A Chama Sagrada


Enquanto papai não retornava, Leo sentou-se ao meu lado e começamos a conversar sobre o treinamento. Fiquei impressionado ao ver o quanto ele sabia. Com grande destreza me ajudou a fixar os conceitos de Partícula Elementar, Partícula do Keer, Herança de Sangue e Potencialidades do EN

— Qual a sua potencialidade? — perguntei com curiosidade.

— Quem dera eu... — respondeu deixando a voz morrer com certo desapontamento. — Geralmente a maioria dos usuários têm seu lampejo a partir dos vinte anos de idade...

— Lampejo?

— Ah, sim... claro! — Leo deu um risinho de desculpas. — Lampejo é quando uma pessoa desperta o seu keer, seja no EN ou no ON. Ninguém consegue conjurar o keer antes do lampejo.

— Ahhh... E tem isso também?

— Com certeza — falou com olhos divertidos e coçou a nuca. — Eu ainda não tive o meu. Se é que um dia o terei — lamentou.

— Quer dizer que nem todos tem o lampejo?

Leo aquiesceu, espremendo os lábios.

— Mas porquê?

Ele deu de ombros como quem não tivesse resposta para essa pergunta.

— São poucos aqueles que despertam o seu keer, Rav. A maioria vive uma vida comum sem jamais saber que exista tal poder. — Seu semblante caiu demonstrando pesar após pronunciar estas últimas palavras.  

Antes que pudéssemos prosseguir papai retornou segurando a lâmina aaori feita com o metal flamejante e sentou-se novamente em minha frente exigindo atenção. Ele repousou a espada no chão entre nós dois e se ajeitou.

— Bem — começou a dizer sem rodeios —, já lhe ensinei tudo o que você precisava saber sobre o EN  e as suas potencialidades — alegou. — Agora é hora de aprender sobre o ON.

Fiquei ansioso e apreensivo ao mesmo tempo já me preparando para a avalanche de informações que viria.

Leo olhou-me de soslaio e acenou com o queixo tentando me motivar.

O treinamento já durava horas, quase o dia inteiro para falar a verdade e a maratona esgotara o meu corpo já extenuado por todos os acontecimentos dos últimos dias.

O sol já tocava o limite do oeste preparando-se para fazer sua travessia noturna até se ocultar por trás da lua. Pouco a pouco a luz do dia ia dando lugar à escuridão da noite que não demoraria para cobrir o mundo com seu manto negro.

Iluminados por uma parca luz avermelhada prosseguimos sem perder tempo embalados por uma brisa suave e refrescante.

— Enquanto o EN é acessado ao se utilizar o keer e a energia elementar que estão dentro de você — Mainz disse e levou a mão ao peito repousando-a sobre o coração —, o ON faz um caminho inverso, usando o keer e a energia elementar interna para se conectar à externa. — Apontou com o dedo para os arredores.

No mesmo instante os olhos penetrantes do velho repousaram serenos sobre mim.

— Não precisa se preocupar, Ravel. Essa parte do treinamento será a mais fácil — garantiu abrindo e balançando a palma da mão em minha direção.

Espero que seja mesmo, pensei, já sentindo a cabeça latejar na região das têmporas.

 — Você está pronto? — perguntou.

Respondi que sim com um aceno.

— Quando você conjurou o fogo na batalha contra o naelin em Anzare, lembra? — perguntou e respondi que sim. — Quero que se concentre em lembrar como foi. Você acessou o modo de controle total, só que em vez de anular completamente os sentimentos como de costume você não anulou algum sentimento, pelo contrário — disse e levantou o indicador da mão direita —, você utilizou esse sentimento para abrir cada um dos três portais. Quero que me diga qual sentimento foi esse.

Como não lembrar? As cenas daquela batalha ainda estavam vívidas em minha memória. Imediatamente a imagem do naelin cravando a cabeça de mamãe contra o chão surgiu em minha mente. A poça de sangue tingindo o chão de vermelho e enrubescendo os cabelos cor de mel.

— Ódio! — respondi prontamente. As orelhas e o cenho começando a aquecer levemente.

Papai recebeu a notícia com aparente assombro. Seus olhos se arregalaram surpresos. Levou a mão até o queixo e espremeu os olhos, reflexivo.

— Entendo — disse. — Não esperava por isso! — Sua voz saiu como um lamento.

— O que foi? — perguntei sem compreender sua reação.

— Qualquer sentimento em exagero inebria os sentidos — afirmou e deixou a expressão crispar-se um pouco. — Mas ódio... o ódio não somente inebria, o ódio cega! — Ele balançou a cabeça em reprovação.

O ar sereno e leve de outrora fora substituído por uma mais tenso e carregado. Pouco a pouco fui me sentindo desconfortável, as juntas enrijecendo.

