Capítulo 09 - Sangue amargo
~Edith~
Martin é uma boa companhia para caminhar lado a lado.
Não precisamos mais do que uma troca de olhares para que os nossos passos ficassem cada vez mais rápidos e silenciosos. Nós dois queríamos encontrá-la, e cada segundo contava e me matava lentamente.
Meu corpo quer ignorar tudo quando percebo movimentações na nossa frente. Quero sair correndo na direção, mas minha razão ganha da emoção e me faz ficar parada no mesmo lugar.
Martin parece mais afoito do que eu, mas quando coloco a mão em seu ombro ele freia seus passos também e se põe a observar melhor tudo o que nos cerca.
A aproximação se dá mais silenciosa e cautelosa agora já que percebemos que a pessoa na nossa frente não está se movendo. Podemos agora estudar os arredores e descobrir uma melhor maneira de se aproximar.
Eu me lembro de já ter passado por ali antes. A Meg já tinha passado por ali antes e destruído parcialmente o local. Tobias já o tinha abandonado e pelo visto a população aos redores do local também, já que não tinha nenhum sinal de vida ali por perto, nem mesmo animal.
Mesmo parecendo um local demolido, ainda dava para ver boas estruturas presas ao chão. Robustas colunas saíam do chão e conseguia ver uma movimentação ao redor de duas delas. As vozes eram abafadas pelos tijolos caídos, galhos e distância.
Mas gritos são gritos não importa as situações que cercam.
Martin se transforma em um esquilo e por dentro das copas e grama alta procura o melhor caminho para nos aproximarmos. Minutos depois ele me guia da melhor maneira.
Gritos e vozes masculinas chamam a minha atenção. Mas não posso fraquejar ainda.
Martin me pede para parar e sinaliza que ela está logo atrás daquela meia parede demolida. Por um pequeno buraco na parede consigo ver do outro lado.
Dois homens estão amarrados na frente do outro e com os olhos cheios de lágrimas e os corpos cheios de ferimentos. Um deles já respira com bastante dificuldade e o outro murmura algo baixo, querendo esconder o rosto entre os joelhos.
Mas logo as duas pessoas perdem o foco quando vejo a figura feminina se movimentar com graça entre eles.
Os cabelos num tom quente rosado, combinavam incrivelmente com ela, estavam mais curtos, e bem diferentes do que as fotos que tínhamos e que me lembrava. Suas roupas, brigavam com a delicadeza que o corpo dela tem, mas de alguma forma complementavam a atitude que os cabelos gritavam.
- Ainda não quer falar nada? - ela fala girando na ponta dos pés para encarar o rapaz que respirava com dificuldade.
- Pare com isso!
- O poder para que eu pare com isso está nas mãos de vocês, basta alguém me dizer o que eu quero saber e tudo isso acaba.
- Não podemos falar nada.
- Não podem ou não vão? Mesmo eu não tendo o domínio da mente, eu ainda tenho algumas cartas na manga.
O grito de desespero que escutamos agora gela um pedaço da nossa alma. Compartilhamos um olhar assustado e não ousamos nem respirar. Algo naquele grito nos fez congelar no lugar.
- Quando as pessoas descrevem o amor como um sentimento que queima e contorce tudo por dentro da gente, achamos lindo e profundo. Mas quando algo literalmente queima e contorce tudo no nosso corpo não é uma sensação agradável não é? - não conseguimos ver o rosto dela nesse momento já que ela está de costas para nós.
- Você é uma monstra! - o rapaz que ela tinha ajoelhado na frente cospe no rosto dela.
- E vocês já sabem o que tem que fazer para isso acabar.
- Eu aguento... Você precisa aguentar também... - uma voz masculina diferente fala com uma respiração sofrida.
- Pronto pra uma segunda rodada já? Gosto da sua resistência - ela fala e novamente os arredores se enchem com os gritos de dor do homem.
Meu corpo nesse momento nem parece meu. Ele está encolhido e petrificado com o que estou presenciando. Sei que já deveríamos ter feito alguma coisa, mas não sei se nos aproximarmos assim dela vai fazer algum bem ou diferença.
Martin me cutuca e pergunta se eu tenho algum plano de aproximação. Eu respondo um sincero não sei. Meus pensamentos estão tão confusos que eu não consigo me situar.
Fecho os olhos e me deixo engolir pelo desespero por um momento. Se eu não fizer isso provavelmente vou perder completamente a cabeça. Deixo que os meus sentimentos me afoguem. O ar praticamente é roubado de meus pulmões. Lágrimas se formam em meus olhos sem ter mais onde ir.
Trinta segundos de profundo desespero. Isso é tudo o que eu preciso. Eu posso fazer isso.
Quando volto a abrir meus olhos sinto meu corpo mais leve, até mesmo Martin vê algo mudar dentro de mim, já que vejo algo mudar em sua expressão quando olha para mim.
E eu volto a olhar por entre o defeito na parede, na direção dela.
