com que prosseguíssemos em ritmo considerável.

Uma hora de corrida naquele ritmo foi o meu limite. Paramos para descansar estando ainda embrenhados no meio da mata cerrada. Relaxei os músculos e senti o corpo extenuado exageradamente como se estivesse correndo há dias e não uma hora. O corpo esfoliado pelo capim seco ardia e coçava sobremaneira.

Leo respirava às arfadas tentando recuperar o fôlego. A face contraída pela dor e pingando de suor.

— Precisamos continuar! — falou. Quase não houve voz em sua fala, somente ar, tamanha a lassidão.

Eu o apoiei novamente passando seu braço pelo meu ombro e mais uma vez precisei potencializar o corpo com a energia do keer.

Subitamente, quando estávamos começando a andar novamente percebi o mato remexer atrás de nós a alguns metros. Concentrado na força, tive que inibir a percepção. Talvez isso tenha sido um erro, pensei.

Ao inflamar o modo sensorial notei vários corpos se movendo ao nosso encontro, porém, algo terrível chocou-me quando percebi.

— Nós não estamos sendo perseguidos — constatei com assombro. Leo olhou-me com expressão gélida e confusa. — Nós já estamos cercados! — informei.

Continua...

__________________________________________________________

E aí... como ficou o coração depois deste capítulo?

Se tiver muitos votos e comentários o próximo já sai amanhã... ^^

Ah... Recomende a história para os seus amigos! 😀🙌

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top