— Algum problema? — indaguei.

O velho repousou a mão sobre a perna. A testa levemente engelhada.

— O ódio é uma das ferramentas básicas usadas para a manipulação, Ravel. Quer obter êxito em manipular alguém? Alimente a ira dele e deixe que seu ódio exploda.

— Mas o que isso tem a ver com a conjuração do ON, pai? 

— Tudo! — revelou abrindo os braços. — Isso quer dizer que toda vez que você precisar conjurar o ON necessariamente terá de recorrer ao mesmo sentimento. — Soou a voz grave aumentando o volume consideravelmente.

Senti o estômago borbulhar diante de tais afirmações. "Você precisa aprender a se controlar antes que seja tarde". Curupira havia me dito quando me interrompeu na batalha contra os naelins na floresta. Lembrei de sua fisionomia assustada ao me encarar.

Será que é por isso que ele me interrompeu naquela ocasião?

Tentei ajeitar o corpo sob o chão de terra batida sentindo um desconforto incomum.

— Isso pode ser perigoso, Ravel. Se você não aprender a controlar isso de maneira adequada um inimigo mais experiente poderá usar a situação contra você. Lembra-se de como Alizah tentou de várias formas incitar nossas emoções tentando quebrar nossa estratégia? Alguns guerreiros são versados em desestabilizar seus oponentes — falou e arqueou as sobrancelhas. — As emoções são um componente sério no campo das batalhas...

— Entendo. Mas uma coisa que não compreendi direito foi sobre o fato de eu ter que recorrer ao mesmo sentimento toda vez que for conjurar o ON... — questionei meio confuso.

— Diferente do EN que é acessado unicamente através da vontade racional, o ON exige a combinação entre racionalidade e sentimentos. Veja, quando você conjurou o ON dias atrás contra o naelin você não suprimiu todos os sentimentos, mas, pelo contrário, forçou a abertura dos portais usando o ódio, certo? Assim, fica evidente de que o ódio é o seu sentimento chave para destravar o quarto portal — afirmou.

Sentimento chave? — perguntei.

— Isso mesmo. O ON só pode ser acessado através do sentimento chave, que deve ser utilizado racionalmente como meio de acessar esse poder. Por isso é uma combinação entre racionalidade e sentimentos — acrescentou levando o dedo indicador na têmpora e depois no coração.

Me esforcei um pouco para entender ficando em silêncio por alguns segundos.

— Para o seu nível de controle atual, conjurar o ON não será um problema para você, Ravel — tranquilizou-me. — Você foi treinado a vida inteira para esse momento. Não se preocupe. Você está pronto para tentar?

Um misto de sensações sobrepujaram-me inundando vertiginosamente minha mente e corpo.

— Sim. Como eu faço? — As palavras saíram carregadas de ansiedade.

— Primeiro você deve se concentrar e, antes de avançar pelo controle total, precisa encontrar o ódio dentro de você. Sabe como fazer?

Acenei positivamente com a cabeça e fechei os olhos em busca de maior concentração. Encontrei dentro de mim a sede de todos os sentimentos. Curiosamente percebi que a ansiedade e o medo estavam mais aflorados que os outros. Mergulhei mais fundo procurando pelo meu sentimento chave.

A memória ativa a sensação, pensei. Assim, tudo o que preciso fazer é encontrar a lembrança certa.

Após vasculhar pelas memórias, não muito depois o corpo ensanguentado de mamãe surgiu em minha mente e com ele a tristeza e a angústia vividas naquele momento. Impedi que ambos os sentimentos se inflamassem e busquei mais fundo na memória uma imagem que remetesse ao ódio. Não demorou e a figura asquerosa do naelin surgiu causando um agudo aperto em meu peito. O sorriso malicioso escapando pelos dentes pontiagudos. Os olhos negros como o ébano. Medo...

— Procure pelo ódio, Ravel! — A voz grave e firme ressoou distante, quase que um sussurro, direcionando-me em busca do sentimento certo.

Uma sucessão de imagens emergiram na memória borbulhando cenas da batalha em Anzare. Então, aquela lembrança vívida fixou-se na mente: minha mãe correndo em direção ao jardim e o naelin colocando-se em sua frente. As mãos podres do gigante cravando-se sobre o pescoço dela. "Você matou o meu mestre. Agora eu vou matar a sua." A voz repulsiva surgiu como se estivesse ali presente, tão límpida quanto água cristalina. 

Como um guia fiel, a memória me conduziu precisamente. Ele estava lá, escondido no mais oculto da minha alma, mas eu o vi. Ódio! Preciso inflamá-lo, concluí. Em seguida busquei a sequência da lembrança, mesmo que isso me trouxesse dor novamente. Consciente do que precisava fazer, concentrei no ódio e lutei para calar todos os outros sentimentos.