Sua postura estava diferente, seus ombros estavam mais largos, pareciam querer carregar um peso muito maior do que ela poderia aguentar. Só que ela não vacilava, tudo ali estava firme.
A voz lembrava muito, mas não tinha a suavidade, não tinha os medos, as dúvidas, a bondade que antes era possível encontrar em cada vibrato. Agora tudo o que eu conseguia escutar era a firmeza, a frieza, um desespero encruado.
Mesmo com tudo ali fora querendo expulsar a imagem que eu tenho gravada na minha memória da minha neta, algo em sua essência matava qualquer dúvida.
Era ela.
Minha respiração fica em suspenso... Ela... Ela tão perto, uns cinco passos e se eu esticasse o braço conseguiria tocá-la.
E é o que o meu corpo faz de forma automática. A razão não consegue mais me segurar. Os sentimentos não me prendem mais. Nem mesmo Martin consegue.
Não faço nenhum barulho, apenas me movimento em sua direção, mesmo sem barulho, ela percebe a minha aproximação e se vira.
Os milésimos de segundo que sua íris azul encontra com a minha e expressam a saudade, o medo, a apreensão de me ver ali fizeram o meu coração se encher de esperança que tudo aquilo poderia ficar para trás. Meu peito enche de sentimentos quando ela se vira e em vez de se afastar de mim, anda na minha direção.
Nem me importo pelo seu rosto estar manchado com lágrimas de sangue.
- Vó - a voz dela que estava cheia de si segundos atrás, agora já encontra trêmula e sinto a hesitação dela em minha frente e seus dedos se apertavam ao redor do seu corpo parecendo sem saber o que fazer, temendo a minha reação.
- Minha netinha... - digo, cheia de emoção e sem conseguir aguentar mais, fecho o espaço entre nós e a aperto num abraço cheio de saudades.
Dedos engancham no meu cabelo e ela respira fundo, como se para acreditar mesmo que eu estava ali. Sinto o olhar do guardião dela em nós e ele se aproxima, cauteloso. Não preciso olhar para ele para saber que estava com medo de atrapalhar o momento entre mim e a minha neta.
Mas ele também é guardião dela, e aquele tempo que passou no coração da Megan nem consigo começar a imaginar o quanto isso aproximou os dois.
- Desculpe Edith, mas não consigo - sinto braços passarem por nós e ele aquece ainda mais o nosso abraço.
- Martin... - a voz de Megan é apenas um sussurro.
As mãos da Meg se afastam de nós, e eu penso que é apenas para ajustar o abraço, mas ela usa o seu movimento para se afastar de mim, e do nosso abraço, aquilo me fere.
- Eu vivo subestimando vocês, claro que vocês não demorariam muito para me encontrar depois daquela barreira no meio da província...
- Claro, parece até que você quis facilitar as nossas buscas - digo tentando não me sentir ofendida por seu afastamento.
- Não quis facilitar nada para ninguém. Foi apenas uma medida que teve que sair dos planos.
- Certo. Mas você sabe o motivo de estarmos aqui não sabe Megan?
- Querem que eu volte com vocês, certo?
- Sim.
- Não posso.
- O que te impede de ficar ao nosso lado Megan? - Martin pergunta.
- O fato da maneira como vocês fazem as coisas. Nada contra, mas infelizmente os métodos que vocês usam demandam muito tempo, e isso não é uma coisa que eu quero desperdiçar no momento...
- Fazer as coisas do modo correto é desperdício de tempo? - agora sou eu que pergunto.
- Não é bem isso, mas fazer as coisas do meu jeito está me poupando um bom tempo.
- Você fala isso, mas aqui estamos nós, logo atrás de você.
- Mas eu sou apenas uma pessoa. E vocês tem praticamente um exército de pessoas à disposição. Digamos que se um exército está trabalhando na mesma velocidade que eu, estou com uma enorme vantagem.
- Olhando para esses dois aqui não vejo o que você está fazendo como vantagem... - Martin diz apontando para os homens amarrados e debilitados.
- Cada pessoa trabalha com o que tem...- ela se justifica, dando de ombros.
- Volte Megan... Nós vamos alcançar quaisquer que sejam os seus objetivos... - Martin praticamente implora, tentando se aproximar mais uma vez dela, mas ela dá um passo para trás, mantendo a nossa distância.
- Imagine como vamos ser rápidos, você mesma disse, vai ter um exército do seu lado! - reforço a ideia do Martin.
- Mas os meus métodos não são práticos com muitas pessoas.
- Podem ser as pessoas que quiser, apenas volte... - não conseguir frear o nó na minha garganta. Se precisasse, eu imploraria.
- Eu não... Eu... - ela volta a mexer com as mãos e olha para baixo, parecendo perdida.
Eu e Martin mais uma vez nos movemos por reflexo e nos aproximamos dela. Dessa vez Megan não se afasta e permanece no mesmo lugar, apertando seus dedos entre as mãos e mordendo o interior de sua bochecha.