O naelin saltou segurando mamãe pelo pescoço e aterrissou cravando sua cabeça contra o chão. Imediatamente o vermelho carmesim manchando a grama e o corpo abatido já sem vida estirado.

Pequenas ondas de choque inundaram meu corpo. O ódio inflamado pela recordação aumentando vertiginosamente como um vulcão quando acorda. Sem hesitar mergulhei através do controle total forçando a abertura de cada portal racionalmente utilizando o sentimento chave como papai ensinara.

Ao transpor os portais da mente, das emoções e dos sentidos, fiquei entusiasmado quando mentalmente pude visualizar o quarto portal, e nele, as palavras de conjuração: Olimentus Nomos.

Rapidamente abri os olhos. Papai aguardava com atenção. Sem demora fiz a conjuração.

Eloi Keer Olimentus Nomos!

Inúmeras explosões surgiram por todo o meu corpo e com elas uma energia impressionante. Pude sentir um ódio mortal enchendo-me por completo e tomando cada centímetro do meu corpo. No entanto, algo estranho e inesperado aconteceu... Não havia chama ou sinal dela... nada de fogo!

O ódio transformou-se em desorientação. Repousei os olhos confusos sobre o velho mestre a minha frente como se eu buscasse por uma resposta que explicasse aquilo. Não era para conjurar o fogo?

O velho mestre permaneceu sentado com postura intacta, e, então, esboçou um leve sorriso que aumentou ainda mais a minha confusão.

— Me dê a sua mão — ordenou estendendo sua mão direita.

Sem entender fiz conforme pediu. Mais uma vez esticou o dedo indicador e passou a ponta sobre a palma da minha mão abrindo uma pequena incisão fazendo brotar uma gotícula de sangue.

— Entenda — começou a dizer —, o ON funciona como conexão entre o elemento que está dentro e o elemento que está fora. — Ele pegou a lâmina aaori que estava sobre a grama e colocou-a sobre a minha mão. Imediatamente senti o cabo da espada pulsar entre os meus dedos. — O que você sente? — questionou.

Estranhamente pude sentir o cabo da espada como uma extensão do meu próprio braço. Era como se a lâmina e eu fôssemos apenas um.

— Quero que você direcione os pequenos pulsos que está sentindo pelo seu corpo até que eles passem por sua mão até a espada.

Sem dificuldades fiz como ordenara e fiquei surpreso com o resultado. A lâmina que até então chamuscava como se tivesse vida própria iluminou-se num clarão avermelhado inflamando-se por completo.

— A Chama Vermelha! — A voz do Leo sobressaltou-se num brado de assombro e perplexidade.

— O que foi? — questionei curioso por ver sua reação.

— A Chama Vermelha jamais foi conjurada por homem algum — revelou. — Nem mesmo Tarus, guardião da pedra do poder do fogo controla tal poder. — Ele se deteve um momento encarando-me como se olhasse para um fantasma.— Você é mesmo o herdeiro do Dragão Vermelho — afirmou com fisionomia estupefata. Os dois olhos arregalados como se fossem saltar de suas órbitas.

Olhei para o meu pai como se buscasse por confirmação e num aceno positivo ele ratificou a suposição do Leo.

A lâmina aaori cintilava num vermelho vívido e intenso. A luminescência fez com que tanto Leo quanto papai desviassem os olhos. Ambos se afastaram um pouco devido ao alto calor que emanava das labaredas.

— A temperatura da chama vermelha é a mais alta que existe. É a única chama capaz de queimar qualquer coisa. Nada, absolutamente nada em todo o universo pode resistir a estas chamas. É o Fogo que tudo consome — constatou Leo apontando o dedo para a espada incendiada. Seus olhos arregalados faltavam saltar-lhe às órbitas. — É também conhecida como A Chama Sagrada. Pensávamos ser uma fábula, mas é impressionante como as lendas do passado podem se demonstrar tão reais quanto a lua.

Agora, havia admiração nas palavras do Leo. Não só em suas palavras, mas em cada gesto, cada expressão. Era como se algo desejado durante um longo tempo finalmente viesse à tona.

— Muito bem... — censurou-nos papai. — Agora precisamos concluir o treinamento. Certamente os exércitos de Tarus e Cazel estão em nosso encalço. Com os caçadores e batedores que eles têm, não demorará muito até que nos encontrem.

Um nó na garganta e um aperto no peito surgiram de súbito. Quase esquecera que eramos fugitivos.

— Precisamos continuar, Ravel! — falou o velho guerreiro em tom de advertência. — Não temos tempo a perder. Amanhã teremos um longo dia. — A voz grave como o ranger de madeira velha aumentou um pouco a tensão que nos envolvia.

Continua...

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