Então ela estende a mão para cada um de nós e eu vou feliz. Ela segura nossas mãos e sorri.
- Edith - Martin começa a falar, mas Meg me puxa pela mão para me dar um abraço e passo os dois braços ao redor dela, selando nosso contanto.
Mal consigo assimilar quando sinto a picada em minhas costas, me paralisando. Ela tinha usado um dardo paralisante em mim?
- Não acredito que você fez isso Meg... - digo sem esconder a mágoa na minha voz.
- Vocês não me deram outra opção... - olho para os frascos vazios em sua mão e ela os joga no chão, pisando no vidro.
- Tudo o que quisemos te dar foram opções Megan...
- Mas eram as opções de vocês... Eu não posso agir do modo que quero se tiver sempre vocês perto de mim.
- Então você só vai considerar as suas...
- Sim. Eu estou me reservando o direito disso. Do mesmo modo que vocês só querem ver um lado da moeda, eu só consigo olhar para o outro lado.
- Podemos encontrar um meio termo e...
- Chega. Não quero saber disso. Deve haver mesmo alguma coisa no meio termo, mas sinceramente não temos o tempo para procurar.
- Temos tempo sim Megan... - Martin diz, sem conseguir se movimentar também.
- Quando vocês me apresentarem esse tempo e essas opções eu posso desacelerar um pouco e ouvir vocês.
- Você sabe que isso não é uma opção para nós... - digo sincera em minhas palavras e tentando fazer com que o meu corpo respondesse.
- Será que vocês só pararão de me seguir quando eu perder a paciência e alguém perder a vida é isso? Alguém vai ter que morrer para vocês cansarem de correr atrás de mim? Eu não quero ninguém me seguindo!
Minha língua fica paralisada. E tenho certeza que não é por causa do dardo. Isso é pelo fato da palavra morte sair com tanta facilidade assim dela. Ah, mas como eu me enganei, minha neta tinha mudado mais do que eu poderia prever.
- Espero que esses encontros não se tornem uma coisa frequente. Estou avisando, me deixem em paz. Eu só quero o que é melhor para Nihal. E para mim. Eu vou voltar, no meu tempo, quando eu tiver resolvido tudo o que eu estou planejando.
- Mas eu sou seu guardião Megan. É a minha missão de vida te seguir e proteger.
- Só que você já morreu Martin... - ela diz de forma fria e vejo quando Martin arregala os olhos e então Meg desvia o seu olhar do guardião. - Não foi isso que eu quis dizer eu... Estou feliz que você voltou, mas eu...
Virando de costas para nós, ela passa a mão pelos cabelos de modo impaciente e então parece lembrar que não estamos sozinhos ali. Vai então na direção dos dois homens amarrados no chão, e agachando na frente de um fala:
- Quando o efeito passar naqueles dois, eles vão soltar vocês. Acho que foi sorte de vocês que esses dois chegaram. O que eu tinha imaginado para vocês dois era bem diferente. Fiquem com as suas informações.
Ficando de pé, ela faz uma pequena bolha de água na ponta dos dedos e então limpa qualquer resquício de sangue que tinha ficado por lá. Olha bem para cima e respirando fundo uma vez ela se volta na nossa direção.
- Foi bom ver vocês. Até não tão logo - ela quase sorri enquanto se afasta e poucos metros depois já não consigo mais ver ela.
Um silêncio mortal se faz assim que ela vai embora. Nem mesmo respirações podem ser escutadas. Não sei se é por causa disso ou se é por causa do zumbido no meu ouvido que me impede de pensar com clareza.
Nem sei quanto tempo se passou, apenas quando eu sinto a mão de Adam em meu ombro eu percebo que o meu corpo já consegue se mover.
- Vocês a encontraram - Adam nem pergunta. Martin afirma com a cabeça e fica de pé, alongando o corpo.
Adam me ajuda a ficar de pé e pergunta se está tudo bem, mesmo sabendo que não estou bem, respondo que sim. E mesmo ele sabendo que eu não estou, não volta a perguntar. Olho para os dois homens amarrados no chão e me rasga por dentro quando percebo que esses dois provavelmente sabem mais sobre a nova personalidade da Megan do que nós.
Parte da família. Seu guardião. Seu amor.
Nenhum de nós a conhecia mais.
֎ ֎ ֎ ֎ ֎
Olá pessoal! Aqui temos capítulo novo e narrado por uma das melhores personagens que eu acho da história! Dona Edith dando o ar das graças por aqui :) O que acharam dos sentimentos dela? Deu pra sentir onde a história está indo? O que acham que vai acontecer agora?
Não sei se vocês estão gostando desse estilo de narração, com variações entre os personagens a narrarem os acontecimentos, estou tentando dar uma visão melhor da história sem ter que me prender muito aos fatos. O livro tá correndo bem né? Mesmo com diferentes narradores? Me falem o que estão achando disso.
Então é isso pessoal, nos vemos no próximo capítulo. Beijos e até o mais breve possível ♥
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